José Roberto Goldim
A pressão da comunidade mundial para o desenvolvimento acelerado de vacinas já teve o seu resultado. A média histórica de 12,5 anos para o desenvolvimento de um novo produto na área da saúde foi encurtada para alguns meses. A previsão de que os estudos de fase 3, na perspectiva mais otimista, fossem iniciados em 2023, foi derrubada pois, pelo menos nove projetos de vacina já estão em execução em setembro de 2020.
Com o avanço dos projetos de pesquisa, as questões se deslocam da segurança e da tolerabilidade para a eficácia em curto, médio e longo prazo. Uma importante questão é saber se as pessoas já vacinadas durante os projetos de pesquisa tem efetivamente uma imunidade ativa contra o Sars-CoV-2.
Existe uma mobilização, principalmente gerada por um grupo norte-americano, em defesa da realização de estudos de desafio humano em COVID-19. Este grupo já contou com o apoio de inúmeras pessoas, inclusive cientistas e outras pessoas com grande influência na sociedade. Este grupo já tem um outro site que defende diferentes formas de doação de órgãos intervivos com o objetivo reduzir o tempo de lista de espera. O traço comum entre as duas propostas é incentivar comportamentos altruístas. No site do 1daysooner já tem um registro de mais de 37000 pessoas, de 162 países, que se voluntariaram para participar de estudos de desafio humano.
Neste tipo de estudo as pessoas participantes são intencionalmente exposta à contaminação de uma doença, com a finalidade de verificar a sua evolução e a sua imunidade gerada por vacinação prévia. Estes estudos envolvem a preparação de agentes infectantes, a transmissão intencional aos voluntários e o seu acompanhamento a curto, médio e longo prazo. No início destes estudos os participantes ficam alojados com rígido controle de isolamento. Este período é compatível com o risco de transmissão para outras pessoas da comunidade. Eles voltam ao convívio social apenas quando não há risco de transmissão. Os efeitos são acompanhados por longos períodos visando avaliar as questões de imunidade, de eventos adversos e outros eventos associados.
Os estudos de desafio humano deveriam ser denominados de estudos de desafio de infecção humana controlada ou, melhor ainda, de estudos de modelos controlados de infecção em seres humanos.
Na história da pesquisa em seres humanos, inúmeros estudos, hoje tidos como inadequados, foram realizados utilizando esta estratégia. Vale lembrar que desde o século 18, com os estudos envolvendo a transmissão e a imunização de varíola são feitos estudos deste tipo. No século 19 foram inúmeros estudos sobre sífilis e raiva que infectaram propositadamente pessoas sadias e pacientes visando verificar sua imunidade. No século 20 podem ser destacados os estudos de febre amarela realizados em Cuba e no Brasil, nos anos de 1900 a 1903, e o estudo de hepatite realizado em Willowbrock/Estados Unidos na década de 1950.
Nos últimos 50 anos, contudo, inúmeros estudos de desafio humano foram realizados de forma adequada e auxiliaram no desenvolvimento de novas vacinas e na proteção imunológica de algumas doenças. É difícil saber quantas vezes estes estudos foram realizados, pois não existe um indexador específico nas bases de dados.
Na vigência da pandemia da COVID-19, a Organização Mundial da Saúde publicou um documento sobre os critérios éticos de aceitabilidade para a realização deste tipo de estudos. Foram listados oito critérios:
1) Justificativa científica;
2) Avaliação dos potenciais riscos e benefícios;
3) Consulta e comprometimento do público, de especialistas e de responsáveis pela elaboração de políticas públicas;
4) Coordenação conjunta de pesquisadores, órgãos financiadores, encarregados de elaborar políticas públicas e pelos aspectos regulatórios;
5) Seleção dos locais de realização levando em conta os mais altos padrões científicos, clínicos e éticos;
6) Seleção dos participantes com critérios estabelecidos para limitar e minimizar os riscos associados;
7) Revisão por um comitê de especialistas independentes;
8) Consentimento informado rigoroso.
O quadro comparativo apresenta os oito critérios propostos pela e suas interações em uma perspectiva abrangente. Nestas associações é possível visualizar a complexidade da avaliação da adequação dos estudos de desafio humano. Alguns destes critérios podem ser melhor detalhados.
A justificativa científica deve contemplar simultaneamente o bem da humanidade e a proteção dos participantes. Não se justifica expor individualmente as pessoas visando gerar conhecimentos úteis e necessários à coletividade. O item 8 da Declaração de Helsinque, versão 2013, é claro ao afirmar que:
Embora o objetivo principal da pesquisa médica seja gerar novos conhecimentos, esse objetivo nunca pode ter precedência sobre os direitos e interesses dos sujeitos de pesquisa individuais.
A avaliação dos potenciais riscos e benefícios associados a estes projetos deve ser extremamente prudente, pois existem poucos conh ecimentos disponíveis sobre o SARS-CoV-2 e a COVID-19. É sempre bom lembrar o pouco tempo decirrido deste a sua caracterização no final de dezembro de 2019. O estabelecimento de risco depende de conhecimentos prévios. Na ausência de conhecimentos diretos, podem ser feitas analogias com a evolução de outras doenças semelhantes, mas com um alto grau de incerteza associado.
É sempre bom lembrar que é "eticamente inadequado assumir que um risco, quando incerto ou desconhecido, é igual a zero ou seja considerado como não importante". Este pensamento de Kristin Shrader-Frechette deve orientar as avaliações da relação risco/benefício associada aos projetos de desafio humano. Inúmeros riscos de médio e longo prazo são desconhecidos e não podem ser desprezados por este motivo.
Um importante ponto associado é que estes estudos têm um risco criado ou construído pela própria pesquisa, ou seja, estas pessoas serão infectadas, ainda que voluntariamente, em função de sua participação na pesquisa. A definição de risco construído foi proposta por Anthony Giddens.
Um dos primeiros autores a estudar temas relacionados ao risco, Antoine Arnauld, em 1662, afirmou que "O medo do dano deveria ser proporcional, não apenas à gravidade do dano, mas também à probabilidade do evento".
A proposta de consulta e comprometimento do público, de especialistas e de responsáveis pela elaboração de políticas públicas é muito desejável, mas com a velocidade com que os projetos estão sendo propostos na pesquisa em COVID-19, isto nem sempre é realizado. Algumas vezes apenas os Comitês de Ética em Pesquisa se manifestam. A centralização da avaliação dos projetos pro comissões nacionais, como a CONEP no Brasil, reduz a discussão local dos projetos que podem ter algum questionamento local. Os responsáveis pela gestão local das instituições e dos sistemas de saúde não têm conhecimento da diversidade e complexidade das pesquisas realizadas. É fundamental, também, que haja uma avaliação prévia realizada por um comitê de especialistas independentes.
Além disto, estes estudos devem ter visibilidade pública, ou seja, antes de serem iniciados, deve haver a sua divulgação em um registro de estudos clínicos aberto a consulta de qualquer pessoa. No site do Clinical Trials existem mais de 700 estudos cadastrados como sendo de desafio humano. Destes, 198 estudos estão em execução e 434 já foram concluídos. Não há registro de estudo de desafio humano envolvendo COVID-19 até 20 de setembro de 2020.
A proposta de que haja uma coordenação conjunta de pesquisadores, órgãos financiadores, encarregados de elaborar políticas públicas e pelos aspectos regulatórios também é de difícil implementação. As iniciativas de realização de projetos tem origem múltipla, nas universidades, instituições de pesquisa em saúde privadas ou públicas, em empresas de biotecnologia, em grandes conglomerados de empresas das áreas farmacêuticas e dos mais variados organismos de financiamento. Em um cenário tão diverso e pressionado pela premência de gerar novos conhecimentos é difícil buscar uma coordenação entre todos estes envolvidos. Muitas vezes são negociações e propostas realizadas em paralelo. As questões de financiamento destes estudos é de difícil planejamento, em função da incerteza associada ao desenrolar dos próprios estudos.
A seleção dos locais de realização dos estudos de desafio humano deverá levar em conta os mais altos padrões científicos, clínicos e éticos. A dificuldade vai ser contar com a infraestrutura de apoio necessário à manutenção dos participantes de pesquisa pelo período de isolamento em condições adequadas de conforto e segurança. Vale lembrar que estas pessoas, a princípio não estão doentes, são potencialmente doentes em função do delineamento utilizado.Toda a equipe de pesquisa envolvida, assim como o pessoal de apoio terão que atender a todas as medidas de segurança pessoal e comunitária. As instalações necessárias para a manipulação dos agentes biológicos também são um ponto crucial na realização destes exames. A garantia de suporte de atendimento médico compatível com a gravidade do quadro de saúde apresentado pelos participantes é fundamental. Vale lembrar que a evolução conhecida da COVID-19 pode demandar longos períodos de internação em unidades de cuidados intensivos com a utilização de inúmeros recursos tecnológicos.
A seleção dos participantes destes projetos deve utilizar critérios que limitem e minimizem os riscos associados. Além disto, a seleção não pode ter um caráter discriminatório nem de indução à participação. A espontaneidade das pessoas interessadas em participar destes estudos pode ser influenciada por fatores pessoais e sociais. O impulso altruísta pode ser devido a outros fatores associados a saúde mental destas pessoas. Desde o ponto de vista social, também pode haver a presença de fatores que exerçam pressões no sentido de que a opção em participar ou não possa ser ter algum elemento de reconhecimento ou de descrédito social. Sem contar com elementos coercitivos associados a vinculação dos potenciais participantes com instituições hierárquicas. A seleção de faixas etárias com menor risco de gravidade da doença, como por exemplo dos 20 aos 30 anos pode ser entendida como um fator de proteção ou de discriminação. Da mesma forma, ao contrário dos estudos de vacina, a participação de profissionais vinculados a serviços essenciais como saúde e segurança deveria ser avaliada com extrema cautela.
Finalmente, o processo de consentimento a ser utilizado na inclusão dos participantes destes estudos deverá avaliar os componentes de capacidade, de informação e de consentimento propriamente ditos de forma rigorosa.
A capacidade dos potenciais participantes deverá ser aferida em função do seu nível de desenvolvimento psicológico-moral, e não apenas pelo critério etário legal. Mesmo pessoas consideradas legalmente capazes, podem não ter desenvolvimento psicológico-moral compatível com a magnitude da relação risco-benefício envolvida. Esta avaliação poderá avaliar as pessoas que estão buscando participar meramente por um impulso.
O componente de informação é crítico, pois deverão ser compartilhados conhecimentos essenciais necessários à compreensão adequada do que está sendo proposto. Alguns conhecimentos básicos poderão ser necessários para que esta compreensão seja possível. Da compreensão é que deve surgir o comprometimento, e não o impulso, para permitir a autorização para a participação.
O componente de consentimento é que permite obter a autorização do potencial participante para a sua participação. O processo de consentimento pressupõe a liberdade para poder aceitar ou não o convite à participação no estudo. Esta liberdade deve ser preservada impedindo a presença de elementos de coerção associados ao próprio processo. A garantia da voluntariedade dos potenciais participantes é fundamental. Na realização de estudos de Fase 1 algumas empresas e instituições de pesquisa tem remunerado os participantes. Isto acaba sendo mais um fator de interferência no processo de consentimento.
A criação de cadastros genéricos de voluntários para pesquisas em qualquer nível, especialmente em situações como os estudos de desafio humano, é altamente questionável. A rigor é uma inversão do processo de consentimento. O convite deve partir dos pesquisadores para os participantes e não ser uma oferta de participantes com interesse prévio a elaboração do prórpio protocolo de pesquisa. Todas as mais de 37000 pessoas que se inscreveram no site da 1daysooner já deram uma pré-aprovação à sua participação desconhecendo todas as informações relativas aos projetos. Um elemento importante de possível coerção é a divulgação de que muitos cientistas renomados assinaram o documento de apoio. Pode ser um argumento de autoridade que tolhe a necessidade de ser informado previamente. Outro fator é que estes estudos envolvem amostras que não são tão numerosas a ponto de necessitarem este volume de voluntários. A questão da proteção de dados pessoais destes potenciais participantes é um poutro ponto importante a ser questionado.
Não houve qualquer manifestação no sentido de impedir a realização adequada de estudos de desafio humano envolvendo COVID-19. O que houve foi claramente a utilização do prncípio da precaução em não realizar estes estudos durante a ocorrência de uma pandemia causada por um novo vírus, com características desconhecidas até pouco tempo, além da incerteza associada a própria evolução da doença e da falta de uma medicação efetiva específica.
A geração precipitada de um clima da necessidade na realização destes estudos teve grande repercussão na imprensa leiga. Uma leitura descontextualizada desta situação pode levar a perspectiva equivocada de que a comunidade científica, as instituições de pesquisa ou os órgãos regulatórios estariam sendo contrários à realização destes estudos.
No estágio atual das pesquisas, com a realização de dezenas de estudos de novas vacinas em um tempo muito menor do que a história da ciência registrou, não há ainda necessidade de realização destes estudos de desafio humano. Os dados de proteção imunológica das novas vacinas poderão ser gerados pela própria seleção de participantes nestes estudos com maior risco profissional associado ou pela própria exposição comunitária ao vírus em locais onde a propagação ainda é elevada.
Todas estas reflexões remetem para a preservação dos critérios básicos de avaliação de projetos de pesquisa, que podem ser resumidos em apenas três itens: a relevância do projeto, a sua exequibilidade e a possibilidade de geração de conhecimento. Todos estes critérios devem ser coerentemente cotejados com a preservação da dignidade humana de todas as pessoas envolvidas, sejam eles participantes, pesquisadores, trabalhadores das instituições e a própria sociedade.
Para ler mais:
WHO. Key criteria for the ethical acceptability of COVID-19 human challenge studies 6 May 2020. Geneve; 2020.
Shrader-Frechette K. Ethics of scientific research. Boston: Rowman,1994.
Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002:104-134.
Antoine Arnauld. A Arte de Pensar. 1662.