José Roberto Goldim
A integridade na pesquisa tem sido uma preocupação crescente entre os cientistas e na própria sociedade. No início das discussões a denominação utilizada era de desonestidade na ciência. O Comitê Dinamarquês sobre Desonestidade Científica foi pioneiro em discutir este tema.
Em 2010 foram divulgados os Princípios para a Integridade na Pesquisa que propõem que haja honestidade
em todos os aspectos da pesquisa: responsabilidade
social na condução da pesquisa; polidez
e justiça no trabalho com outras pessoas; e boa
gestão da pesquisa em benefício de terceiros.
A pandemia da COVID-19 já gerou a publicação de 19571 artigos e outras formas de publicações em revistas científicas, catalogados na base PUBMED até 06/06/2020. Estas publicações abrangem um amplo espectro de temas relacionados a esta situação em que toda a população mundial se viu envolvida.
Esta situação de emergêcia sanitária tem aberto a possibilidade de publicar resultados muito mais rapidamente que o ususal. A publicação de artigos, sem uma revisão adequada, cartas aos editores, notas prévias e "pre-prints", alem de divulgação direta na imprensa leiga ou pela internet, tem gerado uma quase saturação de dados, porém com poucas informações adequadamente incorporadas ao conhecimento das pessoas.
Estas publicações, em meio a incerteza causada pela nova pandemia, deveriam estar gerando um conjunto de conhecimentos que permitam melhorar a compreensão do que está acontecendo e de planejar melhores métodos de diagnóstico, tratamento e prevenção. além do efeito do volume de publicações, também tem o problema da qualidade. Muitas publicações divulgadas já foram retratadas, ou que mereceram nota de preocupação de que podem ser inadequadas, ou foram corrigidas em função de erros ou de fraudes detectadas.
O banco de dados da Retraction Watch já tem inúmeros registros de estudos que foram denunciados ou assumidos pelos próprios autores como tendo algum problema que invalida a utilização de seus resultados.
Estes 17 registros, até o dia de 06/06/2020, envolvem 10 publicações, pois alguns deles têm mais de um registro, seja por ocorreção, nota de preocupação ou retratação.
Dois artigos se destacam, pois ambos envolvem estudos sobre o uso de hidroxicloroquina e azitromicina para o tratamento da COVID-19, um a favor e outro contra. Fazendo uma análise apenas destes dois artigos é possível identificar inúmeras situações que atentam contra os princípios da integridade na pesquisa, especialmente em termos de honestidade científica e responsabilidade social envolvidos.
O primeiro artigo, elaborado por um grupo de pesquisadores da França e do Vietnam, propunha que este tratamento era eficaz. Ele foi publicado em 20 de março e teve duas notas de preocupação sobre a sua validade, uma em 04 de abril e outra em 11 de abril. Uma delas questionava o estudo como um todo, em termos de padrões mínimos para permitir uma publicação científica válida.
O segundo artigo, com resultados contrários à utilização deste mesmo tratamento, foi elaborado por um grupo de pesquisadores liderados por Mandeep Mehra, vinculados a importantes universidades dos Estados Unidos e da Suíça. Este artigo foi publicado em 22 de maio, corrigido em 30 de maio, recebeu uma nota de preocupação com os seus resultados em 03 de junho e foi retratado em 04 de junho. Vale ressaltar que este artigo foi publicado por uma das mais respeitadas revistas científicas na área médica, a revista Lancet.
É importante lembrar que um outro artigo, publicado por Andrew Wakefield e colaboradores, nesta mesma revista, em 1998, teve uma enorme repercussão ao associar a vacina MMR e a ocorrência de autismo. Este artigo foi retratado parcialmente em 2004 e integralmente em 2010. Infelizmente, até hoje, este artigo é ainda citado como uma referência contra os programas de vacinação.
As informações de mais de 96000 pacientes, atendidos em 671 hospitais ao redor do mundo, contidos na base da dados da empresa Surgisphere, é que foram analisados no artigo publicado na revista Lancet sobre o uso de cloroquina. Logo após a sua publicação, começaram a surgir alguns questionamentos sobre a base de dados utilizada. Foi solicitada uma auditoria independente às informações, que foi negada pela Surgisphere. Algumas inconsistências foram relatadas, especialmente com relação aos dados dos hospitais australianos. Houve um pedido de correção dos dados, por parte dos próprios autores, mas esta correção não foi motivo para a retratação do artigo como um todo.
Logo após a retratação do artigo da revista Lancet, o mesmo grupo de pesquisadores teve outro artigo retratado pelo New England Journal of Medicine. Este artigo também utilizou os mesmos dados da empresa Surgisphere.
Esta empresa de análise de dados está sendo objeto de inúmeros questionamentos sobre as suas práticas e sobre a própria qualidade das informações que tem disponibilizado para estudos. A utilização de bases de dados agregados e anonimizados, como a fornecida pela Surgisphere, sem a devida análise de confiabilidade dos mesmos, pode gerar análises infundadas. Vale lembrar que vários hospitais, potencialmente envolvidos no compartilhamento de dados com a Sugisphere, negaram qualquer vínculo que esta empresa.
Caso se confirmem as suspeitas a respeito da confiabilidade da base de dados utilizada, o autor dos artigos, associado a esta empresa, poderá ser acusado de fraude científica, em função dos dados serem fictícios. Os demais autores e revisores dos artigos poderão ser acusados de negligência na condução e publicação destas pesquisas,
A possibilidade de que tenha havido uma falha na avaliação da veracidade dos dados foi o motivo pelo qual três dos autores do artigo da revista Lancet solicitaram a revisão da própria base de dados. Vale lembrar que este cuidado não foi tomado quando da utilização desta base de dados. Os editores e revisores também não tiveram o cuidado de solicitar o acesso à base de dados utilizada, ou, no mínimo, às características de coleta e consolidação das informações ali contidas. A verificação da veracidade dos dados poderia ser feita de maneira bastante simples utilizando a Lei de Benford. Esta avaliação dos registros de dados permite verificar se os mesmos apresentam a distribuição de Benford. A sua não conformidade com esta distribuição pode sugerir que houve fraude na construção da base de dados.
Estes 17 registros, até o dia de 06/06/2020, envolvem 10 publicações, pois alguns deles têm mais de um registro, seja por ocorreção, nota de preocupação ou retratação.
Dois artigos se destacam, pois ambos envolvem estudos sobre o uso de hidroxicloroquina e azitromicina para o tratamento da COVID-19, um a favor e outro contra. Fazendo uma análise apenas destes dois artigos é possível identificar inúmeras situações que atentam contra os princípios da integridade na pesquisa, especialmente em termos de honestidade científica e responsabilidade social envolvidos.
O primeiro artigo, elaborado por um grupo de pesquisadores da França e do Vietnam, propunha que este tratamento era eficaz. Ele foi publicado em 20 de março e teve duas notas de preocupação sobre a sua validade, uma em 04 de abril e outra em 11 de abril. Uma delas questionava o estudo como um todo, em termos de padrões mínimos para permitir uma publicação científica válida.
O segundo artigo, com resultados contrários à utilização deste mesmo tratamento, foi elaborado por um grupo de pesquisadores liderados por Mandeep Mehra, vinculados a importantes universidades dos Estados Unidos e da Suíça. Este artigo foi publicado em 22 de maio, corrigido em 30 de maio, recebeu uma nota de preocupação com os seus resultados em 03 de junho e foi retratado em 04 de junho. Vale ressaltar que este artigo foi publicado por uma das mais respeitadas revistas científicas na área médica, a revista Lancet.
É importante lembrar que um outro artigo, publicado por Andrew Wakefield e colaboradores, nesta mesma revista, em 1998, teve uma enorme repercussão ao associar a vacina MMR e a ocorrência de autismo. Este artigo foi retratado parcialmente em 2004 e integralmente em 2010. Infelizmente, até hoje, este artigo é ainda citado como uma referência contra os programas de vacinação.
Logo após a retratação do artigo da revista Lancet, o mesmo grupo de pesquisadores teve outro artigo retratado pelo New England Journal of Medicine. Este artigo também utilizou os mesmos dados da empresa Surgisphere.
Esta empresa de análise de dados está sendo objeto de inúmeros questionamentos sobre as suas práticas e sobre a própria qualidade das informações que tem disponibilizado para estudos. A utilização de bases de dados agregados e anonimizados, como a fornecida pela Surgisphere, sem a devida análise de confiabilidade dos mesmos, pode gerar análises infundadas. Vale lembrar que vários hospitais, potencialmente envolvidos no compartilhamento de dados com a Sugisphere, negaram qualquer vínculo que esta empresa.
Caso se confirmem as suspeitas a respeito da confiabilidade da base de dados utilizada, o autor dos artigos, associado a esta empresa, poderá ser acusado de fraude científica, em função dos dados serem fictícios. Os demais autores e revisores dos artigos poderão ser acusados de negligência na condução e publicação destas pesquisas,
Este é um exemplo de decisão baseada na arrogância tecnológica, pois a utilização de conceitos como Big Data, Machine Learning e Data Analytics, dá uma aparente sensação de integridade e robustez a uma base de dados sem consistência.
Outra situação muito inusitada e duplamente equivocada foi a publicação de um falso artigo sobre a relação do uso da cloroquina e os acidentes de patinetes elétricas. Este artigo foi escrito por um grupo de pesquisadores da França, liderados por Michael Rochoy, com a finalidade de desacreditar a revista Asian Journal of Medicine and Health.
O falso artigo encaminhado foi supostamente avaliado por revisores e editores antes de sua publicação. O artigo é totalmente fictício, incluindo os nomes dos autores, as instituições científicas citadas e todos os dados citados. Esta mesma estratégia já foi utilizada em 1996 pelo físico Alan Sokal, quando publicou um artigo na revista Social Text. Posteriormente, Sokal publicou um livro chamado Imposturas Intelectuais, com Jean Bricmont, onde criticou o papel dos editores e a falta de integridade nas publicações.
Esta estratégia de denunciar a falta de integridade, contudo, é discutível, desde o ponto de vista ético. Estes autores, Alan Sokal, no passado e Michael Rochoy, atualmente, utilizaram um engano deliberado para demonstrar a falta de integridade. O problema é a falta de integridade deste método de denunciar comportamentos equivocados de editores.
Os demais artigos, pre-prints e correspondências retratados envolvem inúmeras outras situações de saúde associadas à COVID-19, tais como questões associadas a gestação, sexualidade, uso de vitamina D, mortalidade cardíaca, medicina legal, hemodiálise e outras drogas. O Observatório de Integridade Científica e COVID-19 mantém atualizados os dados e referências de publicações retratadas.
As situações descritas são de alto risco, individual e coletivo, pois podem influenciar decisões de atenção à saúde individual como de políticas públicas. A leitura acrítica dos artigos científicos é sempre perigosa. O uso do argumento de autoridade aplicado aos autores, às instituições e aos periódicos é muito arriscado. Vários autores renomados, instituições reconhecidas pela sua excelência e periódicos de alto impacto, tiveram pesquisas corrigidas ou retiradas do conjunto dos conhecimentos tidos como válidos. Os danos gerados pela geração e divulgação de conhecimentos errados ou falsificados podem ser imediatos ou ocorrer ao longo de vários anos.
Para ler mais:
Riis P. O Comitê Dinamarquês sobre Desonestidade Científica. Rev Bioética. 1998;6(2):156–7.
Noorden R Van. The trouble with retractions. Nature. 2011 Nov;478:26–8.
Fang FC, Steen RG, Casadevall A. Misconduct accounts for the majority of retracted scientific publications. Proc Natl Acad Sci. 2012;109(42):17028–33.
As situações descritas são de alto risco, individual e coletivo, pois podem influenciar decisões de atenção à saúde individual como de políticas públicas. A leitura acrítica dos artigos científicos é sempre perigosa. O uso do argumento de autoridade aplicado aos autores, às instituições e aos periódicos é muito arriscado. Vários autores renomados, instituições reconhecidas pela sua excelência e periódicos de alto impacto, tiveram pesquisas corrigidas ou retiradas do conjunto dos conhecimentos tidos como válidos. Os danos gerados pela geração e divulgação de conhecimentos errados ou falsificados podem ser imediatos ou ocorrer ao longo de vários anos.
Para ler mais:
Riis P. O Comitê Dinamarquês sobre Desonestidade Científica. Rev Bioética. 1998;6(2):156–7.
Noorden R Van. The trouble with retractions. Nature. 2011 Nov;478:26–8.
Academia Brasileira de Ciências. Rigor e Integridade na Condução da Pesquisa Científica. 1ed. Rio de Janeiro, ABC; 2013.
Goldim JR. Fraude e Integridade na Ciência. ComCiência (UNICAMP). 2013;147.
Goldim JR. Fraude e Integridade na Ciência. ComCiência (UNICAMP). 2013;147.
Este texto foi originalmente publicado em 14/07/2020 e atualixzado em 17/08/2020
Professor mais uma vez grato pela sua lucidez ética neste texto. Abs Luiz Ayrton (UFPI)
ResponderExcluir