sábado, 30 de maio de 2020

COVID-19 e o Uso Compassivo ou Off Label de Medicamentos

José Roberto Goldim

Situações, como as que estamos vivendo na Pandemia de COVID-19, podem levar a utilização de drogas e medicamentos que não tenham liberação específica para este tipo de uso assistencial. É importante diferenciar as situações de Uso Compassivo de drogas e de Uso Off Label de medicamentos.

O Redensevir, produzido pelo laboratório Gilead, é um produto farmacêutico ainda não registrado em qualquer agência regulatória, como a ANVISA no Brasil, e o FDA, nos Estados Unidos. O fabricante disponibilizou uma quantidade de doses do produto para uso assistencial, mesmo antes de seu registro. Este tipo de utilização assistencial precoce caracteriza o que é denominado de Uso Compassivo, ou seja, quando uma droga, ainda experimental e sem qualquer registro, é utilizada para tratar pacientes sem dados que permitam o seu registro junto a uma agência regulatória. O "uso compassivo" se justifica, como uma excepcionalidade, para casos individuais, em função do médico julgar que possa haver um potencial benefício da droga e da ausência de uma terapia medicamentosa eficaz para um paciente acometido de uma determinada doença. Este é o raciocínio utilizado para prescrever assistencialmente o Redensevir a pacientes com COVID-19.

Por outro lado, a cloroquina é um medicamento já liberado, fazem muitos anos, para uso assistencial com indicações específicas. De acordo com a Bula do Produto, elaborada pela FIOCRUZ: "A cloroquina é indicada para profilaxia e tratamento de ataque agudo de malária    causado por Plasmodium vivaxP. ovale P. malarie. Também está indicada no tratamento de amebíase hepática e, em conjunto com outros fármacos, tem eficácia clínica na artrite reumatoide, no lúpus eritematoso sistêmico e lúpus discoide, na sarcoidose e nas doenças de fotossensibilidade como a porfiria cutânea tardia e as erupções polimórficas graves desencadeadas pela luz". O uso da Cloroquina ou de seu análogo, a Hidroxicloroquina, fora desta indicação caracteriza o que se convencionou chamar de Uso Off Label, ou seja, um uso assistencial fora da sua indicação terapêutica aprovada. O Uso Off Label é realizado por um médico assistente tendo em vista o benefício que este medicamento, fora de suas prescrições autorizadas, pode acarretar ao seu paciente assistencial. Este benefício deve ser cotejado contra os riscos associados ao seu uso, que já estão descritos na literatura médica e no próprio processo de liberação do produto. A cloroquina é um medicamento muito conhecido , quando utilizado nas suas indicações usuais, e apresenta inúmeros riscos de eventos adversos graves e esperados, já descritos na sua própria bula.

A droga Redensivir já tem publicados 61 artigos no PUBMED sobre a sua utilização. O artigo mais antigo é de 2016 e se refere ao seu uso em infecções do vírus Ebola. Esta droga já foi testada em macacos e demonstrou eficácia em alguns tipos de contaminação por vírus. No dia 10 de abril de 2020 o New England Journal of Medicine publicou o resultado de um estudo, que acompanhou 61 pacientes nos Estados Unidos, Europa e Ásia que fizeram Uso Compassivo desta droga.  Foi possível constatar, com todos os limites metodológicos deste tipo de estudo, que 68% dos pacientes tratados tiveram alguma melhora clínica. Os autores caracterizaram o estudo como sendo uma coorte, mas, a rigor, esta publicação é uma série de casos.

Em relação ao uso da cloroquina ou seu análogo hidroxicloroquina, para tratamento da COVID-19, existe uma grande controvérsia. Foi divulgado o resultado de um estudo relacionando o uso da cloroquina em pacientes com COVID-19. Eram resultados iniciais, de uma série de 100 pacientes tratados com cloroquina em hospitais da China. Posteriormente, este mesmo grupo de autores teve uma outra publicação, ainda na forma de "journal pre-proof"  de uma outra série de casos em pacientes franceses utilizando cloroquina e azitromicina no tratamento da COVID-19. 
Em um ambiente de incerteza e ansiedade pela busca de algum tratamento, a afirmativa de que a cloroquina seria um tratamento efetivo, como proposto nos dois estudos do pesquisador Didier Raouldt, foi amplamente divulgada pela imprensa e por outras pessoas não vinculadas à área da saúde. Isto gerou, em vários lugares do mundo, a compra desenfreada deste medicamento diretamente nas farmácias. Esta procura provocou um desabastecimento do medicamento, gerando situações de risco e apreensão por parte dos pacientes que já fazem uso assistencial de acordo com as indicações reconhecidas. Também em função destes artigos, estão sendo realizados inúmeros estudos por grupos de pesquisa, em diferentes países do mundo.  Em 11/04/2020, existiam 11 diferentes ensaios clínicos cadastrados no Clinical Trials, inclusive um do Brasil, e na Plataforma Brasil existiam outros doze estudos, sendo quatro multicêntricos e oito unicêntricos. Contudo,  no início de abril de 2020, a Sociedade Internacional de Quimioterapia Antimicrobiana (ISAC) divulgou um posicionamento formal considerando que este último artigo foi considerado como não tendo valor científico mínimo para ser publicado. Este posicionamento não teve uma grande repercussão na imprensa nem no meio científico.

Mesmo profissionais experientes confundem estes dois conceitos - Uso Compassivo e Uso Off Label.  O Prof. Ricardo Kalil, da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, referindo-se ao Uso Compassivo do Redensivir,  afirmou “I would never give this or any other experimental drug off-label to my patients.There is nothing compassionate about compassionate use. You are treating emotion.” 

O Conselho Federal de Medicina divulgou, em 23 de abril de 2020, o Parecer 4/2020 sobre o tratamento de pacientes portadores de COVID-19 com cloroquina e hidroxicloroquina. Neste documento, o Conselho Federal de Medicina propõe que estes medicamentos podem ser utilizados em três diferentes cenários. Os dois primeiros se referem a pacientes com sintomas leves ou com sintomas importantes compatíveis com o quadro clínico de COVID-19. Em ambas situações, o Parecer ressalta que "não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID-19". Na terceira situação, quando o cenário é descrito como sendo associado a "pacientes críticos recebendo cuidados intensivos", a utilização das drogas é caracterizada como sendo Uso Compassivo. Neste mesmo parágrafo existe a observação de que "é difícil imaginar que  (...) possam ter um efeito clinicamente importante". O Parecer continua afirmando que o médico deve "oferecer ao doente o melhor tratamento médico disponível no momento". Na conclusão do Parecer, o CFM propõe, de forma antecipada, que "não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19".

Contrariamente ao que foi divulgado na imprensa, o Parecer do CFM não é uma recomendação ou autorização para o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina. Na própria caracterização da utilização destas drogas o Parecer ressalta que não há "nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID-19". O CFM apenas estabelece que, em caso de prescrição destes medicamentos por um médico, o mesmo não poderá ser questionado desde o ponto de vista ético profissional. No mesmo documento, a caracterização como Uso Compassivo é equivocada, pois os dois medicamentos já estão liberados pela ANVISA, só que para outro tipo de indicação.Desta forma, a sua utilização é como uma prescrição Off Label. 

A Nota Informativa da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, datada de 27/03/2020, e as Orientações do Ministério da Saúde para Tratamento Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da COVID-19, posteriormente divulgada, mas sem data ou responsabilidade institucional indicada no documento, não fazem qualquer referência ao tipo de uso da Hidroxicloroquina ou da Cloroquina. Em ambos os documentos há a indicação da forma de uso individual ou combinado destas drogas fora da indicação para a qual foram liberados pela ANVISA. 

A maior diferença entre o Uso Compassivo e o Uso Off Label é o volume de conhecimento associado aos riscos com o uso da droga. O Uso Off Label, por utilizar um produto já disponível comercialmente, tem um grande volume de dados sobre segurança e tolerabilidade em outros tipos de doenças. Por sua vez, o Uso Compassivo, por ser uma droga nova,  ainda em fase de experimentação, não tem muitos estudos consolidados sobre a sua segurança e tolerabilidade. O Uso Compassivo e o Uso Off Label baseiam-se na presunção de que o paciente poderá vir a ter benefício associado. Desta forma, a relação risco-benefício é diferente entre ambos tipos de usos excepcionais terapêuticos.

Nos Estados Unidos existe a possibilidade da agência regulatória, FDA, dar uma Autorização para Uso Emergencial para uma droga ou conjunto de drogas em situações excepcionais. Esta é a melhor forma de fazer uma liberação,  caso hajam evidências que deem mínima condição de suporte à proposta. A Autorização para Uso Emergencial dá uma garantia para a prescrição adequada realizada pelos médicos e de acesso ao tratamento pelos pacientes, se considerado adequado à sua situação de saúde.. 

Para ler mais
Goldim JR. O uso de drogas ainda experimentais em assistência: extensão de pesquisa, uso compassivo e acesso expandido. Rev Panam Salud Pública / Pan Am J Public Heal. 2008;23:198–206. 

Kolata G. At the Center of a Storm: The Search for a Proven Coronavirus Treatment. New York Times [Internet]. 2020.

Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Farmanguinhos Cloroquina (Bula do profissional de saúde) [Internet]. BulasMed. 2020.

Colson P, Rolain JM, Lagier JC, Brouqui P, Raoult D. Chloroquine and hydroxychloroquine as available weapons to fight COVID-19. Int J Antimicrob Agents [Internet]. 2020;(xxxx):105932.

Gautret P, Lagier J-C, Parola P, Hoang VT, Meddeb L, Mailhe M, et al. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. Int J Antimicrob Agents [Internet]. 2020 Mar 20. 

International Society of Antimicrobial Chemotherapy (ISAC). Statement on IJAA paper Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial (Gautret P et al. PMID 32205204)[Internet]. ISAC.

Conselho Federal de Medicina. Processo-consulta CFM no 8/2020 - Parecer CFM no 4/2020. Brasilia, 23/04/2020.

Conselho Federal de Medicina. CFM condiciona uso de cloroquina e hidroxicloroquina à critério médico e consentimento do paciente. 23/04/2020.

Piller C. Former FDA leaders decry emergency authorization of malaria drugs for coronavirus. Science News 07/04/2020. 


Texto publicado originalmente em 11/04/2020, atualizado em 23/04/2020 e em 30/05/2020

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