domingo, 12 de abril de 2020

COVID-19 e a Alocação de pacientes em projetos de pesquisa

José Roberto Goldim


A atual pandemia da COVID-19 trouxe consigo inúmeros desafios para a reflexão, um deles é a realização simultânea de projetos de pesquisa envolvendo pacientes com os mesmos critérios de inclusão, ou seja, projetos que competem entre si para alocar pacientes. Isto nos leva a refletir sobre as interações da assistência e da pesquisa existentes na pesquisa clínica, especialmente entre a relação de risco-benefício individual e coletivo. 

Na pesquisa clínica existe uma sobreposição das atividades de assistência com as de pesquisa. Na assistência o paciente procura um serviço de saúde em função de uma necessidade, enquanto que na pesquisa o pesquisador oferece a possibilidade de uma pessoa participar ou não de um determinado projeto de interesse do próprio pesquisador. A necessidade é um operador modal forte, enquanto que a possibilidade é um operador fraco. É da associação da necessidade com a possibilidade que surge um terceiro operador: a contingência.

A necessidade associada à assistência caracteriza que é necessário fazer o tratamento, se e somente se não for possível fazer o tratamento. Idealmente, apenas a impossibilidade de atender pode impedir a realização do tratamento. Isto pode ocorrer por múltiplas causas, como, por exemplo, o esgotamento de recursos do próprio sistema de saúde, por meio da falta de leitos, de equipamentos, de medicamentos.

A possibilidade associada à pesquisa não-clínica estabelece que é possível participar da pesquisa, se e somente se não é necessário participar da própria pesquisa. Se houver necessidade envolvida, a liberdade de escolha fica tolhida, negando a própria noção de possibilidade. 

A pesquisa clínica, ao associar estas duas características de necessidade e possibilidade, estabelece um novo cenário, que o de contingência. É a contingência  que deve nortear as atividades de pesquisa clínica. A contingência estabelece que é possível participar da pesquisa para fazer tratamento, mas não necessariamente tem que participar da pesquisa para se tratar.

Na atual Pandemia da COVID-19 esta característica está muito presente nos projetos de pesquisa envolvendo atividades assistenciais em pacientes, com alguns outros componentes potencialmente complicadores. Um deles é a realização simultânea de vários projetos de pesquisa propondo diferentes tipos de intervenções em um mesmo grupo de pacientes.

O processo de recrutamento destes pacientes para participação em diferentes projetos de pesquisa caracteriza um problema de alocação de recursos, neste caso referindo-se aos pacientes Habitualmente, podem ser utilizados os critérios de necessidade, merecimento e de prognóstico para realizar este processo de alocação.

O critério da necessidade pode ser referir tanto ao paciente quanto ao profissional. O paciente pode estar necessitando acesso a drogas ainda experimentais, a novas terapias e procedimentos para encaminhar a sua assistência. Da mesma forma, o pesquisador tem a necessidade de incluir pacientes como participantes de seu estudo para poder gerar novos conhecimentos. Esta conjugação de necessidade é que pode gerar a perda de liberdade de escolha. O critério da necessidade é sempre utilizado com base no presente. Ou seja, o cenário de necessidades é permanentemente mutável, de acordo com as condições dos pacientes, que podem ou não preencher os critérios de inclusão, assim como o projeto pode ou não ter completado o tamanho de amostra esperado.

O critério de merecimento pode se referir tanto ao paciente, quanto a equipe de pesquisa. Este critério sempre remete a situações passadas. Um exemplo disto pode ser a utilização de um sistema que priorize o projeto que foi aprovado em primeiro lugar. Mesmo tendo outros projetos concorrentes, o mais antigo teria prioridade sobre os demais, pelo simples fato de ter sido aprovado primeiro. Por outro lado, poderá ser realizada uma busca ativa competitiva dos pacientes elegíveis, por parte das equipes de pesquisa. Com este método, os pacientes seriam incluídos na medida em que as equipes de pesquisa os localizam. Estas duas situações utilizam o critério de merecimento denominado first come, first serve. Ou seja, o pesquisador que chegar primeiro recruta o paciente para o seu projeto. O critério de merecimento também pode utilizar méritos pessoais, como posições hierárquicas, reconhecimento científico ou social ou relações de poder para estabelecer a alocação. É sempre bom ressaltar que o critério de merecimento, quando adotado de forma isolada, pode gerar um importante viés de seleção no processo de alocação de recursos. Basta lembrar o que ocorreu, anteriormente, com a utilização isolada do critério "tempo de fila de espera" para alocação de órgãos em transplantes.

O critério de prognóstico também é uma alternativa, sendo principalmente utilizado para exclusão de possíveis participantes, isto é, para não selecionar pacientes, mais do que para incluí-los em um estudo. O critério baseado no prognóstico tem um importante viés de aferição associado, principalmente associados à dinâmica do quadro de saúde dos pacientes. Os prognósticos na área da saúde tem sempre um grande componente de incerteza. O critério de prognóstico se baseia no referencial utilitarista, que avalia a adequação em função da perspectiva coletiva e não individual. Ao lidar com pacientes com necessidades assistenciais, a perspectiva individual é sempre central. Se os pesquisadores têm, pelo menos a dúvida, de que a intervenção de seu projeto de pesquisa clínica possa vir a beneficiar os pacientes, esta oferta de participação deve ser feita de maneira justa, evitando discriminação e competições desnecessárias entre equipes. E o contrário também é verdadeiro, ou seja, a discussão dos riscos e incertezas associados é fundamental.

Um importante fator a ser utilizado nas avaliações entre incluir ou não um paciente em uma pesquisa é a equipolência. Este conceito não implica em reconhecer que exista uma equivalência entre os diferentes projetos de pesquisa que estão competindo para serem realizados em um mesmo grupo de pacientes. A equipolência estabelece que existe indiferença entre as opções. Se existir alguma evidência de que uma das alternativas é melhor para aquele paciente determinado, é ela que deve ser oferecida a todos os participantes.

Havendo vários projetos que competem na alocação de pacientes simultaneamente, o mais indicado é que a instituição, onde os mesmos irão ocorrer, assuma um papel ativo na seleção dos pacientes. Pode ser constituído um grupo específico para realizar esta atividade. Esta decisão não pode ficar a cargo de apenas uma única pessoa ou de um grupo que tenham interesses específicos. Esta decisão, realizada por um grupo independente, visa proteger os pacientes de situações constrangedoras de múltiplas propostas de participação em diferentes projetos. Da mesma forma, a realização de pesquisas não pode comprometer o dever de prestar assistência qualificada aos pacientes, além de proteger os profissionais de saúde, que atuam junto a estes pacientes, de uma  sobrecarga adicional de trabalho.

O grupo encarregado de estabelecer a alocação dos pacientes aos diferentes projetos com inclusão simultânea deverá adotar algumas diretrizes para o seu funcionamento. Algumas considerações éticas, já utilizadas na reflexão sobre a adequação dos profissionais assistenciais, também podem ser utilizadas neste processo de alocação de pacientes aos diferentes projetos de pesquisa competidores. Estas diretrizes podem utilizar quatro fatores, como a Visibilidade, a Inclusividade, a Razoabilidade e a Prontidão. 

A Visibilidade deve garantir que o processo de tomada de decisão, realizado pelo grupo, seja fundamentado e possa ser discutido por todos que estiverem envolvidos. A Visibilidade é que permite uma adequada prestação de contas das ações e decisões tomadas pelo grupo responsável pelas decisões de alocação. É a Visibilidade que garante a transparência.

A Inclusividade deve garantir que todos os setores participantes possam ter alguma participação no processo de decisão. É a Inclusividade que deve também orientar a própria seleção dos membros do grupo encarregado por alocar pacientes aos diferentes projetos de pesquisa aprovados. Deverão participar membros experientes das equipes assistenciais que terão seus pacientes incluídos nos projetos de pesquisa. Da mesma forma, o grupo deve incluir pesquisadores que possam auxiliar no entendimento das demandas que os diferentes projetos irão aportar à assistência. Outro segmento fundamental de ter representação neste grupo de tomada de decisão são profissionais acostumados a lidar com avaliações de risco, como os membros de Comissões de Segurança e Qualidade assistencial. Além destes membros, representantes das áreas administrativas também podem ser incluídos para avaliar o impacto da realização dos projetos.

A Razoabilidade estabelece que as decisões devem se basear em evidências, princípios e valores que permitam adequação às necessidades assistenciais dos possíveis participantes das pesquisas. A Razoabilidade deve garantir a efetividade por meio da reciprocidade e da proporcionalidade. A reciprocidade deve refletir a possibilidade de trocas mútuas e de cooperação entre os envolvidos, especialmente entre as equipes de pesquisa e de assistência. A proporcionalidade deve realizar as avaliações dos efeitos relativos a cada uma das intervenções propostas pelos diferentes estudos competidores. É a Razoabilidade que deve garantir que as diferenças possam ser levadas em consideração no processo de tomada de decisão. As diferenças não podem ser transformadas em desigualdades, em uma forma de discriminação. Uma proposta feita pelo Prof. Robert Veatch, para enfrentar problemas de inclusão de pacientes em projetos de pesquisa seria uma estratégia de pseudo-aleatorização. De acordo com esta proposta, somente seriam incluidos pacientes que fossem indiferentes frente aos diferentes projetos. Ou seja, caso o paciente manifestasse alguma preferência dentre as alternativas, esta seria a escolha. O grupo encarregado pela alocação poderia utilizar esta abordagem ao selecionar pacientes, mesmo com critérios de inclusão semelhantes, de acordo com outras características assistenciais. Estas características poderiam estar vinculadas à própria capacidade de absorção destas atividades na rotina assistencial.

A Prontidão é uma característica fundamental. As decisões podem e devem ser revistas, se necessário, e de acordo com as características mutáveis das condições de atendimento assistencial e de novos estudos que sejam aprovados. É a Prontidão que também permite dar respostas em tempo real às disputas e demandas das equipes assistenciais e de pesquisa envolvidas, assim como da própria instituição e da sociedade.

É fundamental ao adequado funcionamento do grupo encarregado pela alocação de pacientes aos diferentes projetos de pesquisa competidores manter a perspectiva de considerar a contingência associada à realização das pesquisas clínicas; avaliar a coerência entre os Princípios Éticos da Dignidade, da Autonomia, da Integridade e da Vulnerabilidade; e a preservação dos fatores de Visibilidade, Inclusividade, Razoabilidade e Prontidão, 

Em suma, este é mais um desafio gerado pela pandemia da COVID-19 que terá que ser enfrentado por todas as instituições.

Para ler mais

Agamben G. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Stanford: Stanford University; 1998. 

Goldim JR. Equipolência. Porto Alegre, Site de Bioética, 2001.

Veatch RM. The irrelevance of equipoise. J Med Philos. 2007;32(2):167–83. 

Royal College of Physicians. Ethical dimensions of COVID-19 for frontline staff [Internet]. London: Royal College of Physicians; 2020. 

Organización Panamericana de la Salud (OPAS) - Programa Regional de Bioética. Orientación ética sobre cuestiones planteadas por la pandemia del nuevo coronavirus (COVID-19). Washington DC: OPAS; 2020.

Goldim JR. Bioética Complexa. Referenciais Teóricos: Princípios. You Tube, 2020.


COVID-19 e as confusões entre Atestado, Declaração e Certidão de Óbito

José Roberto Goldim



O Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Saúde, em função da excepcionalidade da situação gerada pela pandemia da COVID-19, publicaram uma portaria conjunta, com a finalidade de permitir o sepultamento de pacientes que forem a óbito neste período, sem a necessidade de ter a sua Certidão de Óbito. 

Isto gerou um grande mal entendido na imprensa, pois alguns meios de comunicação divulgaram que os pacientes poderiam ser sepultados sem Atestado de Óbito. No próprio título desta reportagem havia uma outra informação equivocada de que " quando não se souber ao certo a causa, morte poderá ser registrada como "provável para Covid-19".




Mesmo entre profissionais de saúde existe uma confusão entre os usos de três expressões: Atestado de Óbito, Declaração de Óbito e Certidão de Óbito. 

O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina usam de forma indistinta as denominações Atestado de Óbito e Declaração de Óbito. Em várias resoluções, pareceres e publicações estas duas denominações são utilizadas. No Código de Ética Médica é utilizada apenas a expressão Declaração de Óbito, mas é dito que o médico deve atestar o óbito do paciente. Atestado de Óbito era a denominação utilizada antes da década de 1970. O documento era formalmente denominado de Atestado Médico de Causa de Morte. Este nome foi alterado para Declaração de Óbito em 1976, mas a utilização da expressão Atestado de Óbito permanece até os dias de hoje.

A denominação correta para o documento que o médico deve fornecer com a finalidade de documentar a morte de um paciente é Declaração de Óbito.  É um documento padronizado, único e com fornecimento restrito e controlado. A Declaração de Óbito é um documento que pode ser fornecido exclusivamente por médicos. A Declaração de Óbito tem, no mínimo, duas funções: uma epidemiológica e outra legal. 

A Declaração de Óbito é o documento básico do Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM do Ministério da Saúde, que é utilizado por todas as instâncias do sistema de saúde. As ações de vigilância sanitária em muito se baseiam nas informações fornecidas pelos médicos nos diferentes campos da Declaração de Óbito. A Declaração de Óbito documenta o fim da vida de um indivíduo, estabelecendo os aspectos biológicos que caracterizaram esta situação

Este mesmo documento, segundo a Lei dos Registros Públicos – Lei 6.015/1973, serve para que os Cartórios de Registro Civil possam fornecer a Certidão de Óbito, que é indispensável para as formalidades legais do sepultamento. A Certidão de Óbito encerra o viver de uma pessoa, isto é, a sua biografia. 

Fazendo uma analogia entre o início e o final de vida, é prerrogativa do médico fornecer a Declaração de Nascido Vivo e a Declaração de Óbito. Com base nestes documentos, o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais pode então fornecer, respectivamente, as Certidões de Nascimento e de Óbito. Reiterando a diferença: o documento médico é a Declaração e o legal é a Certidão.

A Portaria conjunta do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério da Saúde apenas dispensou a necessidade da Certidão de Óbito para facilitar a realização de sepultamentos, evitando que ocorra um longo período entre o óbito em si e o seu registro em cartório. A justificativa para encurtar este período é sanitária. A própria Portaria garante que todos os direitos ficam preservados e que os familiares terão um prazo de até 60 dias para efetivar o registro em cartório e terem acesso à Certidão de Óbito.

Outra confusão que ocorreu com a interpretação superficial do texto da Portaria foi a questão do diagnóstico da causa do óbito. O Parágrafo Único do Artigo 3o da Portaria estabeleceu que "havendo morte por doença respiratória suspeita para Covid-19, não
confirmada por exames ao tempo do óbito, deverá ser consignado na Declaração de Óbito a descrição da causa mortis ou como“provável para Covid-19” ou “suspeito para Covid-19”. Esta recomendação tem como objetivo evitar que a ausência de um resultado de um teste diagnóstico confirmatório para a COVID-19 não tivesse, pelo menos a sua caracterização como uma suspeita diagnóstica. Este dado é de grande importância para o monitoramento epidemiológico da Pandemia.

Para ler mais

Brasil. Conselho Nacional de Justiça e Ministério da Saúde. Portaria conjunta no 1, de 30 de março de 2020. [Internet]. Brasilia: CNJ; 2020.  

Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul. Atestado de óbito [Internet]. Porto Alegre: CREMERS; 2018.

domingo, 5 de abril de 2020

COVID-19 e Alteridade

José Roberto Goldim


A COVID-19 tem gerando situações muito inusitadas. Muitas explicações têm sido dadas, as vezes utilizando justificativas e modelos simplistas, na busca de entender o que está ocorrendo. 

A reflexão sobre a adequação das ações tomadas por governos, organizações internacionais, empresas, instituições e pessoas tem inúmeras maneiras de ser enfocada. A Alteridade, contudo, parece ser o referencial teórico que mais tem adequação com o que estamos vivendo.

A Alteridade é uma proposta recente na história da Filosofia, como modelo estruturado de pensamento. Esta nova escola foi, predominantemente elaborada pelo filósofo Emmanuel Levinas. Porém, as suas bases remontam a diferentes momentos e manifestações do processo civilizatório. Levinas deu sentido a práticas sociais, que eram realizadas em diferentes níveis. Ele fez uma reflexão que propicia um enfoque muito criativo e inovador para várias situações. 

Muitas perspectivas, sejam elas individualistas ou coletivistas, retiravam a perspectiva do outro. A Alteridade permite uma ultrapassagem dos conceitos de egoísmo e de altruísmo como sendo as únicas possibilidades de abordagem de situações como as apresentadas pela Pandemia da COVID-19.

As manifestações egoístas se manifestam de várias formas durante a situação de Pandemia que estamos vivendo. No plano individual, por exemplo, este egoísmo se manifesta ao comprar e estocar medicamentos, alimentos e outros produtos que uma pessoa sequer necessita, na presunção de que poderá vir a utilizar.  As manifestações de violência doméstica, verificadas em todos os países, também é reflexo desta postura individualista e egoísta. O outro é objeto de violência por que não conta, por que atrapalha. Em nível nacional, isto se manifesta ao utilizar a metáfora da guerra como enfrentamento à Pandemia. Este enfoque justifica estabelecer bloqueios de acesso e padrões de oferta agressiva de compra de produtos e equipamentos com a finalidade de abastecer unicamente o seu próprio país. Os fornecedores também contribuem neste processo, ao aceitar estas vender seus produtos por valores superiores aos que estavam praticando, tendo estoques limitados e comprometidos, acabam cancelando contratos de compra e venda anteriormente estabelecidos. Desta forma, deixam desassitidos compradores que se anteciparam e se programaram para enfrentar a situação atual. Outra manifestação de egoísmo coletivo é o bloqueio de retorno de cidadãos aos seus países. Estabelecer medidas de isolamento e quarentena ´para os viajantes que retornam se justificam pela ptoeção da comunidade, mas impedir o retorno é negar a própria cidadania destas pessoas. 

Por outro lado, o altruísmo, quando assumido como uma perspectiva única, acarreta  que os interesses do outro dominem a tomada de decisão, por meio da negação das necessidades e interesses da própria pessoa. Isto pode ocorrer quando, no ímpeto de auxiliar o outro, o profissional atua em situações de risco, sem as devidas medidas de proteção, e acaba se contaminando ou adoecendo Esta negligência para consigo mesmo é que caracteriza a inadequação do altruísmo absoluto.

A Alteridade colocou a reflexão ética das nossas ações, entendida como a busca pelo sentido e adequação das mesmas, como o centro da reflexão filosófica. Levinas incorporou várias tradições em suas reflexões. A Alteridade parte do ponto fundamental de que cada um de nós tem que incluir o outro como parte fundamental do nosso viver. É o outro que dá significado e sentido ao nosso próprio viver. 

Ao reincluir o outro como parte fundamental do meu viver, a Alteridade ressignifica a minha própria reflexão pessoal. Ao perceber o olhar do outro, a sua face, a sua relação única e significativa para comigo, isto impede um olhar indiferente. A desconsideração do outro afasta, despersonalizar, gera uma indiferença que tem um efeito terrível sobre a vida e o viver desta outra pessoa. A não-indiferença, ao contrário, traz consigo um olhar que acolhe, que inclui, que gera uma co-presença ética, uma co-responsabilidade. 



Na perspectiva da Alteridade, o indivíduo não tem o foco apenas nos seus interesses, ou abre mão de todos eles para assumir tão somente os interesses do outro. Da mesma forma, o indivíduo não assume os interesses do grupo em detrimento dos seus. A co-presença ética nos insere na relação efetiva com o outro, é ela que gera uma nova unidade que é o "nós". Não são mais os meus interesses, ou apenas os interesses do outro, mas sim os interesses comuns que surgem dessa interação efetiva. A Alteridade gera uma rede de solidariedade recíproca e compartilhada por todos. 

A co-responsabilidade é fruto do reconhecimento de que ao me tornar responsável pelo outro, eu me torno intrinsecamente responsável por mim mesmo. É esta percepção de responsabilidade recíproca que permite dignificar a presença do outro. Ele não é um dependente de mim, mas um parceiro efetivo nesta nova relação que surge a partir do reconhecimento da sua própria existência. 

E o que isto tem a ver com a COVID-19? Em muitas situações que estamos vivenciando a Alteridade está presente ou deveria ser utilizada como forma de explicar esta necessidade de justificar ações solidárias, não como altruístas, mas sim como efetivamente significativas a todos nós.

Quantas situações são possíveis de ser assim entendidas. O distanciamento social é um bom exemplo. Ele pode se manifestar por permanecer em casa, por reduzir os contatos interpessoais ao cumprimentar, ao estabelecer regras de etiqueta ao tossir e espirrar, por exemplo. A utilização de máscaras de proteção facial é uma outra estratégia que se insere nesta mesma linha. 

Ficar em casa é a medida mais efetiva para as pessoas se protegerem neste momento. As pessoas permanecendo em casa se protegem da contaminação e, ao fazerem isto, também estão protegendo outras pessoas. A exposição indevida desrespeita a proteção da própria pessoa e, simultaneamente, desconsidera a proteção do outro. Porém, a permanência em casa também tem consequências inadequadas. O aumento da violência doméstica é um triste exemplo. Mesmo nesta situação a explicação passa pela Alteridade. A violência é a negação do outro, é a negação da possibilidade de uma convivência digna, de um compartilhamento de interesses. 

Ao cumprimentar uma outra pessoa, eu a estou reconhecendo, eu a estou incluindo naquela relação momentânea e, por vezes, fugaz. Quando isto não é apenas um ritual social, que perde o seu sentido real, o cumprimento nos inclui. Muito mais importante do que tocar o outro, é estabelecer o contato visual, é ele que nos insere, é ele que reconhece e permite o reconhecimento recíproco. 

Ao utilizar máscaras de proteção, as pessoas protegem a si mesmas e igualmente as demais pessoas. O uso das máscaras de proteção são um bom exemplo de co-responsabilidade. Esta política de enfrentamento da pandemia tem sido utilizada em muitos locais. Um vídeo da República Tcheca justifica o uso de máscaras por toda a população com base na co-responsabilidade. De cada um cuidando de si e do outro. ou seja, baseando-se na Alteridade. Mesmo com o uso de máscaras, o olhar é possível.

Outra manifestação nesta mesma direção tem sido a relação entre filhos e pais idosos. Inúmeros filhos acolheram seus pais ou foram morar com eles neste momento de permanecer em casa. Os filhos mais velhos, que já tem seus filhos mais independentes, receberam os seus pais em suas casas. Outros optaram por retornar a casa de seus pais. A possibilidade de trabalho remoto possibilitou que todos permaneçam em casa, se protejam, e convivam, 

Em algumas outras situações este contato tem sido mediado por telefones celulares ou computadores. As redes sociais e as demais forma de contato interpessoal pessoal têm minimizado este distanciamento social e até mesmo o transformado em uma possibilidade de proximidade afetiva. 

Todas estas situações adequadas demonstram que a solidariedade real é fruto da Alteridade, da inclusão do outro como parte fundamental do meu viver..

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