domingo, 24 de maio de 2020

COVID-19 e o Processo de Consentimento na Assistência e na Pesquisa

José Roberto Goldim

A obtenção do consentimento para assistência ou para a pesquisa é fundamental. Salvo situações de atendimentos emergenciais, o consentimento é um dos fundamentos de uma relação adequada entre um profissional de saúde e um paciente ou participante de uma pesquisa. Nas situações emergenciais a premência de tempo associada à necessidade e ao benefício permitem que procedimentos sejam realizados no melhor interesse do paciente e com a finalidade de garantir a sua sobrevivência. 

O processo de consentimento tem três componentes: de capacidade do paciente; de informação e de autorização. A pandemia da COVID-19 teve repercussões em todos estes componentes.

O componente de capacidade se refere às questões psicológicas, morais e legais associadas ao ato de consentir. O paciente deve ter desenvolvimento psicológico-moral compatível com a tomada de decisão no seu melhor interesse. Este desenvolvimento não tem faixas etárias fixas. Um adolescente pode ter desenvolvimento necessário para tomar decisões enquanto que um adulto pode não ter. O fato da pessoa ser idosa, não determina que não tenha mais condições de tomar decisões por si mesma. A capacidade legal tem limites estabelecidos em lei para considerar uma pessoa capaz ou não. No Brasil a capacidade civil é atingida com 18 anos, quando a pessoa pode tomar decisões, na maioria das situações de vida relacional. 

O componente capacidade ficou comprometido quando foi proposto utilizar o critério de idade, de forma isolada, para alocar recursos escassos. Isto foi utilizado em alguns países, e chegou a ser proposto também no Brasil, para decisões tomadas durante a pandemia da COVID-19. Utilizar a idade de forma isolada é destituir a capacidade das pessoas acima deste limite estabelecido, seja ele 65 anos, ou outra idade qualquer. Esta proposta assume que estas pessoas não são capazes sequer de serem consideradas. É uma forma discriminatória que impede que elas participem, a priori, do processo de tomada de decisão, em uma situação do seu maior interesse. As pessoas maiores de idade só são destituídas de sua capacidade legal por meio de decisão judicial. Mesmo assim, a exemplo dos menores de idade, quando isto acontece, alguém assume a sua representação e responde pelos seus melhores interesses.

O componente de informação, na perspectiva do paciente, deve verificar se esta pessoa é efetivamente informável, ou seja, se tem condições de receber as informações e compreende-las. Esta característica inclui questões sensoriais, de idioma e de cognição. Na perspectiva do profissional de saúde, o componente de  informação implica em que ele deve conhecer os procedimentos, os risco e os benefícios associados à situação que envolve a tomada de decisão. Com base nestes conhecimentos, o profissional deve informar de maneira adequada ao paciente ou participante da pesquisa. 

Muitas vezes as pessoas restringem a avaliação do componente de informação apenas ao conteúdo do Termo de Consentimento. É sabido que mais importante do que o Termo de Consentimento, são as informações verbais utilizadas ao longo do processo. O Termo de Consentimentos é o documento que materializa estas informações. Para avaliar se a informação foi adequadamente disponibilizada a um paciente, é importante  verificar a legibilidade deste documento. A legibilidade, traduzida do original "readability", tem recebido várias outras traduções em língua portuguesa, tais como leiturabilidade e apreensibilidade. A legibilidade avalia a estrutura do texto, indicando a dificuldade exigida para a sua leitura. O ideal, para documentos voltados à população em geral, é que o texto tenha uma exigência média de seis anos de escolaridade. 

Em uma avaliação dos Termos de Consentimento utilizados na assistência, no Reino Unido, a exigência de escolaridade variou de 6,3 a 8 anos de escola, ou seja, foram considerados como sendo acessíveis à população à qual se destinam. As Orientações do Ministério da Saúde para Manuseio Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da COVID-19  incluíram, como anexo, um Termo de Ciência e Consentimento. Este documento foi proposto para informar o paciente e obter o seu conhecimento. A avaliação da legibilidade deste documento resultou em uma escolaridade de 27 anos. Da mesma forma, o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul, propôs um Termo de Esclarecimento e Responsabilidade - Uso compassionado de medicamento cloroquina e hidroxicloroquina, que exige 24 anos de estudo. Ou seja, os textos propostos, sem entrar no mérito de seu vocabulário ou conteúdo, mas apenas quanto as suas estruturas, exigem uma escolaridade muito acima da verificada na população brasileira. Em 2018, cerca de 6,8% da população com 15 anos ou mais era analfabeta, elevando-se para 18,6% no grupo acima de 60 anos, e 53,4% não completaram a educação em nível médio. 

O componente de consentimento propriamente dito, ou seja, aquele que obtém a autorização do paciente para a realização do procedimento proposto, deve verificar o grau de coerção associado ao processo de sua obtenção. Habitualmente, é o profissional que tem que avalia se está exercendo algum tipo de influência indevida. Na convicção de que a sua proposta, visando o bem do paciente, o profissional pode tentar convencer, mas não persuadir. O convencimento se baseia na argumentação, em dados passíveis de discussão, enquanto que a persuasão utiliza as crenças e emoções para buscar atingir o seu objetivo. A persuasão pode se transformar em coerção, quado associada a algum tipo de relacionamento hierárquico ou de submissão.

A necessidade do paciente em querer de tratar, a publicidade utilizada para divulgar os supostos benefícios associados ao uso de um medicamento ou procedimento, pode fazer com que esta relação se inverta durante o processo de obtenção do consentimento. O médico é poderá ser persuadido pelo paciente, ou seus familiares, a ter que prescrever uma medicação ou a realizar um procedimento. Mais do que atender a uma necessidade, o médico estará atendendo a um desejo, com base em informações com as quais não concorda, devido a inúmeros riscos associados ou pelos benefícios serem duvidosos ou não comprovados. 

Outra questão importante, é a forma de documentar a autorização do paciente ou de seus representantes, que é o resultado do processo de consentimento. A impossibilidade da presença física de familiares responsáveis para autorizar procedimentos diagnósticos ou tratamentos, fez com que fossem utilizados outros meios, na área assistencial, para informar e obter o consentimento de familiares de pacientes impossibilitados de autorizar. A utilização de chamadas de vídeo, de uso de meios de comunicação por texto, como o WhatsApp, permitiu que este processo se mantivesse adequado, mesmo com estas restrições impostas pela pandemia da COVID-19. Esta utilização de novos meios de relação entre os profissionais e os fmailaires é adequada eticamente em função das circunstâncias decorrentes desta situação excepcional. Na área da pesquisa envolvendo seres humanos, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), por meio das Orientações Para Condução De Pesquisas E Atividade Dos Ceps Durante a Pandemia Provocada Pelo Coronavírus Sars-Cov-2, no item 6.4, também se manifestou a este respeito. Foi dada a autorização para a utilização destes mesmos recursos, já utilizados na assistência. Estes procedimentos, além de documentar a autorização também reduzem os riscos de exposição para pacientes e membros de equipes de pesquisa.

O processo de consentimento, quando bem conduzido, é um dos elementos que garante a adequação da relação entre o profissional de saúde e pacientes ou participantes de uma pesquisa. É um processo de decisão que se compartilha com todos os envolvidos. O consentimento não pode ser reduzido apenas à assinatura do Termo de Consentimento. Este processo é parte das garantias do respeito ao direito de dignidade das pessoas, da sua liberdade e de integridade,  fundamentais nas decisões assistenciais e de pesquisa. Situações excepcionais, como as impostas pela Pandemia da COVID-19, apenas reforçam a necessidade de preservar a adequação destas características, nunca de suprimir as emsmas. 

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