quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Redes Sociais e Bioética

José Roberto Goldim




Muitas vezes, quando se fala em Ética, as pessoas relacionam com impedimentos gerados por Códigos de Ética Profissional. A Ética propriamente dita é diferente. Segundo Joaquim Clotet, a Ética tem por objetivo facilitar a realização das pessoas. Este é o objetivo das reflexões éticas: aprimorar o viver das pessoas. 


Esta é a proposta da Bioética. Entender como fazer esta possibilidade de aprimorar o viver é fruto de uma reflexão compartilhada, complexa e interdisciplinar sobre a adequação de ações que realizamos. Fazer uma reflexão complexa é incluir as múltiplas perspectivas da realidade. Fazer uma reflexão compartilhada é dialogar, é compartilhar conhecimentos e argumentos. Fazer uma reflexão interdisciplinar é incluir as múltiplas perspectivas de visão de mundo e da realidade, geradas a partir de diferentes olhares, que possibilitam, por esta troca, a geração de novos conhecimentos, antes não existentes ou consolidados.


A reflexão sobre a adequação das nossas ações ultrapassa a simples perspectiva do bem e do mal, do correto e do incorreto. Ao verificar os fatos e circunstâncias envolvidos e permitir uma reflexão contextualizada, se vislumbra um conjunto de justificativas para realizar ou não esta determinada ação.


É nesta perspectiva que proponho fazer esta reflexão sobre o uso adequado das redes sociais. Elas estão na ordem do dia das discussões na nossa sociedade. É importante relembrar as discussões propostas por Habermas sobre o que é a Esfera Pública, como o espaço onde as pessoas podem se reunir e debater as suas ideias, é o espaço privilegiado de formação da chamada opinião pública.


No século XVIII, a Esfera Pública ocorria na nova imprensa artesanal. Era um novo espaço de compartilhamento de ideias e opiniões. Embora restrito, teve uma importância pela sua difusão continuada.


No século seguinte foi a vez da imprensa comercial, com os grande jornais. Estes periódicos tinham grande tiragem, com periodicidade regular e grande abrangência. As fronteiras da esfera pública foram sendo alargadas para além das comunidades locais.


O rádio e a televisão assumiram este papel no século XX, com uma difusão massiva de informações em tempo real, e não mais em edições periódicas. O radio e a televisão invadiam as casas e outros locais. Não havia a necessidade de ter um horário de disseminação das informações. A qualquer hora era possível estar atualizado e em qualquer lugar.


Finalmente, no século XXI este protagonismo passou para a internet. Nesta nova forma de compartilhar informações não há mais a necessidade da institucionalização, qualquer pessoa coloca as suas ideias e notícias para todos os demais. Não mais a mediação profissional e institucionalizada. Qualquer pessoa pode difundir suas ideias e opiniões. É interessante que, no início, a internet divulgava as notícias que eram oriundas das rádios, da televisão e dos jornais. Com o passar do tempo e a expansão do acesso às redes sociais, os meios tradicionais é que passaram a divulgar as informações compartilhadas nesta nova esfera pública. As informações da internet passaram a ser divulgadas nos demais meios. Os jornais, as rádios e as televisões começaram a migrar para este novo espaço.


Um dos maiores riscos na área da saúde, em relação aos espaços públicos, é o da quebra de confidencialidade. Na área da saúde, nas décadas de 1990 e 2000, um dos locais de maior fragilidade para a confidencialidade eram os elevadores dos hospitais. As quebras de confidencialidade ocorreriam entre 8,9% e 15,8% das viagens em elevadores, de acordo com o país onde esta situação foi avaliada.


Com a entrada das redes sociais, a partir da década de 2010, estas oportunidades de quebras de confidencialidade aumentaram. No Facebook, por exemplo, foi constatada uma ocorrência de 26,3%, no Instagram de 19,9% e no Tweeter de 32,1%. As redes sociais potencializam a divulgação de informações que anteriormente eram mantidas de forma confidenciais por profissionais de saúde e alunos em formação. Vale lembrar que além da divulgação direta, existe a possibilidade de propagação destas mesmas informações por outras pessoas, sem controle por parte de quem as postou.


Em uma revisão sistemática sobre Redes Sociais, cobrindo o período de 2006-2020, realizada em 12 bases de dados, avaliando 544 artigos, foi possível identificar três diferentes categorias e dez diferentes usos. As categorias foram Instituições de Saúde, Profissionais de Saúde e Público em Geral .


Nas instituições de saúde foram encontrados quatro diferentes usos: vigilância de informações; disseminação de informações de saúde e combate a desinformação; realização de intervenções em Saúde e geração de mobilização social.


Nos profissionais de saúde os usos mais relevantes foram: facilitar a pesquisa em saúde; facilitar a comunicação entre médicos e pacientes e destes com os serviços de saúde; e a possibilidade de desenvolvimento profissional.


Finalmente, no público em geral, os usos mais destacados foram: buscar e compartilhar informações relacionadas à saúde; compartilhar suporte social em comunidades online; e acompanhar e compartilhar atividades e estados de saúde. 


Nestes usos identificados, seja por profissionais ou por instituições, as redes sociais apresentam riscos, tais como: disseminar informações de baixa qualidade; possibilitar danos à imagem profissional; riscos de quebras de privacidade de pacientes, por meio de dados e imagens compartilhadas; exposição demasiada da vida privada do próprio profissional; violação da fronteira da relação profissional-paciente; além da divulgação de credenciamento e de área de atuação profissional, que não podem ser adequadamente comprovados


Por outro lado, as redes sociais também oferecem oportunidades, tais como: possibilitar contatos entre profissionais (networking); permitir acesso mais facilitado à educação profissional; promover as organizações junto a sociedade; permitir maior comunicação com pacientes; ter potencial de gerar educação de pacientes; promover e divulgar programas de saúde pública; poder gerar contribuições à pesquisa; e, até mesmo, contribuir para um melhor cuidado de pacientes.


As redes sociais são uma realidade que não pode ser ignorada pela área da saúde. O que deve ser feito é uma avaliação e compreensão das múltiplas utilizações possíveis. A partir destas constatações, é possível estabelecer algumas recomendações práticas para os profissionais e alunos da área da saúde a respeito do uso de redes sociais em termos de imagem e identidade profissional, da utilização profissional das redes sociais e da comunicação com os pacientes.


Em relação a imagem e identidade profissional, é fundamental:

  • realizar periodicamente auditorias para verificar a sua presença pessoal nas redes. Os resultados podem gerar importantes dados sobre o que está circulando de informações e imagens referentes a cada profissional ou aluno. Estas auditorias podem gerar a necessidade de estabelecer uma correção do rumo da divulgação desta imagem profissional.

  • maximizar as configurações de privacidade de seus programas e sites que são utilizados. Muitas vezes as configurações em uso estão aquém dos padrões de proteção para informações pessoais sensíveis, como às referentes à área da saúde.

  • utilizar uma “dupla cidadania” nas redes, ou seja, separar o perfil profissional do perfil pessoal. Esta separação evita a confusão de papéis nas relações sociais, especialmente quando envolvem pacientes. Ter este cuidado não evita o acesso as informações de caráter mais pessoal, mas minimiza a exposição em ambientes profissionais. A postagem de informações ou imagens que podem comprometer a imagem do profissional ou do aluno devem ser evitadas ou, se forem divulgadas, terem seu acesso mais restrito.


Ao utilizar as redes sociais de forma profissional:

  • considere que todas as suas postagens passam a ser públicas e permanentes. Ao realizar uma divulgação o autor perde o controle da sua disseminação. Mesmo que a postagem seja apagada ou deletada, não existe a garantia de que não tenha sido copiada ou divulgada por outras pessoas para seus círculos de contatos.

  • considere que o seu comportamento na rede deve ser o mesmo que aquele realizado de forma presencial no ambiente de trabalho. As mesmas regras de cordialidade e convivência devem ser observadas em ambos os ambientes. 

  • evite compartilhar vinhetas ou fotos de casos, mesmo que não identificados. Isto só pode ser realizado, ainda com muita cautela, com a autorização expressa e documentada das pessoas expostas. Dados de pacientes, mesmo não identificados podem permitir a sua identificação, ou pior, podendo ocorrer uma identificação cruzada. As fotos, ainda que com medidas de descaracterização das imagens, permitem manipulação e reidentificação. Na divulgação de resultados de exames ou de imagens, todo cuidado é pouco, pois muitas vezes constam dados de registros que podem reidentificar os pacientes que ficam pouco evidentes.


Na comunicação com pacientes:
  • utilize meios seguros de comunicação com os pacientes e familiares, caso contrário, obtenha consentimento por escrito. Caso esteja realizando uma vídeo-chamada com um paciente, pergunte se tem mais alguém presente no local onde ele está, pois o campo visual não permite verificar a presença de outras pessoas. Isto é muito importante para preservar a privacidade dos pacientes.
  • evite comunicação profissional direta sobre informações de pacientes atendidos com outras pessoas que não sejam os próprios pacientes ou familiares por eles designados. Não é incomum pessoas se apresentarem como intermediários de pacientes solicitando informações pessoais sensíveis, como dados de saúde. Nesta situações informe que apenas o paciente e pessoas por ele identificadas e autorizadas podem ter acesso a estas informações..
  • reconheça que os pacientes e seus familiares podem não ter os mesmos recursos de informática que os profissionais e alunos dispõem. Muitos pacientes podem não ter acesso a redes de boa velocidade ou aparelhos que possibilitem chamadas de vídeo. É importante questionar sobre estas questões de acesso a estes recursos.



É muito importante destacar o que Mostaghimi e Crotty propuseram em 2011:


Não estamos sugerindo que os médicos devam ser proibidos de utilizar as redes sociais.

Os médicos apenas necessitam ter prudência (razão prática) quanto ao conteúdo e o tom

daquilo que será postado online.


Referencias

Joaquim Clotet. Una Introducción al tema de la Ética. Psico 1986;12(1)84-92.


Goldim JR. Bioética: origens e complexidade. Revista HCPA 2006;26(2):83-92.


Habermas J. Mudança Estrutural na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003.


Hasman A, Hansen NR, Lassen A, Rabøl R, Holm S. What do people talk about in Danish hospital elevators? Ugeskr Laeger. 1997;159(46):6819–2.


Ubel PA, Zell MM, Miller DJ, Fischer GS, Peters-Stefani D, Arnold RM. Elevator talk: observational study of inappropriate comments in a public space. Am J Med. 1995;99(2):190–4.


Langenfeld SJ, Cook G, Sudbeck C, Luers T, Schenarts PJ. An Assessment of Unprofessional Behavior Among Surgical Residents on Facebook: A Warning of the Dangers of Social Media. J Surg Educ; 2014;71(6):e28–32.


Moras iLS de, Dargél VA, Ribeiro JT, Fernandes MS, Goldim JR. A privacidade do paciente e o elemento responsabilidade na formação médica. Anais X Semana de Extensão, Pesquisa e Pósgraduação - SEPesq - UniRitter. Porto Alegre: UniRitter; 2014.


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Chen J, Wang Y. Social media use for health purposes: Systematic review. J Med Internet Res. 2021;23(5):1–16.


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Mostaghimi A, Crotty BH. Professionalism in the digital age. Ann Intern Med. 2011;154(8):560–2.


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