José Roberto Goldim
A atual pandemia da COVID-19 trouxe consigo inúmeros desafios para a reflexão, um deles é a realização simultânea de projetos de pesquisa envolvendo pacientes com os mesmos critérios de inclusão, ou seja, projetos que competem entre si para alocar pacientes. Isto nos leva a refletir sobre as interações da assistência e da pesquisa existentes na pesquisa clínica, especialmente entre a relação de risco-benefício individual e coletivo.
Na pesquisa clínica existe uma sobreposição das atividades de assistência com as de pesquisa. Na assistência o paciente procura um serviço de saúde em função de uma necessidade, enquanto que na pesquisa o pesquisador oferece a possibilidade de uma pessoa participar ou não de um determinado projeto de interesse do próprio pesquisador. A necessidade é um operador modal forte, enquanto que a possibilidade é um operador fraco. É da associação da necessidade com a possibilidade que surge um terceiro operador: a contingência.
A necessidade associada à assistência caracteriza que é necessário fazer o tratamento, se e somente se não for possível fazer o tratamento. Idealmente, apenas a impossibilidade de atender pode impedir a realização do tratamento. Isto pode ocorrer por múltiplas causas, como, por exemplo, o esgotamento de recursos do próprio sistema de saúde, por meio da falta de leitos, de equipamentos, de medicamentos.
A possibilidade associada à pesquisa não-clínica estabelece que é possível participar da pesquisa, se e somente se não é necessário participar da própria pesquisa. Se houver necessidade envolvida, a liberdade de escolha fica tolhida, negando a própria noção de possibilidade.
A pesquisa clínica, ao associar estas duas características de necessidade e possibilidade, estabelece um novo cenário, que o de contingência. É a contingência que deve nortear as atividades de pesquisa clínica. A contingência estabelece que é possível participar da pesquisa para fazer tratamento, mas não necessariamente tem que participar da pesquisa para se tratar.
Na atual Pandemia da COVID-19 esta característica está muito presente nos projetos de pesquisa envolvendo atividades assistenciais em pacientes, com alguns outros componentes potencialmente complicadores. Um deles é a realização simultânea de vários projetos de pesquisa propondo diferentes tipos de intervenções em um mesmo grupo de pacientes.
O processo de recrutamento destes pacientes para participação em diferentes projetos de pesquisa caracteriza um problema de alocação de recursos, neste caso referindo-se aos pacientes Habitualmente, podem ser utilizados os critérios de necessidade, merecimento e de prognóstico para realizar este processo de alocação.
O critério da necessidade pode ser referir tanto ao paciente quanto ao profissional. O paciente pode estar necessitando acesso a drogas ainda experimentais, a novas terapias e procedimentos para encaminhar a sua assistência. Da mesma forma, o pesquisador tem a necessidade de incluir pacientes como participantes de seu estudo para poder gerar novos conhecimentos. Esta conjugação de necessidade é que pode gerar a perda de liberdade de escolha. O critério da necessidade é sempre utilizado com base no presente. Ou seja, o cenário de necessidades é permanentemente mutável, de acordo com as condições dos pacientes, que podem ou não preencher os critérios de inclusão, assim como o projeto pode ou não ter completado o tamanho de amostra esperado.
O critério de merecimento pode se referir tanto ao paciente, quanto a equipe de pesquisa. Este critério sempre remete a situações passadas. Um exemplo disto pode ser a utilização de um sistema que priorize o projeto que foi aprovado em primeiro lugar. Mesmo tendo outros projetos concorrentes, o mais antigo teria prioridade sobre os demais, pelo simples fato de ter sido aprovado primeiro. Por outro lado, poderá ser realizada uma busca ativa competitiva dos pacientes elegíveis, por parte das equipes de pesquisa. Com este método, os pacientes seriam incluídos na medida em que as equipes de pesquisa os localizam. Estas duas situações utilizam o critério de merecimento denominado first come, first serve. Ou seja, o pesquisador que chegar primeiro recruta o paciente para o seu projeto. O critério de merecimento também pode utilizar méritos pessoais, como posições hierárquicas, reconhecimento científico ou social ou relações de poder para estabelecer a alocação. É sempre bom ressaltar que o critério de merecimento, quando adotado de forma isolada, pode gerar um importante viés de seleção no processo de alocação de recursos. Basta lembrar o que ocorreu, anteriormente, com a utilização isolada do critério "tempo de fila de espera" para alocação de órgãos em transplantes.
O critério de prognóstico também é uma alternativa, sendo principalmente utilizado para exclusão de possíveis participantes, isto é, para não selecionar pacientes, mais do que para incluí-los em um estudo. O critério baseado no prognóstico tem um importante viés de aferição associado, principalmente associados à dinâmica do quadro de saúde dos pacientes. Os prognósticos na área da saúde tem sempre um grande componente de incerteza. O critério de prognóstico se baseia no referencial utilitarista, que avalia a adequação em função da perspectiva coletiva e não individual. Ao lidar com pacientes com necessidades assistenciais, a perspectiva individual é sempre central. Se os pesquisadores têm, pelo menos a dúvida, de que a intervenção de seu projeto de pesquisa clínica possa vir a beneficiar os pacientes, esta oferta de participação deve ser feita de maneira justa, evitando discriminação e competições desnecessárias entre equipes. E o contrário também é verdadeiro, ou seja, a discussão dos riscos e incertezas associados é fundamental.
Um importante fator a ser utilizado nas avaliações entre incluir ou não um paciente em uma pesquisa é a equipolência. Este conceito não implica em reconhecer que exista uma equivalência entre os diferentes projetos de pesquisa que estão competindo para serem realizados em um mesmo grupo de pacientes. A equipolência estabelece que existe indiferença entre as opções. Se existir alguma evidência de que uma das alternativas é melhor para aquele paciente determinado, é ela que deve ser oferecida a todos os participantes.
Havendo vários projetos que competem na alocação de pacientes simultaneamente, o mais indicado é que a instituição, onde os mesmos irão ocorrer, assuma um papel ativo na seleção dos pacientes. Pode ser constituído um grupo específico para realizar esta atividade. Esta decisão não pode ficar a cargo de apenas uma única pessoa ou de um grupo que tenham interesses específicos. Esta decisão, realizada por um grupo independente, visa proteger os pacientes de situações constrangedoras de múltiplas propostas de participação em diferentes projetos. Da mesma forma, a realização de pesquisas não pode comprometer o dever de prestar assistência qualificada aos pacientes, além de proteger os profissionais de saúde, que atuam junto a estes pacientes, de uma sobrecarga adicional de trabalho.
O grupo encarregado de estabelecer a alocação dos pacientes aos diferentes projetos com inclusão simultânea deverá adotar algumas diretrizes para o seu funcionamento. Algumas considerações éticas, já utilizadas na reflexão sobre a adequação dos profissionais assistenciais, também podem ser utilizadas neste processo de alocação de pacientes aos diferentes projetos de pesquisa competidores. Estas diretrizes podem utilizar quatro fatores, como a Visibilidade, a Inclusividade, a Razoabilidade e a Prontidão.
A Visibilidade deve garantir que o processo de tomada de decisão, realizado pelo grupo, seja fundamentado e possa ser discutido por todos que estiverem envolvidos. A Visibilidade é que permite uma adequada prestação de contas das ações e decisões tomadas pelo grupo responsável pelas decisões de alocação. É a Visibilidade que garante a transparência.
A Inclusividade deve garantir que todos os setores participantes possam ter alguma participação no processo de decisão. É a Inclusividade que deve também orientar a própria seleção dos membros do grupo encarregado por alocar pacientes aos diferentes projetos de pesquisa aprovados. Deverão participar membros experientes das equipes assistenciais que terão seus pacientes incluídos nos projetos de pesquisa. Da mesma forma, o grupo deve incluir pesquisadores que possam auxiliar no entendimento das demandas que os diferentes projetos irão aportar à assistência. Outro segmento fundamental de ter representação neste grupo de tomada de decisão são profissionais acostumados a lidar com avaliações de risco, como os membros de Comissões de Segurança e Qualidade assistencial. Além destes membros, representantes das áreas administrativas também podem ser incluídos para avaliar o impacto da realização dos projetos.
A Razoabilidade estabelece que as decisões devem se basear em evidências, princípios e valores que permitam adequação às necessidades assistenciais dos possíveis participantes das pesquisas. A Razoabilidade deve garantir a efetividade por meio da reciprocidade e da proporcionalidade. A reciprocidade deve refletir a possibilidade de trocas mútuas e de cooperação entre os envolvidos, especialmente entre as equipes de pesquisa e de assistência. A proporcionalidade deve realizar as avaliações dos efeitos relativos a cada uma das intervenções propostas pelos diferentes estudos competidores. É a Razoabilidade que deve garantir que as diferenças possam ser levadas em consideração no processo de tomada de decisão. As diferenças não podem ser transformadas em desigualdades, em uma forma de discriminação. Uma proposta feita pelo Prof. Robert Veatch, para enfrentar problemas de inclusão de pacientes em projetos de pesquisa seria uma estratégia de pseudo-aleatorização. De acordo com esta proposta, somente seriam incluidos pacientes que fossem indiferentes frente aos diferentes projetos. Ou seja, caso o paciente manifestasse alguma preferência dentre as alternativas, esta seria a escolha. O grupo encarregado pela alocação poderia utilizar esta abordagem ao selecionar pacientes, mesmo com critérios de inclusão semelhantes, de acordo com outras características assistenciais. Estas características poderiam estar vinculadas à própria capacidade de absorção destas atividades na rotina assistencial.
A Prontidão é uma característica fundamental. As decisões podem e devem ser revistas, se necessário, e de acordo com as características mutáveis das condições de atendimento assistencial e de novos estudos que sejam aprovados. É a Prontidão que também permite dar respostas em tempo real às disputas e demandas das equipes assistenciais e de pesquisa envolvidas, assim como da própria instituição e da sociedade.
É fundamental ao adequado funcionamento do grupo encarregado pela alocação de pacientes aos diferentes projetos de pesquisa competidores manter a perspectiva de considerar a contingência associada à realização das pesquisas clínicas; avaliar a coerência entre os Princípios Éticos da Dignidade, da Autonomia, da Integridade e da Vulnerabilidade; e a preservação dos fatores de Visibilidade, Inclusividade, Razoabilidade e Prontidão,
Em suma, este é mais um desafio gerado pela pandemia da COVID-19 que terá que ser enfrentado por todas as instituições.
Para ler mais
Agamben G. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Stanford: Stanford University; 1998.
Goldim JR. Equipolência. Porto Alegre, Site de Bioética, 2001.
Veatch RM. The irrelevance of equipoise. J Med Philos. 2007;32(2):167–83.
Royal College of Physicians. Ethical dimensions of COVID-19 for frontline staff [Internet]. London: Royal College of Physicians; 2020.
Organización Panamericana de la Salud (OPAS) - Programa Regional de Bioética. Orientación ética sobre cuestiones planteadas por la pandemia del nuevo coronavirus (COVID-19). Washington DC: OPAS; 2020.
Goldim JR. Bioética Complexa. Referenciais Teóricos: Princípios. You Tube, 2020.