José Roberto Goldim
A pandemia do coronavírus começou no final de dezembro de 2019. Somente após algumas semanas foi possível avaliar o impacto que este novo vírus poderia ter para a população mundial. Com o aumento impressionante no número de casos, assim como da ampliação da área abrangência geográfica e da mortalidade, inúmeros grupos de pesquisas, vinculados a universidades, órgãos governamentais e empresas iniciaram a pesquisas sobre este vírus e sobre a doença por ele causada: COVID-19.,
No Clinical Trials, maior registro de ensaios clínicos utilizado por pesquisadores de todo o mundo já constam mais de 200 projetos de pesquisa cadastrados. A maioria dos projetos tem origem na China, Europa e Estados Unidos. A maioria dos projetos são vinculados a universidades e hospitais, enquanto que as empresas representam menos de 20% das propostas. Inúmeros projetos que estão sendo realizados na área de desenvolvimento de vacinas não estão registrados no Clinical Trials. Os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que cerca de 35 projetos têm este objetivo, porém o número de pesquisas cadastradas no Clinical Trials é significativamente menor.
A grande pressão de pesquisa para a COVID-19 tem sido na área das vacinas. O governo norte-americano fez uma reunião com fabricantes de vacinas dos Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha. O objetivo da reunião foi acelerar a produção de vacinas e a sua tramitação. O desejo é de que exista uma nova vacina em uma questão de meses.
A pesquisa de novos medicamentos ou de novas indicações para medicamentos já existentes para uso na COVID-19 também tem sido uma demanda importante.
A questão metodológica e ética que se apresenta é de que qualquer pesquisa de medicamentos ou vacinas deve seguir etapas que já são estabelecidas para garantir a segurança, a tolerabilidade e a eficácia de um produto. A fase pré-clínica deve dar segurança mínima para a sua primeira utilização em seres humanos. Na fase clínica são necessários três fases de estudos. A fase 1 envolve um pequeno número de pessoas com a finalidade de verificar principalmente a segurança. Na fase 2 amplia o número de pacientes participantes e tem por finalidade a segurança e a tolerabilidade do produto em teste. Finalmente, a fase 3 agrega um número ainda maior de pacientes e visa verificar a eficácia, além de seguir avaliando a segurança e tolerabilidade.
Em média, uma nova droga ou uma nova vacina tem um tempo de duração de 11 anos entre o início da pesquisa pré-clínica e o final dos estudos de fase 3.
A pressão política e social em ter resultados em um período muito curto de tempo com o objetivo de transpor estes novos conhecimentos gerados pela pesquisa à assistência aos pacientes também têm impacto na avaliação por Comitês de Ética em Pesquisa e em Agências Regulatórias. Isto pode acarretar alguns problemas éticos e regulatórios importantes. A eliminação de etapas envolvendo pesquisas em modelos animais e em seres humanos pode acrescentar riscos desnecessários aos participantes da pesquisa e aos usuários destes produtos.
Um projeto de pesquisa em seres humanos somente deve ser iniciado após a sua avaliação e aprovação por um Comitê de Ética em Pesquisa. Os Comitês podem fazer uma avaliação mais rápida em situações de emergência como esta. A dificuldade é ter acesso a informações que permitam garantir a segurança dos participantes da pesquisa. Vale lembrar que na pesquisa em seres humanos pode e deve ser feita uma avaliação da proporção do risco associado à mesma com o benefício potencial. Porém, nunca o benefício coletivo pode suplantar a segurança individual de cada participante.
Esta avaliação depende de informações que foram geradas por outros projetos anteriormente já realizados. A sequência de estudos pré-clínicos e clínicos é que permitem gerar os dados sobre a segurança, tolerabilidade e eficácia de novos produtos para a área da saúde.
A avaliação mais rápida de projetos de pesquisa recebeu a denominação de fast-track. Esta modalidade de avaliação surgiu em função das demandas de grupos organizados de pacientes portadores de HIV no início dos anos 1990.
Processo usual da Pesquisa em Seres Humanos
Processo fast-track da Pesquisa em Seres Humanos
Com o encurtamento dos prazos para realização de pesquisas podem ocorrer projetos que sejam submetidos à avaliação dos Comitês de Ética em Pesquisa sem um conjunto de informações suficientes para assegurar a garantia da segurança dos participantes. A pressão política e social para a produção de uma vacina poderá ter predominância sobre a segurança individual dos participantes destas pesquisas. As etapas e as fases das pesquisas poderão ir sendo realizadas em paralelo e não em sequência, como seria o preconizado.
Outra questão que agrega vulnerabilidade aos participantes é a oferta de pagamento pela participação em projetos de pesquisa sobre as novas vacinas.
Um destes projetos é realizado pela Kaiser Permanente, uma organização privada norte-americana que administra planos de saúde e hospitais. Este projeto, de fase 1, oferece US$1.100,00 pela participação em todas as 11 etapas da pesquisa para testar uma vacina baseada em mRNA do coronavírus. O estudo deverá recrutar 45 participantes saudáveis e tem duração estimada de 12 meses. Serão injetadas doses que variam de 25mcg da vacina até 250mcg. Cada grupo terá 15 participantes, sendo 11 que recebem a vacina e 4 que são pacientes sentinelas, ou seja, são observados da mesma forma que os demais, mas não receberão a vacina. Este estudo tem a coparticipação do NIH.
Uma outra empresa do Reino Unido, Queen Mary BioEnterprises Inovation Center oferece um pagamento de £3.500,00 para potenciais 24 participantes que aceitem receber uma vacina com duas linhagens de vírus (OC43 e 229E). Estas linhagens são menos graves que o coronavírus associado a COVID-19. Este projetos que não está listado no Clinical Trials.
Ambos projetos estão divulgando esta oferta na internet como uma oportunidade de ganhos financeiros. Obviamente, esta oferta é tanto mais atraente quanto maior for a vulnerabilidade econômica e social do potencial participante.
A pesquisa em seres humanos, desde o início do século XX, tem gerado sérias discussões sobre a proteção dos participantes de projetos. Neste momento é fundamental garantir a dignidade de todas as pessoas participantes, a decisão autônoma das pessoas, a sua integridade individual e coletiva, e a proteção adicional que os vulneráveis devem receber. Estes quatro Princípios Éticos devem ser observados e garantida a coerência na sua aplicação.
A solidariedade é a marca do enfrentamento de situações críticas como a que estamos vivendo. A história já nos demonstrou os resultados de propostas que reduzem algumas pessoas a meros instrumentos de manipulação visando um suposto bem maior e comum aos demais. A questão é reconhecer que, ao diferenciar quem são os demais que irão se beneficiar, estamos aceitando uma proposta claramente discriminatória.
Para ler mais a respeito do assunto
Torjesen I. Drug
development: the journey of a medicine from lab to shelf. The Pharmaceutical Journal 12MAY 2015.
Goldim JR. Bioética e Pesquisa: Aspectos Históricos e Fundamentos. Youtube, 2020.
Goldim JR. Referenciais Teóricos da Bioética Complexa: Princípios. Youtube; 2020.
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