sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Bioética e Saúde: Uma Perspectiva Complexa, Integrada e Compreensiva

 José Roberto Goldim


A Bioética, quando entendida em sua perspectiva complexa, permite reflexões sobre vários temas. A saúde é um destes temas preferenciais para a reflexão bioética.  A perspectiva complexa associada às ações na área da Saúde permite envolver um conjunto amplo de argumentos que servem para verificar a sua adequação. 

A saúde têm múltiplos significados de acordo com o entendimento, com o paradigma utilizado e da abrangência estabelecida para as suas ações. a ter uma abordagem baseada no paradigma das evidências epidemiológicas ou das evidências narrativas. Quanto a abrangência, podem ser identificadas a  saúde individual, a saúde pública, a saúde coletiva, a saúde única, a saúde global e a saúde planetária.

Os diferentes entendimentos da saúde

Desde a antiguidade, a saúde é entendida como ausência de doença. É uma perspectiva baseada no paciente individualmente, com ênfase nos aspectos biológicos visando enfrentar situações específicas identificadas pelo médico. O local de saúde passou a ser identificado como sendo o hospital. Os médicos, a partir da metade do século XIX, passaram a contar, de forma sistemática e profissional, com a colaboração das Enfermeiras na realização de suas atividades.

No início do século XX, a saúde também passou a ser entendida como sendo um direito humano coletivo. A Revolução Mexicana, de 1913, a Revolução Russa, de 1917, e a Constituição de Weimar do Império Alemão, de 1919, consagraram este entendimento. Este direito coletivo garante o acesso aos cuidados de saúde para todos os cidadãos, sendo a que saúde se realiza no âmbito de toda a sociedade. O Art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, consagrou este entendimento ao propor que a "saúde é um direito de todos e um dever do Estado". A saúde passou a ser considerada como um critério de cidadania.

Com a criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, foi dado um outro entendimento do que é saúde. O modelo de abordagem biopsicossocial passou a ser incorporado e a saúde foi definida como o estado de pleno bem-estar físico, mental e social. Os aspectos biológicos foram acrescidos dos aspectos biográficos do individuo. Esta nova perspectiva também teve uma alteração de quem realiza saúde e onde que ela ocorre. Aos médicos e enfermeiros foram acrescidos todas as demais profissões da área da saúde. No Brasil, de acordo com a Resolução CNS 218/1997, são considerados profissionais de saúde:  Assistentes Sociais, Biólogos, Profissionais de Educação Física, Enfermeiros, Farmacêuticos, Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos, Médicos, Médicos Veterinários, Nutricionistas, Odontólogos, Psicólogos e Terapeutas Ocupacionais. A partir da Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978, o local onde a saúde ocorre passou a ser a rede de saúde, incluindo, além dos hospitais, os postos de diferentes níveis de complexidade. Novos profissionais e novos locais foram sendo incorporados às ações de saúde, entendida de forma mais abrangente.

Os paradigmas em saúde

Dois paradigmas são mais utilizados, o da Saúde baseada em Evidências Epidemiológicas e da Saúde baseada em Evidências Narrativas. Habitualmente, estes termos são utilizados de forma mais restrita, como Medicina baseada em Evidências e Medicina baseada em Narrativas. A opção de utilizar a expressão Saúde, ao invés de Medicina, tem como objetivo ampliar para além de um único enfoque profissional, envolvendo todos os demais participantes nas ações. 

Saúde baseada em Evidências Epidemiológicas é uma abordagem quantitativa que tende a ter  uma perspectiva de totalidade dos fenómenos estudados, ou seja, de buscar explicações que abarquem o conjunto de indivíduos, sem levar em conta as suas peculiaridades. Esta perspectiva baseada em evidências científicas, especialmente as epidemiológicas. 

Segundo Guyatt (1992), Saúde baseada em Evidências é uma abordagem que 

"retira a ênfase da intuição, da experiência clínica assistemática e de uma lógica patofisiológica como base suficiente para a tomada de decisões clínicas e enfatiza o exame das evidências da pesquisa clínica". 

Segundo este mesmo autor, esta abordagem exige novas habilidades dos profissionais e dos pacientes. Os profissionais têm que aprender a realizar buscas continuadas na literatura científica e a utilizar regras formais de avaliação destas evidências contidas nas produções científicas. 

HG Wells (1903), de forma antecipatória já havia dito que: 

"o pensamento estatístico será, um dia, tão necessário para a cidadania eficiente, quanto a habilidade de ler e escrever!"

A conjugação do pensamento estatístico com as buscas continuadas de dados publicados levou à possibilidade de estabelecer uma classificação das evidências de acordo com a confiança e validade associadas. A maneira mais comum de expressar esta classificação foi por meio da Pirâmide de Evidências Epidemiológicas. A opinião de especialistas é a evidência que tem a menor confiança e validade. No topo da pirâmide, ao contrário, estão  as revisões sistemáticas e os estudos de metanálise.

Esta é a mesma linha de pensamento da citação atribuída a W. Edwards Deming, porém não localizada em qualquer dos seus textos:

"sem dados, você é apenas uma pessoa com uma opinião". 

Porém, não basta ter apenas informações, se elas não estiverem associadas a uma perspectiva sobre o mundo, ou seja, a um paradigma. Matt Coyle (2021), fez um contraponto a proposta de Deming, ao afirmar que:
"sem uma opinião para guia-lo, você é apenas mais uma pessoa com dados".

Saúde baseada em Evidências Narrativas valoriza o individual, a singularidade, as múltiplas possibilidades de entender uma mesma situação de acordo com o paciente ou situação envolvida. É a recuperação da possibilidade de contar a histórica individual de cada pessoa, de cada paciente.  É, de acordo com Goyal e colaboradores (2008), lembrar que os pacientes tem nome e endereço, ou seja, são pessoas únicas e localizadas. A proposta destes autores é de que os profissionais de saúde devem sair dos relatos impessoais dos pacientes. 

Infelizmente, o conceito de narrativa tem sido confundido com o de versão. Narrativa, segundo Alberti (2012) é:
"é o estabelecimento de uma organização temporal, através de que o diverso, irregular e acidental entram em uma ordem, que não é anterior ao ato do relato, mas coincidente com ele; que é pois constitutiva de seu objeto."

Versão, por outro lado, são os "diferentes modos de contar ou interpretar o mesmo ponto, fato, história etc.", segundo esta mesma autora. Ou seja, a narrativa organiza um relato, informações antes dispersas que passam a fazer sentido., enquanto que a versão pode ser fantasiosa e infundada.

Zaharias (2018) ao questionar o que é Medicina baseada em Narrativa responde que é uma habilidade de contar histórias. Contar histórias é reconhecer a singularidade de cada paciente, é estabelecer e aproximar as conexões entre o profissional e o próprio paciente, é, finalmente, reconhecer que podem existir diferentes perspectivas para entender a mesma situação. Fazer a narrativa é organizar estas informações de uma maneira que permita o seu melhor entendimento por parte de todos.

Isto já havia sido descrito por Hipócrates, no seu livro Prognóstico. Neste texto, a palavra prognóstico, não se refere apenas a predizer o futuro, mas sim dar esta continuidade de informações ao longo do tempo, é estabelecer uma trajetória, uma hipótese, um modelo explicativo para a situação que busca descrever. O texto de Hipócrates estabelece que:

"Parece-me que é excelente que o médico estabeleça hipóteses. Pois, se ele investiga e relata aos seus pacientes, o presente, o passado e o futuro, antes mesmo que ocorram, preenchendo as lacunas nos relatos dados pelos doentes, ele terá mais condições de compreender os casos. Desta forma, os pacientes se entregarão a ele, com confiança, para tratamento."  

Muitas vezes estes paradigmas epidemiológico e narrativo são entendidos como sendo antagônicos, quando, na realidade, são complementares. Subbiah (2023) reenquadrou a Pirâmide de Evidências na perspectiva de um Iceberg de Evidências. A antiga Pirâmide é apenas a parte visível desta gigantesca estrutura de conhecimentos. Na parte "submersa", que aprofunda estas questões, estão incluídas as novas contribuições geradas pela tecnologia da informação, como a internet das coisas e o aprendizado de máquinas, assim como o paradigma narrativo. Os dados da História Natural, incluindo aspectos ambientais e sociais, e da história pessoal passam  a ser parte de mesmo conjunto de informações. 

Esta é a grande contribuição da teoria da complexidade: permitir esta visão integrada de paradigmas antes isolados. Não é uma fusão, uma perda de fronteiras, nem mesmo uma apropriação: é a possibilidade de diálogo, de troca de saberes entre duas diferentes perspectivas - epidemiológica e narrativa - de descrever a mesma realidade.

A abrangência da saúde

Existem múltiplas abrangências para a saúde. Os enfoques podem variar do nível individual, de uma única pessoa, até a saúde planetária, quando as questões mais amplas são abarcadas.

A perspectiva da saúde ser entendida apenas como um enfrentamento às doenças, tinha uma  perspectiva individual e biológica, baseada na pessoa doente. Saúde era o contrário da doença. O foco desta abrangência era manter e salvar a vida desta pessoa. A inclusão do bem-estar na definição de saúde proposta na criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, incluiu, além das questões biológicas, as relacionadas à saúde mental e social. Ou seja, as questões biográficas passaram a ser também consideradas. Cada ser humanos não era mais considerado apenas como um ser vivo, mas também como uma pessoa. A perspectiva da Saúde não era mais apenas preservar a vida, garantir a sobrevivência, mas também ter uma atenção ao viver, ao bem-viver, de dada um. Desta forma, os aspectos relacionais entre pessoas, antes vistos apenas na perspectiva de doenças infectocontagiosas, passaram a ter um novo olhar. 

A abrangência das questões envolvendo a saúde foi sendo progressivamente ampliada para abarcar as questões de Saúde Pública de Saúde Coletiva. Esta mudança da perspectiva individual para coletiva surgiu no final do século 19 e no início do século 20. A Saúde Pública se utilizou  dos conhecimentos gerados pela Epidemiologia, para estabelecer políticas públicas de alocação de recursos na área da saúde. Por outro lado, com a evolução do pensamento dos Direitos Humanos, alguns Estados começaram a garantir o direito à saúde, entendido como um direito coletivo e não individual. Esta inclusão da saúde como um critério de cidadania, é que permitiu o surgimento da Saúde Coletiva. A saúde pública assumiu uma proposta mais quantitativa, enquanto que a saúde coletiva passou a abordar estas mesmas questões de uma forma mais qualitativa, mais crítica e articulada. 

No final do século 20 foram incorporadas as reflexões sobre as questões ambientais. Houve a proposta de que o ambiente saudável é um direito fundamental transpessoal, ou seja, que ultrapassa inclusive a perspectiva humana. Isto acarretou também uma nova ampliação do entendimento do que é saúde, com a introdução da saúde única, da saúde global e da saúde planetária.

A perspectiva de Uma Só Saúde (One Health) surgiu de uma proposta de integração mais efetiva entre os aspectos de saúde envolvendo diferentes seres vivos, não só considerando os humanos. Nesta perspectiva a saúde humana e a saúde animal deveriam ter uma convergência e não uma atuação em paralelo. A Medicina Humana e a Medicina Veterinária devem ter uma maior proximidade, em termos de entendimento e de atuação. Inúmeras questões podem ser levantadas nesta nova visão. A pressão de sobrevivência das espécies animais selvagens que vivem em ecossistemas ameaçados ou em transformação, e que passam a ter maior interação com populações humanas é um destes temas. As diferentes formas de produção de animais para servirem de alimento é outro tema relevante. Da mesma forma, o aumento da quantidade e do tipo de interação  entre humanos e animais de estimação é outra questão importante desde o ponto de vista da saúde. Os animais de estimação passaram a fazer parte da vida diária e familiar, com maior interação e convívio, inclusive tendo estas relações reconhecidas como pertencentes a "famílias multiespécies". Os animais de estimação, assim como os animais de produção, começaram a receber medicamentos semelhantes aos utilizados por humanos, com repercussões ambientais e sanitárias importantes. A própria relação com microorganismos também mudou, ao invés de um enfrentamento, a nova perspectiva é de adaptação, de convivência segura e não de eliminação. A relação menos estudada, mas que é uma importante fronteira a ser ainda devidamente entendida, é da interação dos humanos com as plantas. As questões de saúde decorrentes do uso de alimentos vegetais, suas transformações e modos de produção, incluindo nutrição vegetal e controles de produção. Como fica evidente, a perspectiva da proposta de Uma Só Saúde exige uma perspectiva relacional e dinâmica importante.

Ampliando ainda mais esta visão, surgem a Saúde Global e a Saúde PlanetáriaA saúde global abarcando, de forma mais abrangente, o conjunto de todos os elementos anteriormente citados. É a saúde não mais na perspectiva de um país ou região, mas do conjunto dinâmico das ações sanitárias em nível supranacional. É uma abrangência que leva em conta as biorregiões. A saúde global propõe uma perspectiva abrangente para as políticas públicas. Por sua vez, a saúde planetária vai ainda mais além. O seu objeto de preocupação é o planeta como um todo, é o entendimento sistêmico e integrado da Terra como Gaia. A saúde planetária passa a incluir na saúde, as questões climáticas, o uso de recursos naturais, as diferentes formas de produção e uso de energia, as alterações de paisagens e de ecossistemas, a mineração e a emissão de gases. Estas questões mais abrangentes, que antes não eram abordadas na perspectiva da área da saúde, passaram a assumir crescente importância devido às suas repercussões.

Em uma perspectiva linear de pensamento, cada um destes diferentes níveis de saúde - saúde individual, saúde pública, saúde coletiva, uma só saúde, saúde global e saúde planetária - cada uma seria apenas uma ultrapassagem da anterior. Porém, quando estas múltiplas perspectivas são abordadas de forma complexa,  elas não são excludentes, mas se complementam, permitindo uma visão abrangente do todo, sem perder a peculiaridade de cada uma das partes.  

As múltiplas perspectivas da saúde

A bioética e a saúde, entendidas de forma complexa, expressam esta perspectiva integradora de competências científicas e humanísticas. A saúde deve ter este novo olhar integrado, que permita construir argumentos que possam servir para explicar melhor a atual situação que estamos enfrentando. Não é uma visão de escolha, de exclusão, mas sim de inclusão de múltiplas perspectivas de entendimento. A contribuição da Bioética é a de permitir uma reflexão sobre a adequação das ações envolvidas na área da saúde, em todos os seus múltiplos significados e usos.

Referências

Guyatt G. Evidence-Based Medicine. JAMA. 1992 Nov 4;268(17):2420. 

Wells HG. Manking in the making. New York: Chapman & Hall; 1903.



terça-feira, 10 de outubro de 2023

"Martha’s Rule" e a Importância da Relação dos Profissionais da Saúde com Pacientes e Familiares


José Roberto Goldim

Em outubro de 2023 o British Medical Journal publicou uma opinião sobre a questão do direito à segunda opinião por parte do paciente ou dos seus familiares.

A relação profissional-paciente-familiares vem sendo ressignificada desde os anos 1970. Inúmeros autores propuseram que a relação deveria ser mais aberta, permitindo uma efetiva troca de conhecimentos, opiniões, valores, desejos e crenças associadas. Esta troca de informações é que permite o estabelecimento do vínculo de confiança, que é a base desta interação efetiva.


Nesta nova perspectiva, as decisões não devem ser baseadas apenas na preservação da vida, da sobrevivência biológica do paciente, mas também no seu melhor interesse em termos biográficos, levando em conta o seu bem-viver. 


Em nenhum momento houve a proposta de substituir o conhecimento e a prática profissional, mas sim agregar estas outras dimensões ao processo de tomada de decisão.


Inúmeras tentativas de melhorar esta relação foram propostas em diferentes lugares do mundo e implantadas em muitos hospitais, tais como os modelos de “cultura justa”; de reconhecer a importância do “dever de candura” - entendido como dever de estar aberto e de ser honesto em suas posições; do processo de “tomada de decisão compartilhada”; das “Cartas dos Direitos do Paciente”. Todas estas tentativas visam humanizar as relações entre todos os envolvidos, buscando dar voz aos pacientes e familiares.


A própria criação das consultorias de Bioética Clínica e de outras propostas como o C4C - Call 4 Concern, implantado no Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido para os pacientes críticos, podem ser enquadrados neste mesmo tema. Ambas propostas, consultorias e C4C, permitem que outros profissionais possam ser chamados para esclarecer e auxiliar os pacientes, familiares e profissionais nos processos de tomadas de decisão.


A proposta da “Martha’s Rule”, ou seja, da Regra de Martha, surgiu em 2022, como decorrência de uma situação assistencial específica. Em 2021, uma paciente de 14 anos, Martha Mills, foi internada por um trauma de pâncreas, decorrente de uma queda de bicicleta, em um hospital de Londres. A paciente teve o seu estado de saúde progressivamente agravado, culminando com a sua morte. A sua mãe não se conformou com o atendimento assistencial recebido e  solicitou inúmeras vezes que a sua filha fosse avaliada por outros profissionais, com a finalidade de obter uma segunda opinião. A sua solicitação não foi atendida. 


A mãe de Martha, Merope Mills, que é editora do jornal inglês The Guardian, começou uma campanha com a finalidade de garantir o direito de segunda opinião aos pacientes e familiares. Esta campanha culminou, em outubro de 2023, com a publicação de um artigo de opinião no British Medical Journal. Neste seu artigo ela  descreveu o que ocorreu e pediu que este direito seja efetivado em todos os hospitais do Reino Unido.


Além da não realização da segunda opinião, ela também descreveu outras situações, tais como o não registro em prontuário das interações de médicos assistentes, da falta de cuidados aos finais de semana e, especialmente, no descaso em ouvir as suas questões e opiniões. Posteriormente, o King’s College Hospital assumiu que houve uma negligência no cuidado desta paciente.


A “Martha’s Rule” estabelece a garantia do paciente em ter uma segunda opinião, em ser ouvido em suas necessidades.


No Brasil esta situação já é garantida pelo Código de Ética Médica desde a sua edição de 1988. O Art. 64 deste Código estabelecia que o médico não pode “Opor-se à realização de conferência médica solicitada pelo paciente ou seu responsável legal”. Na versão atualmente vigente do Código de Ética Médica, publicada em 2018, esta situação foi melhor esclarecida. O Art. 39 veda ao médico “Opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião solicitada pelo paciente ou por seu representante legal”.


A garantia do direito do paciente e de seus familiares em ter uma segunda opinião é clara, assim como o estabelecimento do dever dos profissionais em respeitar esta possibilidade, já existem e estão devidamente documentadas. A dificuldade é tornar estas possibilidades em ação, é permitir o efetivo exercício destes direitos. Não é uma situação que dependa da existência de um marco regulatório, mas sim de uma cultura institucional e social que inclua os pacientes como participantes ativos em todo o seu processo de cuidado. 


Desde a antiguidade, a relação de confiança entre o médico e o paciente é reconhecida como fundamental. Hipócrates já afirmava que o médico deve informar o paciente adequadamente sobre a sua condição de saúde e dos prognósticos. Ele afirmava que este processo é fundamental para gerar a confiança necessária à preservação da adequada relação médico-paciente.


Resumindo, a comunicação efetiva, o registro adequado da evolução do quadro de saúde, a escuta ativa e empática, além da consideração abrangente dos múltiplos aspectos de vida e viver de todos os envolvidos na relação, são as condições que permitem uma relação entre pessoas que possa gerar uma confiança que se preserva, mesmo em situações críticas. É garantir que a voz do paciente será ouvida.


Bibliografia


Mills M. Martha’s rule: a hospital escalation system to save patients’ lives. BMJ. 2023 Oct 9;(October):p2319. Disponível em: https://www.bmj.com/lookup/doi/10.1136/bmj.p2319


Curtis P, Wood C. Marthas’s Rule: a new policy to amplify patient voice and improve safety in hospitals. DEMOS [Internet]. 2023;(September). Disponível em: https://demos.co.uk/research/marthas-rule-a-new-policy-to-amplify-patient-voice-and-improve-safety-in-hospitals/


Bittencourt ALP, Quintana AM, Goldim JR, Wottrich LAF, Cherer E de Q. A voz do paciente: por que ele se sente coagido ? Psicol em Estud. 2013;18(1):93–101. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pe/a/wCm9rV8NMzyJcWj9MPqZpmQ/

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Prognóstico e Complexidade

 José Roberto Goldim



Nesta semana, um amigo - Antonio Fabiano Ferreira Filho - me repassou uma cópia da avaliação de um aluno no Eton College, uma das mais tradicionais escolas inglesas. Neste documento, de 1949, o professor de Biologia faz uma série de comentários sobre o desempenho de um de seus alunos, chamado John Gurdon, então com 16 anos.




Tradução da avaliação
 
Foi um semestre desastroso. Seu trabalho está longe de ser satisfatório. O material preparado foi mal aprendido e nos testes as respostas estavam fragmentadas; em um desses trabalhos obteve dois pontos de 50 pontos possíveis. Seu outro trabalho foi igualmente ruim,  e várias vezes ele teve problemas, porque não quer ouvir, mas insiste em fazer seu trabalho à sua maneira. Acredito que ele tenha ideias sobre se tornar um cientista; o momento presente demostra que isso é bastante ridículo, se ele não puder aprender fatos biológicos simples, ele não terá chance de fazer o trabalho de um especialista, e seria pura perda de tempo, tanto de sua parte quanto de quem tem para ensiná-lo.


Em 1962, John Gurdon demonstrou que o processo de diferenciação celular não era apenas unidirecional. Até então, o processo era descrito como irreversível. Nesta perspectiva, as células não diferenciadas se diferenciam ao longo do processo de desenvolvimento de cada ser vivo. As células, uma vez diferenciadas, não mais podiam retornar aos seus estágios anteriores. A sua contribuição, que foi baseada em experimentos envolvendo células de anfíbios, romperam com o pensamento linear e unidirecional, então vigente. Esta, e outras inúmeras contribuições semelhantes, permitiram, ao longo da década de 1960, uma nova perspectiva mais complexa e abrangente para os fenômenos biológicos e para a compreensão da própria natureza. 

Esta contribuição ao conhecimento dos processos de diferenciação e de desdiferenciação celular foi fundamental para o desenvolvimento dos experimentos de clonagem, realizados posteriormente. Ele, inclusive, publicou artigos sobre os impactos e perspectivas futuras da clonagem, no final da década de 1990.

Em 2012, Sir John Gurdon recebeu o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela sua descoberta de que células maduras podem ser reprogramadas para serem pluripotentes. Este prêmio foi dividido com Shinya Yamanaka, da Universidade de Quioto no Japão. 

É importante destacar que, na breve apresentação de Sir John Gurdon, como laureado com  o prémio Nobel, consta a referência a este parecer de seu professor.

Sir John Gurdon é professor na Universidade de Cambridge, desde 1971. Ele obteve o seu título de doutor na Universidade de Oxford e trabalhou por alguns anos no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), em Pasadena.

Vale relembrar que desde a educação básica, ele sempre desejou ser cientista. Mas nem sempre foi reconhecido e aceito como sendo um aluno capaz de vir a dar alguma contribuição. Talvez ele não se enquadrasse na perspectiva esperada de dar respostas de acordo com as expectativas dos professores. Isto estava expresso na avaliação de 1949: "insiste em fazer seu trabalho à sua maneira". Esta forma diferente de pensar, de reenquadrar a realidade, é que justamente permitiu fazer as descobertas que fez. Ele não se limitou a replicar o conhecimento então estabelecido, ele rompeu com conceitos tidos como incontestáveis. Ele realmente deu uma contribuição disruptiva ao conhecimento dos processos celulares. 

Estudos como os realizados por Sir John Gurdon desafiaram os paradigmas então vigentes, assim como tantos outros ao longo dos anos 1960. Os resultados deste estudo foi um dos tantos desafios que provocaram a necessidade de pensar sobre a adequação das pesquisas e das ações assistenciais. Desta necessidade de refletir é que surgiu o ambiente propício ao desenvolvimento da Bioética ao longo da década de 1970.


Referências

Gurdon, J. B. (1962). «The developmental capacity of nuclei taken from intestinal epithelium cells of feeding tadpoles». Journal of Embryology and Experimental Morphology10: 622–640.

Gurdon, J. B.; Colman, A. (1999). «The future of cloning». Nature402 (6763): 743–746.

MLA style: Sir John B. Gurdon – Facts. NobelPrize.org. Nobel Prize Outreach AB 2023. Sun. 2 Apr 2023. <https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2012/gurdon/facts/>


quarta-feira, 16 de junho de 2021

COVID-19, vacinação e relaxamento das medidas de proteção individual e coletiva

 José Roberto Goldim


Com o aumento das taxas de cobertura vacinal na população de alguns países, os governos estão retirando medidas de proteção individual e coletivas que haviam sido impostas às populações. Esta posição deve ser avaliada com a prudência necessária a todas as situações de risco.

Esta reflexão deve ser feita desde o ponto de vista pessoal e coletivo.

Desde o ponto de vista individual, não existe  vacina capaz de proteger integralmente às pessoas. Ou seja, não tem como garantir que a pessoa, uma vez vacinada, está isenta de riscos de vir a se contaminar novamente e manifestar a doença. O que se sabe, até o presente momento, é que havendo uma nova manifestação da doença, existe a possibilidade de que ela seja menos grave. 

Desde o ponto de vista coletivo, a vacina também não impede o contágio de outras pessoas. As pessoas vacinadas fazem um bloqueio de transmissão, mas não um impedimento total. Quanto mais pessoas vacinadas, menor a possibilidade de contaminação entre os membros de uma população.  O importante é saber a partir de qual percentual da população vacinada o risco coletivo de contaminação efetivamente diminui. 

Desde o ponto de vista teórico, o modelo matemático da percolação, estabelece este valor em 50%. Ou seja, a partir deste valor de conexões estabelecidas, a frequência de novas conexões tende a diminuir. No caso da COVID-19 este valor talvez seja maior, em função do aumento da transmissibilidade das novas variantes do vírus. A estimativa mais frequentemente utilizada está ao redor de 70% da população ser vacinada para que haja a possibilidade de uma efetiva redução de novos casos.

A vacinação, desde o ponto de vista individual, reduz a gravidade da doença e, consequentemente, a mortalidade, e, desde o ponto de vista coletivo, o número de pessoas que se contaminam. Estes resultados já estão sendo evidenciados em diferentes estudos.

Desta conjugação de perspectivas individuais e coletivas é que surge a necessidade de manter as medidas mínimas e efetivas de proteção. Isto é necessário, pois em várias partes do mundo a pandemia ainda está com altíssimas taxas de transmissão. Da mesma forma, o número de mortes não é uniforme nos diferentes países e regiões dos continentes e os programas de vacinação apresentam desigualdades, inclusive dentro de países com disponibilidades de vacinas. 

O retorno progressivo das viagens internacionais, mesmo com testagem prévia negativa e com a exigência de vacinação, reduz, mas não elimina o risco de novas contaminações. Vale lembrar que os testes, também não tem uma sensibilidade e uma especificidade que garantam que aquela pessoa específica não seja transmissora. Formas leves da doença não são auto-evidentes, mas ainda assim tem potencial de transmissão.

A vacinação, a testagem e as medidas de prevenção, como o uso de máscaras, são os melhores meios de enfrentamento à pandemia.

Para ler mais:

Atualização em 25/07/2021
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/07/22/medo-de-escassez-de-comida-cresce-no-reino-unido-por-isolamento-contra-covid


segunda-feira, 26 de abril de 2021

COVID-19: Passaporte Imunológico ou Certificado de Vacinação

 José Roberto Goldim


A atual discussão a respeito da exigência de alguns países sobre a vacinação de COVID-19 não é uma novidade. Até o presente momento o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) da Organização Mundial da Saúde ainda não se manifestou sobre a inclusão da COVID-19 no Certificado Internacional de Vacinação ou Profilaxia (CIVP).

O Certificado Internacional de Vacinação ou Profilaxia (CIVP) é um documento que já existe há muito tempo e serve para comprovar que uma pessoa está imunizada para determinadas doenças, especialmente contra a Febre Amarela, mas também contra a Meningite e Poliomielite. O Certificado para a Febre Amarela é exigido para mais de 100 países, enquanto que para a Meningite e para a Poliomielite esta exigência cai para quatro países. No passado este documento foi fundamental para a erradicação da Varíola. O Certificado tem duração diferenciada de acordo com o tipo de doença. 

De acordo com o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), os países podem estabelecer restrições aos viajantes que ingressam nos seus territórios, com base em questões sanitárias. 

No caso de alguma pessoa ter uma situação de saúde que a impeça de ser vacinada, a Organização Mundial da Saúde já prevê a possibilidade de que o seu médico assistente possa emitir um atestado de isenção de vacinação. O importante é que o documento seja redigido em inglês ou francês e contenha todas as informações que permitam avaliara adequadamente esta situação especial de saúde. Os países, em geral, aceitam este atestado de isenção de vacinação como substituto do Certificado de Vacinação. 

O Certificado visa proteger as populações contra a entrada de pessoas com uma doença imunizável em seu território e a possibilidade de que o viajante possa ser infectado em sua estada. É uma política sanitária adequada de proteção individual e coletiva.

A proposta de emitir um Passaporte Imunológico para COVID como forma de relaxar medidas de distanciamento social, uso de máscaras ou outras formas de proteção, com base em resultados de exames ou de vacinação prévia é altamente discutível. A própria denominação Passaporte Imunológico não é recomendável. A denominação de Certificado Internacional de Vacinação é que deveria ser utilizada. 

As vacinas utilizadas para a emissão dos Certificados Internacionais de Vacinação atuais são conhecidas e tem sua efetividade e duração comprovadas. As vacinas para a COVID-19 ainda não tem estudos suficientes para gerar os dados sobre a duração do  seu efeito. Vale lembrar que os países não aceitam toda e qualquer vacina, mas, em geral, as que foram utilizadas para imunizar a sua população local. O Certificado para as outras doenças - Febre Amarela, Poliomielite e Meningite - tem prazo de validade estabelecido.

A exigência de um Certificado de Vacinação não é discriminatória na medida em que a vacina esteja disponível para toda a população, caso contrário são criados grupos de pessoas com e sem este privilégio de acesso. O importante é disponibilizar, é oferecer a possibilidade de que todos tenham a possibilidade de serem vacinados. Ou seja, é ter uma política sanitária justa e inclusiva.

Já ocorreram propostas de empresas privadas oferecerem a emissão de Passaportes Imunológicos virtuais para garantir a entrada em diferentes tipos de eventos ou locais de convívio social. Esta proposta sim pode ser discriminatória, pois poderá estabelecer desigualdades em função de alguma forma de contrapartida para quem for emitir este "passaporte", até mesmo pela simples necessidade de ter um telefone celular. Esta é uma atribuição da autoridade sanitária, justamente para permitir a universalização de fornecimento deste documento.

O Ministério da Saúde está emitindo uma Carteira de Vacinação Digital, inclusive com um QRCode, para facilitar a sua leitura. Este documento está sendo emitido com validade de um ano, desde a data de sua emissão, independente da data na qual a pessoa foi vacinada. Ele tem validade apenas no país, pois não está escrito em inglês ou francês, como é preconizado pelo Regulamento Sanitário Internacional. É importante salientar que no próprio documento é salientado que o mesmo não é de uso obrigatório e que não pode ser utilizado "para fins discriminatórios". Ou seja, a Carteira de Vacinação Digital não é um Certificado Internacional de Vacinação nem um Passaporte Imunológico.

Na discussão social, principalmente para contestar esta prática, sido utilizado o argumento  da liberdade individual. O contraponto da liberdade individual é a segurança decorrente de viver em comunidade. Existe um falso dilema entre independência individual e dependência comunitária. A superação desta visão tida como mutuamente excludente é buscar o equilíbrio entre estas duas características. Quando se aceita que a discussão não é um jogo de "ganha-perde", ou seja, uma opção pela independência ou pela dependência, surge a possibilidade de ter o entendimento mais abrangente e adequado. A percepção de que o importante é discutir a interdependência é fruto desta superação. Esta persepectiva dialógica de uma abordagem conjunta da dependência e da independência é que permite vislumbrar novas alternativas para este problema.

Texto atualizado em 25/07/2021





sábado, 10 de abril de 2021

COVID-19 e Comunicação de Informações em Saúde

 José Roberto Goldim


As instituições de saúde, especialmente os hospitais, tiveram que adaptar rapidamente os seus sistemas e processos de informação e comunicação às restrições impostas pela alta taxa de contaminação da COVID-19. Muitos sistemas de informação utilizados apenas nas redes internas e fechadas dos hospitais tiveram que ser disponibilizados aos profissionais de saúde que poderiam estar realizados as suas atividades de forma remota. Os sistemas de prontuários passaram a poder ser acessados de forma não mais apenas local.

O desafio foi manter as medidas de segurança vigentes com este novo grau de compartilhamento de informações.

Todas as informações pessoais dos pacientes passaram a trafegar por redes externas, demandando estratégias de segurança nunca antes pensadas, mas agora necessárias.

As respostas foram as mais diversas. Muitas delas utilizando recursos disponíveis na internet de forma gratuita, outras que demandaram a geração de novos softwares desenvolvidos nas próprias instituições. As soluções obtidas, pelo menos com os conhecimentos disponíveis até o presente momento, permitiram dar uma boa segurança a estes dados.

O maior desafio foi manter a qualidade das informações e a segurança associadas a elas, assim como as normas legais sobre tratamento e distribuição de informações de saúde, mesmo durante uma emergência sanitária mundial.

Outra questão fundamental foi manter os membros das famílias informados sobre os pacientes. Em muitas situações os familiares não tinham a possibilidade de contato direto com o paciente, nem com o profissional de saúde. Foram utilizadas inúmeras formas de comunicação, a maioria utilizando aplicativos convencionais disponíveis para a realização de vídeo chamadas. Foi um grande desafio para os profissionais de saúde se adaptarem a dar estas informações de uma maneira diferente. Uma situação, antes da pandemia tida como inaceitável, passou a ser incorporada: as comunicações de óbito aos familiares.

Algumas questões  bioéticas tiveram que ser novamente discutidas para manter a adequação destas novas modalidades. As principais questões foram as associadas à preservação do direito a privacidade dos pacientes e suas famílias e a maneira adequada de realizar esta comunicação. 

Os pacientes, mesmo em situações de emergência e risco de vida, mantém o direito de terem as suas informações, imagens e o próprio corpo preservado de exposições desnecessárias. 

Os profissionais de saúde tem o dever de confidencialidade associado a  todas as diferentes formas de comunicação com outras pessoas, sejam elas parentes, amigos ou terceiros envolvidos, como, por exemplo, empregadores.

O Artigo 73 do Código de Ética Médica, Resolução CFM 2217/2018, veda ao médico fazer qualquer revelação de conhecimento adquirido no exercício da sua profissão, ou seja as informações privilegiadas que teve acesso. Este mesmo artigo permite que as informações sejam compartilhadas em três situações: 

1) A comunicação é admitida quando o paciente autoriza o médico a fazer esta revelação. É uma garantia de que o paciente dando o seu consentimento, o profissional possa compartilhar as informações que foram autorizadas expressamente pelo paciente. 

2) Outra exceção à confidencialidade é quando existe dever legal associado a esta divulgação de forma restrita, como por exemplo nas doenças de comunicação compulsória. É importante destacar que a autoridade que recebe estas informações também tem um dever de confidencialidade associado. 

3) A última possibilidade é por motivo justo. A comunicação aos familiares de um paciente, que não autorizou, de forma prévia e expressa às equipes de saúde, pode ser feita utilizando esta exceção de confidencialidade por motivo justo. É adequado que os familiares recebam informações sobre o estado de saúde do paciente. ´Porém, esta situação deve ser avaliada com cuidado e balizada pelos limites da relação entre a privacidade e a confidencialidade.

O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) se manifestou por meio do Parecer 131045/20, de 10/03/2021 sobre a realização de videochamadas envolvendo pacientes internados ou sedados. Neste documento, aprovado pelo CREMESP, há o entendimento de que é "absolutamente proibida a exposição... dos pacientes" nestas condições. Esta opinião se fundamentou no Parecer CFM 05/2016  do Conselho Federal de Medicina (CFM), e no Parecer CREMESP 18692/2016, ou seja, ambos documentos publicados anteriormente a situação vigente de excepcionalidade da atual pandemia. É uma posição meramente formalista de aplicação do dever de confidencialidade, ou seja. com a total desconsideração da situação atual e das suas circunstâncias. Descontextualizar esta situação é negar que ocorreram mudanças significativas. Uma circunstância que merece ser destacada é a mudança de hábitos da sociedade. As novas formas de comunicação foram se incorporando ao cotidiano das pessoas. Na vigência das atuais restrições de acesso dos familiares aos ambientes assistenciais, as video chamadas podem ser a única maneira de contato, de uma conviência mínima. Este tipo de videochamada pode ser uma maneira de tranquilizar os familiareas, pode dar conforto para os pacientes e, principalmente, pode ser a única maneira, em muitas situações, de realizar algum tipo de despedida. Este é o fundamento desta nova forma de comunicação, é este o valor a realizar. Menos mal que é apenas um Parecer, ou seja uma opinião, e não uma resolução. Vale lembrar que o CREMESP atinge apenas os médicos que atuam em São Paulo.  Este Parecer não tem efetividade para os médicos de outros estados e muito menos em relação aos demais profissionais de saúde, mesmo no estado de São Paulo. A confidencialidade e a privacidade se mantém, especialmente nestas novas configurações, como dever e como direito associados às comunicações entre profissionais, pacientes e seus familiares.  

Por isso, é fundamental destacar algumas características associadas à comunicação efetiva:

  • Capacitação adequada do profissional;
  • Identificação adequada das pessoas envolvidas no processo;
  • Momento adequado;
  • Relação adequada;
  • Processo adequado.

A capacitação adequada passa pelo equilíbrio entre as competências científicas e humanistas do profissional. O profissional deve ter os conhecimentos dos diagnósticos e do quadro geral de saúde do paciente, assim como dos procedimentos, técnicas e tecnologias que estão sendo utilizadas. Por outro lado, deve ser capaz transmitir estas informações de forma acessível de modo a estabelecer uma relação de confiança com os familiares visando um mínimo de tranquilidade em um momento tão delicado na vida de todos. O profissional deve estar atento não apenas aos aspectos biológicos do paciente, mas também aos aspectos biográficos, isto é, buscando integrar as questões da vida e do viver. Este processo de comunicação não deve ser apenas uma experiência, mas também uma vivência singular para todas as pessoas envolvidas, inclusive o profissional.

O profissional deve estar capacitado para lidar com a incerteza associada às situações de saúde e cuidado do paciente. As situações de incerteza geram ansiedade, são difíceis de lidar por todos. A incerteza deve ser entendida como a impossibilidade da certeza. A noção de risco, muitas vezes, está além da compreensão das pessoas leigas. Além da incerteza, a concordância entre as informações também é fundamental. As informações dadas pelos profissionais são cotejadas com as disponibilizadas por amigos, em redes sociais e por outras pessoas. Nem sempre as informações concordam. Sem concordância e com alto grau de incerteza associado, a interação entre o profissional e os familiares, que é por definição complexa, pode se tornar caótica. 

A identificação das pessoas envolvidas no processo de comunicação é fundamental para preservar a privacidade do paciente. Saber quem é a pessoa de referência para contato e troca de informações é um fator de extrema importância. A melhor alternativa ocorre quando o próprio paciente estabelece quem irá receber as notícias por parte dos profissionais. Porém, isto nem sempre é possível. Os profissionais de Serviço Social podem auxiliar muito nesta etapa. Podem identificar as pessoas mais envolvidas com o paciente antes da sua internação. Não é incomum dar informações às pessoas erradas. Isto deve ser cuidadosamente checado no início do processo de comunicação. As pessoas devem ser identificadas pelo seu nome e não pelo seu vínculo familiar apenas. Em algumas situações os profissionais fazem registros de quadros de saúde no prontuário de um paciente que se referem a outros pacientes que estão sob seus cuidados. Posteriormente, acabam registrando uma nota de correção ou esclarecendo que aquelas informações devem ser desconsideradas, mas o registro permanece. Nas comunicações verbais isto também não é incomum. Algumas vezes, os profissionais podem se confundir e compratilham informações que não se referem ao paciente daqueles familiares. 

Outra situação, que não é rara, é o profissional ter que se comunicar para mais de um núcleo familiar. As estratégias pode ser variadas. Quando há um mínimo de harmonia entre estas pessoas, a comunicação pode ser simultânea, mas algumas vezes não. Isto exigirá que o profissional faça mais de uma comunicação sobre as mesmas informações para diferentes pessoas de diferentes vínculos familiares. O fato de alguém se apresentar como membro da família ou como amigo, não credencia uma pessoa para receber notícias sobre o paciente. O familiar de referência poderá ser a pessoa responsável por divulgar as informações no âmbito destas outras pessoas. 

O momento adequado da comunicação é importante. As informações relevantes devem ser compartilhadas. Muitas vezes pelo temor associado à reação das pessoas, a comunicação de informações é retardada. Algumas vezes o quadro de saúde evolui de foram rápida, surpreendendo a todos que não haviam sido adequadamente informados. Não é um simples repasse imediato de dados sobre o paciente, mas uma ação estratégica onde o tempo e o ritmo da evolução devem ser sempre considerados. O momento adequado também se refere ao tempo disponível para ter esta interação. Pode ser importante balizar aos demais participantes quanto tempo o profissional dispõe para esta atividade.

A forma de comunicar é fundamental. Assumir uma comunicação não-violenta ou empática é extremamente importante. Não julgar é a regra. A comunicação empática é colaborativa, é acolhedora. Ele gera uma sensação de pertencimento e não de competitividade entre as pessoas que estão se comunicando. É a maneira de demonstrar que o nosso interesse central é o paciente e os seus familiares.

A relação adequada é fruto destes cuidados anteriores de se apropriar das informações, de identificar as pessoas com as quais irá se comunicar e de estabelecer o momento adequado. Quando possível, é importante comunicar as decisões clínicas tomadas antes de executá-las. Os familiares poderão compartilhar com a equipe as crenças, valores e desejos do paciente, caso este esteja impossibilitado de se comunicar com a equipe. Isto, quando possível, é importante para evitar que os familiares sejam surpreendidos por ações já realizadas.

Existem inúmeros protocolos de comunicação efetiva, tais como o SPIKES e o ABCDE. Todos os protocolos têm vários pontos em comum. 

1) O importante é haver uma preparação adequada do profissional para realizar a comunicação, ou seja, se apropriar das informações e adequar a terminologia à compreensão por parte do paciente ou dos familiares. 

2) Construir um ambiente e uma relação terapêutica é outro ponto significativo para o sucesso da comunicação. 

3) Estar capacitado para realizar uma comunicação efetiva é igualmente importante. Isto implica em balizar a comunicação no interesse dos participantes e das informações anteriores. Perguntar o que os pacientes ou familiares já sabem sobre o quadro de saúde é extremamente importante. Da mesma forma, questionar o que eles desejam saber serve como um balizador para aliviar as expectativas.

4) Os profissionais devem saber lidar com as reações dos pacientes e familiares ao longo da comunicação. Não devem ser feitos julgamentos associados a estes tipos de comportamentos, mas sim dar apoio e acolhimento.

5) O profissional deve encorajar e validar as emoções dos pacientes e dos familiares associadas às informações comunicadas. Da mesma forma, também pode expressar as suas emoções associadas a esta situação que está sendo vivenciada por todos os participantes. A experiência de comunicação é única, mas as vivências são diferenciadas de pessoa para pessoa.

Ao final da comunicação o profissional deve programar um próximo encontro e enfatizar que a equipe profissional está envidando todos os esforços no sentido de atender adequadamente as necessidades de atendimento do paciente. 

Para saber mais:

Rosemberg M. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora; 2006.

Souza J, Ostermann AC. “Tudo bem”, “tudo em paz” e “uma tremenda sorte”: Avaliações positivas no gerenciamento da incerteza na comunicação entre oncologistas e pacientes com câncer de mama. Rev Estud Da Ling. 2017;25(2):609. 

Rabow MW, McPhee SJ. Beyond breaking bad news: How to help patients who suffer. West J Med. 1999;171(4):260–3. 

Baile WF, Buckman R, Lenzi R, Glober G, Beale E a, Kudelka a P. SPIKES-A six-step protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. Oncologist. 2000 Jan;5(4):302–11. 

Pires AP. Comunicação de Más Notícias. Site Bioética, 1998.

Goldim JR. Fases do Processo de Entendimento de Más Notícias. Página de Bioética, 1998.



Texto originalmente publicado em 22/11/2020 e modificado em 10/04/2021

domingo, 7 de fevereiro de 2021

COVID-19 e a utilização de vacinas fora do Programa Nacional de Imunização

 

José Roberto Goldim


O Brasil tem uma longa e reconhecida atuação na área de imunização. O Programa Nacional de Imunização (PNI) existe, de forma estruturada e atuante, desde 1973. Contudo, as discussões sobre vacinas e saúde pública remontam ao início do século 20, com o enfrentamento da varíola e da febre amarela. O PNI é anterior a estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS).

A estrutura do SUS, estabelecida pela Lei 8080/1990, permite a possibilidade da participação de serviços privados de assistência à saúde (Art. 20). Estes serviços privados também deverão observar os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento (art.22).

Estas duas considerações são importantes para delimitar as articulações privadas, propostas nas duas primeiras semanas de janeiro de 2021, visando a compra, distribuição e aplicação das vacinas para COVID-19. Vale lembrar que, salvo alguma outra proposta não adequadamente divulgada, estas foram as primeiras tentativas de compra privada de vacinas durante a pandemia. 

Estas duas iniciativas, uma da Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas (ABCVAC), e outra de um grupo de empresários, que buscam complementar as ações já em andamento do PNI na área das vacinas COVID-19.

A ABCVAC afirma ter uma possibilidade de compra de cinco milhões de doses da vacina produzida pela empresa Bharat Biotech da Índia. Estas doses seriam disponibilizadas para a venda na rede de clínicas de vacinação associadas a ABCVAC.

A ABCVAC alegou que a sua proposta é adequada e dentro das propostas do SUS, no sentido de que em outras campanhas de vacinação estas mesmas clínicas também vacinavam as pessoas fora do âmbito do SUS.

A vacina da Bharat Biotech ainda não teve os resultados dos estudos fase 3 publicados, o que dificulta a liberação, ainda que em caráter emergencial, para uso assistencial. Uma outra exigência, de ter estudos clínicos realizados no Brasil, foi flexibilizada pela ANVISA em decisão recente envolvendo outra vacina.

Por sua vez, o grupo de empresários afirmou ter tido uma oferta de venda, por parte de um dos investidores da vacina da AstraZeneca, de um lote de 33 milhões de doses, com uma compra mínima de 11 milhões de doses. Os empresários fizeram uma proposta ao governo federal de que doariam metade das doses para serem aplicadas no SUS.

A oferta de uma doação de doses de vacinas, complementarmente àquelas utilizadas fora dos critérios do PNI, pode parecer atraente, mas, na realidade, é prejudicial, pois é uma "doação condicionada", ou seja, deixa de ser uma doação e  passa a ser uma troca.

Os valores da compra de cada dose, segundo esta oferta do investidor, seriam cerca de quatro vezes superiores aos pagos pelo governo federal pela mesma vacina, sem contar com a possibilidade de serem acrescidos impostos a estes valores. Uma outra dificuldade adicional seria a liberação de compra de vacinas e medicamentos por empresas que não negociam habitualmente estes produtos. Haveria a necessidade de um prévio cadastramento específico junto aos órgãos governamentais.

A AstraZeneca e o fundo, citado como sendo o investidor que iria vender a sua cota de vacinas, desmentiram publicamente a possibilidade desta transação. A AstraZeneca informou que na atual situação estaria vendendo vacinas apenas para governos ou organizações multilaterais.  Vale lembrar que, naquele mesmo período, a empresa farmacêutica estava sendo pressionada pela Europa para cumprir os prazos de entrega de compras já contratadas.

Após estas manifestações, não ficou claro quem estaria negociando esta venda aos empresários e muito menos as condições de compra divulgadas. 

Ambas as propostas visavam atender a uma demanda semelhante: vacinar trabalhadores de setores privados visando a sua imunização para garantir a continuidade das atividades econômicas. Na proposta dos empresários havia também proposta de estender esta vacinação também aos familiares.

A primeira manifestação do governo, a estas duas propostas, foi no sentido de que o PNI teria cobertura suficiente para atender a estas demandas. Houve a manifestação do governo federal no sentido de que não seriam autorizadas compras privadas de vacina de que, neste momento, o fornecimento será centralizado pelo Ministério da Saúde. Contudo, em menos de uma semana, houve uma mudança no sentido de que esta proposta, em especial a dos empresários, seria bem-vinda. E o governo federal, inclusive encaminhou uma carta à empresa AstraZeneca manifestando a sua aprovação a esta proposta de compra privada.

Alguns empresários, que haviam sido citados como membros deste grupo, desmentiram que estavam interessados em vacinar apenas seus funcionários. Afirmaram que apenas fariam uma compra privada se todas as doses fossem doadas ao SUS e que não aceitariam a quebra das prioridades estabelecidas no PNI..

A reação da população a esta proposta foi avaliada em uma pesquisa de opinião publicizada, envolvendo 2500 pessoas de todo o Brasil, divulgada em 05 de fevereiro. Apenas 33% das pessoas entrevistadas se manifestaram no sentido de achar justa a vacinação de pessoas para a COVID-19, na atual situação sanitária vigente. Nos resultados, o grupo de pessoas, com renda superior a dez salários mínimos, teve a maior aceitação, com 60% aceitando como justa a possibilidade de vacinação paralela ao SUS.

Inúmeros outros grupos de profissionais também se manifestaram no sentido de conseguirem antecipar a sua vacinação fora dos critérios estabelecidos pelo PNI. Em algumas propostas esta antecipação seria estendida também aos seus familiares. Em algumas destas propostas havia inclusive o custo por pessoa, que seria de R$800,00. Em outros grupos, houve a solicitação de liberação de vacinas do SUS por critérios não estabelecidos no PNI.

A direção do Hospital Sírio Libanês fez uma solicitação ao seu Comitê de Bioética no sentido de se manifestar sobre este tema. No dia 29 de janeiro o Comitê de Bioética do Hospital Sírio Libanês de manifestou por meio de parecer, divulgado pela própria instituição, no sentido da inadequação ética desta proposta. O parecer utiliza uma clara e adequada argumentação ética para justificar que “a compra e distribuição de doses de vacina pela iniciativa privada, gerando a vacinação de indivíduos fora dos grupos prioritários que mais se beneficiam, fere os princípios fundamentais da equidade, da integralidade, da universalidade e da justiça distributiva, ferindo não só os próprios fundamentos do SUS, mas também a própria lógica que gera o benefício de uma campanha de vacinação”.

O Comitê de Bioética Clínica do HCPA aprovou uma nota de apoio ao parecer do Comitê de Bioética do Hospital Sírio Libanês. A Rede de Comitês de Bioética, que é um grupo ainda informal, está solicitando que outras instituições também se manifestem em relação a este mesmo parecer.

Em situações de escassez de recursos, como a vigente em relação a imunização para a COVID-19, os critérios de alocação devem ser discutidos com a sociedade, como um todo, e não apenas por setores específicos. Estes critérios de alocação têm que ser eticamente defensáveis. Os critérios diferenciarão grupos, mas não podem discriminar,  por este mesmo motivo. As características utilizadas devem ser diretamente vinculadas à situação de de emergência ou catástrofe associadas à alocação destes recursos. É fundamental que haja visibilidade e clareza na apresentação dos critérios de alocação.

A abordagem de situações como esta deve envolver a avaliação da adequação aos princípios da dignidade, da liberdade, da integridade e da vulnerabilidade. 

Todas as pessoas devem ter a sua dignidade preservada. É um critério que une a todos, sem distinção.

Na vigência de uma situação de emergência sanitária mundial, tão grave quanto a que estamos enfrentando na pandemia da COVID-19, todos também estamos em uma situação de vulnerabilidade. Todas as pessoas estão necessitando de alguma forma de proteção adicional, seja em qual âmbito de necessidade física, mental ou social.

As escolhas de grupos prioritários devem ser feitas com base na preservação da integridade pessoal e coletiva. A adequada avaliação de riscos associados a cada grupo de pessoas deve ser cotejada com os correspondentes benefícios da medida de imunização. Os fatores de exposição, de continuidade de exposição ao vírus, de maior risco de manifestações graves, de maior taxa de letalidade, são exemplos de critérios que podem orientar esta avaliação envolvendo a integridade. 

A liberdade das pessoas é um bem fundamental, que deve ser considerado. O equilíbrio entre a liberdade pessoal e a segurança da vida em grupo é imprescindível. Utilizar a liberdade individual como justificativa para esta ação complementar ao SUS só se justifica no em situações onde não haja escassez de recursos. 

Na atual situação mundial de pandemia, com grande de escassez de recursos, que irá perdurar por um longo período, permitir uma ação paralela, e não complementar seria quebrar esta questão da equidade. 

O PNI estabeleceu critérios de priorização para o recebimento de vacinas. Esta deve ser a estratégia a ser seguida. O acesso a um sistema complementar deve ser um opção, uma escolha da pessoa, mas nunca uma situação de oportunidade desigual.


Para ler mais:

Bermudez J. Pandemia, solidariedade e vacinas: disputa predatória no mundo. E o Brasil? Conselho Nacional de Saúde, 01/02/2021.

Hospital Sírio Libanês - Comitê de Bioética. Parecer do Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês sobre a ética da compra privada de vacinas contra COVID19 durante situação de pandemia. 2021;(29/01). 

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

COVID-19, incerteza, ambiguidade e ansiedade

 José Roberto Goldim


Na década de 1970, Tversky e Kahneman realizaram pesquisas sobre a questão de fazer julgamentos em cenários de incerteza. Eles propuseram que a ambiguidade surge da falta de qualidade, de quantidade e da coerência entre as informações disponíveis sobre um determinado assunto.

O cenário que estamos vivendo durante a pandemia tem como características: um excesso na quantidade de informações, com uma qualidade duvidosa e com muita incoerência entre as mesmas. 

Quanto a qualidade da informação, a pandemia tem gerado uma produção científica impressionante. O volume de artigos publicados é gigantesco. Em menos de um ano, foram indexados na base PUBMED, mais de 104 mil artigos. Isto significa um artigo novo a cada cinco minutos. O desenvolvimento de inúmeras vacinas e a realização de pesquisas sobre a sua segurança, tolerabilidade e eficácia em um curto espaço de tempo, é a prova da capacidade de geração de conhecimentos pela comunidade científica mundial. Muitos trabalhos científicos publicados já foram retratados, ou seja, foram avaliados como não tendo valor científico. Por outro lado, a facilidade com que as informações podem ser divulgadas e disseminadas nas redes sociais e meios de comunicação também gerou uma proliferação de notícias sem qualquer base de conhecimentos. Esta geração de notícias, no mínimo, duvidosas, não é por simples desconhecimento, mas também é realizada como produção de ignorância intencional. Com um grande volume de informações, é muito difícil fazer uma triagem do que é, ou não, válido.

Em 2003, quando houve a epidemia de SARS, foi criada a palavra Infodemia para caracterizar o grande volume de informações  associadas àquela situação. Esta palavra foi uma conjugação dos termos Informação Epidemia. Foi uma forma descrever as dificuldades decorrentes da desinformação associada ao volume de informações veiculadas.

A grande quantidade de informações, disponibilizadas diariamente, tem o efeito de reduzir o impacto destas mesmas informações, pelo simples fato de serem reiteradamente divulgadas. Isto já foi caracterizado pela Lei de Shannon, proposta na década de 1940. Esta Lei estabeleceu que o impacto de uma informação é inversamente proporcional à sua frequência.  Ou seja, de tanto um assunto ser veiculado, o seu impacto acaba por ser reduzido: é a banalização da informação. Um exemplo disto, é a divulgação das mortes causadas pela COVID-19. As primeiras mortes causaram grande comoção e apreensão na população. Porém, com a evolução da pandemia, este efeito foi sendo progressivamente atenuado. Por exemplo, nos Estados Unidos, apenas no dia 30 de dezembro de 2020, foram comunicadas 3808 mortes. Qual foi o impacto desta informação sobre a população norte-americana e mundial? Apenas para fazer um comparativo, o atentado de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas de Nova Iorque, causou 2977 mortes. Este episódio gerou um gigantesco impacto mundial, acarretando mudanças em vários aspectos da sociedade norte-americana e mundial. Ou outra comparação possível, seria de que este mesmo número de mortes corresponderia à queda, com todas as vítimas fatais, de mais de 20 aviões Boeing 737-800.

Shannon, 1948

A coerência das informações é um fator muito importante na redução da ambiguidade associada a uma decisão em situações de incerteza associada. A comunidade científica, especialmente na área da saúde, frequentemente realiza encontros que visam a elaboração de consensos sobre determinados assuntos ainda não devidamente consolidados na literatura científica. 

Uma pessoa leiga pode ficar confusa quando um especialista faz uma recomendação, com base em informações científicas, e uma outra pessoa, com grande visibilidade social, como uma liderança política, por exemplo, dá outras informações contrárias, ou age de forma exatamente inversa ao preconizado. A falta de coerência gera desconforto e desconfiança. Existe um outro risco, que é o decorrente da disseminação de informações sobre aspectos científicos e de saúde, realizada por pessoas sem qualificação científica ou profissional para isto. A repercussão destas opiniões pode ser muito grande, especialmente quando emitidas por pessoas tidas como "celebridades". 

Esta repercussão pode ser explicada, pelo menos em parte, pelo Efeito Dunning-Kruger. Em 1999, estes dois pesquisadores, a partir de dados obtidos em quatro diferentes experimentos, conseguiram estabelecer uma associação entre o grau de conhecimento, ou competência para lidar com uma determinada situação, e a confiança associada às suas afirmativas. Os autores esperavam que houvesse uma relação direta entre conhecimento/competência com a confiança. Isto realmente foi verificado nos grupos de pessoas com competência média e alta onde foi verificada uma crescente autoconfiança associada. Paradoxalmente, o grupo das pessoas com baixa competência para lidar com a mesma situação, apresentou uma alta autoconfiança ao dar as suas opiniões. Autoconfiança sem base em conhecimentos. É esta autoonfiança infundada que dá credibilidade a uma simples opinião, sem uma base de conhecimentos que a sustente. Um bom exemplo disto é a divulgação de "informações" sobre os efeitos genéticos das vacinas. Muitas postagens são tão enfáticas que parecem ter alguma razão. Muitas pessoas se assustam e acabam se posicionando contra o uso das vacinas. É um exemplo bem típico do que Kruger e Dunning denominaram de "montanha da estupidez".


Kruger & Dunning, 1999

Um cientista sempre vai reconhecer que existe uma possibilidade de erro, de incerteza associada aos seus argumentos. Porém, uma pessoa, que tem baixa competência científica, gera uma opinião convicta, com base em uma aparente certeza. Este confronto de argumentos científicos com opiniões leigas enfáticas, tem sido muito frequentemente ao longo da pandemia.  

Lidar com incerteza sempre gera ansiedade. Por sua vez, a ambiguidade, gerada pela falta de qualidade, pelo excesso de quantidade e pela falta de coerência, pode interferir  na avaliação dos riscos associados a uma dada situação. A ambiguidade pode gerar avaliações de riscos podem ser minimizados ou maximizados. Esta mistura de ansiedade, incerteza e ambiguidade é muito delicada, pois pode gerar escolhas com efeitos catastróficos para si e para os outros. Esta talvez seja uma das explicações possíveis para os fenômenos sociais que estão ocorrendo em vários países. 

Para ler mais


Shannon CE. A Mathematical Theory of Communication. Bell Syst Tech J. 1948;27:379–423, 623–656.