quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Redes Sociais e Bioética

José Roberto Goldim




Muitas vezes, quando se fala em Ética, as pessoas relacionam com impedimentos gerados por Códigos de Ética Profissional. A Ética propriamente dita é diferente. Segundo Joaquim Clotet, a Ética tem por objetivo facilitar a realização das pessoas. Este é o objetivo das reflexões éticas: aprimorar o viver das pessoas. 


Esta é a proposta da Bioética. Entender como fazer esta possibilidade de aprimorar o viver é fruto de uma reflexão compartilhada, complexa e interdisciplinar sobre a adequação de ações que realizamos. Fazer uma reflexão complexa é incluir as múltiplas perspectivas da realidade. Fazer uma reflexão compartilhada é dialogar, é compartilhar conhecimentos e argumentos. Fazer uma reflexão interdisciplinar é incluir as múltiplas perspectivas de visão de mundo e da realidade, geradas a partir de diferentes olhares, que possibilitam, por esta troca, a geração de novos conhecimentos, antes não existentes ou consolidados.


A reflexão sobre a adequação das nossas ações ultrapassa a simples perspectiva do bem e do mal, do correto e do incorreto. Ao verificar os fatos e circunstâncias envolvidos e permitir uma reflexão contextualizada, se vislumbra um conjunto de justificativas para realizar ou não esta determinada ação.


É nesta perspectiva que proponho fazer esta reflexão sobre o uso adequado das redes sociais. Elas estão na ordem do dia das discussões na nossa sociedade. É importante relembrar as discussões propostas por Habermas sobre o que é a Esfera Pública, como o espaço onde as pessoas podem se reunir e debater as suas ideias, é o espaço privilegiado de formação da chamada opinião pública.


No século XVIII, a Esfera Pública ocorria na nova imprensa artesanal. Era um novo espaço de compartilhamento de ideias e opiniões. Embora restrito, teve uma importância pela sua difusão continuada.


No século seguinte foi a vez da imprensa comercial, com os grande jornais. Estes periódicos tinham grande tiragem, com periodicidade regular e grande abrangência. As fronteiras da esfera pública foram sendo alargadas para além das comunidades locais.


O rádio e a televisão assumiram este papel no século XX, com uma difusão massiva de informações em tempo real, e não mais em edições periódicas. O radio e a televisão invadiam as casas e outros locais. Não havia a necessidade de ter um horário de disseminação das informações. A qualquer hora era possível estar atualizado e em qualquer lugar.


Finalmente, no século XXI este protagonismo passou para a internet. Nesta nova forma de compartilhar informações não há mais a necessidade da institucionalização, qualquer pessoa coloca as suas ideias e notícias para todos os demais. Não mais a mediação profissional e institucionalizada. Qualquer pessoa pode difundir suas ideias e opiniões. É interessante que, no início, a internet divulgava as notícias que eram oriundas das rádios, da televisão e dos jornais. Com o passar do tempo e a expansão do acesso às redes sociais, os meios tradicionais é que passaram a divulgar as informações compartilhadas nesta nova esfera pública. As informações da internet passaram a ser divulgadas nos demais meios. Os jornais, as rádios e as televisões começaram a migrar para este novo espaço.


Um dos maiores riscos na área da saúde, em relação aos espaços públicos, é o da quebra de confidencialidade. Na área da saúde, nas décadas de 1990 e 2000, um dos locais de maior fragilidade para a confidencialidade eram os elevadores dos hospitais. As quebras de confidencialidade ocorreriam entre 8,9% e 15,8% das viagens em elevadores, de acordo com o país onde esta situação foi avaliada.


Com a entrada das redes sociais, a partir da década de 2010, estas oportunidades de quebras de confidencialidade aumentaram. No Facebook, por exemplo, foi constatada uma ocorrência de 26,3%, no Instagram de 19,9% e no Tweeter de 32,1%. As redes sociais potencializam a divulgação de informações que anteriormente eram mantidas de forma confidenciais por profissionais de saúde e alunos em formação. Vale lembrar que além da divulgação direta, existe a possibilidade de propagação destas mesmas informações por outras pessoas, sem controle por parte de quem as postou.


Em uma revisão sistemática sobre Redes Sociais, cobrindo o período de 2006-2020, realizada em 12 bases de dados, avaliando 544 artigos, foi possível identificar três diferentes categorias e dez diferentes usos. As categorias foram Instituições de Saúde, Profissionais de Saúde e Público em Geral .


Nas instituições de saúde foram encontrados quatro diferentes usos: vigilância de informações; disseminação de informações de saúde e combate a desinformação; realização de intervenções em Saúde e geração de mobilização social.


Nos profissionais de saúde os usos mais relevantes foram: facilitar a pesquisa em saúde; facilitar a comunicação entre médicos e pacientes e destes com os serviços de saúde; e a possibilidade de desenvolvimento profissional.


Finalmente, no público em geral, os usos mais destacados foram: buscar e compartilhar informações relacionadas à saúde; compartilhar suporte social em comunidades online; e acompanhar e compartilhar atividades e estados de saúde. 


Nestes usos identificados, seja por profissionais ou por instituições, as redes sociais apresentam riscos, tais como: disseminar informações de baixa qualidade; possibilitar danos à imagem profissional; riscos de quebras de privacidade de pacientes, por meio de dados e imagens compartilhadas; exposição demasiada da vida privada do próprio profissional; violação da fronteira da relação profissional-paciente; além da divulgação de credenciamento e de área de atuação profissional, que não podem ser adequadamente comprovados


Por outro lado, as redes sociais também oferecem oportunidades, tais como: possibilitar contatos entre profissionais (networking); permitir acesso mais facilitado à educação profissional; promover as organizações junto a sociedade; permitir maior comunicação com pacientes; ter potencial de gerar educação de pacientes; promover e divulgar programas de saúde pública; poder gerar contribuições à pesquisa; e, até mesmo, contribuir para um melhor cuidado de pacientes.


As redes sociais são uma realidade que não pode ser ignorada pela área da saúde. O que deve ser feito é uma avaliação e compreensão das múltiplas utilizações possíveis. A partir destas constatações, é possível estabelecer algumas recomendações práticas para os profissionais e alunos da área da saúde a respeito do uso de redes sociais em termos de imagem e identidade profissional, da utilização profissional das redes sociais e da comunicação com os pacientes.


Em relação a imagem e identidade profissional, é fundamental:

  • realizar periodicamente auditorias para verificar a sua presença pessoal nas redes. Os resultados podem gerar importantes dados sobre o que está circulando de informações e imagens referentes a cada profissional ou aluno. Estas auditorias podem gerar a necessidade de estabelecer uma correção do rumo da divulgação desta imagem profissional.

  • maximizar as configurações de privacidade de seus programas e sites que são utilizados. Muitas vezes as configurações em uso estão aquém dos padrões de proteção para informações pessoais sensíveis, como às referentes à área da saúde.

  • utilizar uma “dupla cidadania” nas redes, ou seja, separar o perfil profissional do perfil pessoal. Esta separação evita a confusão de papéis nas relações sociais, especialmente quando envolvem pacientes. Ter este cuidado não evita o acesso as informações de caráter mais pessoal, mas minimiza a exposição em ambientes profissionais. A postagem de informações ou imagens que podem comprometer a imagem do profissional ou do aluno devem ser evitadas ou, se forem divulgadas, terem seu acesso mais restrito.


Ao utilizar as redes sociais de forma profissional:

  • considere que todas as suas postagens passam a ser públicas e permanentes. Ao realizar uma divulgação o autor perde o controle da sua disseminação. Mesmo que a postagem seja apagada ou deletada, não existe a garantia de que não tenha sido copiada ou divulgada por outras pessoas para seus círculos de contatos.

  • considere que o seu comportamento na rede deve ser o mesmo que aquele realizado de forma presencial no ambiente de trabalho. As mesmas regras de cordialidade e convivência devem ser observadas em ambos os ambientes. 

  • evite compartilhar vinhetas ou fotos de casos, mesmo que não identificados. Isto só pode ser realizado, ainda com muita cautela, com a autorização expressa e documentada das pessoas expostas. Dados de pacientes, mesmo não identificados podem permitir a sua identificação, ou pior, podendo ocorrer uma identificação cruzada. As fotos, ainda que com medidas de descaracterização das imagens, permitem manipulação e reidentificação. Na divulgação de resultados de exames ou de imagens, todo cuidado é pouco, pois muitas vezes constam dados de registros que podem reidentificar os pacientes que ficam pouco evidentes.


Na comunicação com pacientes:
  • utilize meios seguros de comunicação com os pacientes e familiares, caso contrário, obtenha consentimento por escrito. Caso esteja realizando uma vídeo-chamada com um paciente, pergunte se tem mais alguém presente no local onde ele está, pois o campo visual não permite verificar a presença de outras pessoas. Isto é muito importante para preservar a privacidade dos pacientes.
  • evite comunicação profissional direta sobre informações de pacientes atendidos com outras pessoas que não sejam os próprios pacientes ou familiares por eles designados. Não é incomum pessoas se apresentarem como intermediários de pacientes solicitando informações pessoais sensíveis, como dados de saúde. Nesta situações informe que apenas o paciente e pessoas por ele identificadas e autorizadas podem ter acesso a estas informações..
  • reconheça que os pacientes e seus familiares podem não ter os mesmos recursos de informática que os profissionais e alunos dispõem. Muitos pacientes podem não ter acesso a redes de boa velocidade ou aparelhos que possibilitem chamadas de vídeo. É importante questionar sobre estas questões de acesso a estes recursos.



É muito importante destacar o que Mostaghimi e Crotty propuseram em 2011:


Não estamos sugerindo que os médicos devam ser proibidos de utilizar as redes sociais.

Os médicos apenas necessitam ter prudência (razão prática) quanto ao conteúdo e o tom

daquilo que será postado online.


Referencias

Joaquim Clotet. Una Introducción al tema de la Ética. Psico 1986;12(1)84-92.


Goldim JR. Bioética: origens e complexidade. Revista HCPA 2006;26(2):83-92.


Habermas J. Mudança Estrutural na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003.


Hasman A, Hansen NR, Lassen A, Rabøl R, Holm S. What do people talk about in Danish hospital elevators? Ugeskr Laeger. 1997;159(46):6819–2.


Ubel PA, Zell MM, Miller DJ, Fischer GS, Peters-Stefani D, Arnold RM. Elevator talk: observational study of inappropriate comments in a public space. Am J Med. 1995;99(2):190–4.


Langenfeld SJ, Cook G, Sudbeck C, Luers T, Schenarts PJ. An Assessment of Unprofessional Behavior Among Surgical Residents on Facebook: A Warning of the Dangers of Social Media. J Surg Educ; 2014;71(6):e28–32.


Moras iLS de, Dargél VA, Ribeiro JT, Fernandes MS, Goldim JR. A privacidade do paciente e o elemento responsabilidade na formação médica. Anais X Semana de Extensão, Pesquisa e Pósgraduação - SEPesq - UniRitter. Porto Alegre: UniRitter; 2014.


Ahmed W, Jagsi R, Gutheil TG, Katz MS. Public Disclosure on Social Media of Identifiable Patient Information by Health Professionals: Content Analysis of Twitter Data. J Med Internet Res. 2020 Sep 1;22(9):e19746.


Chen J, Wang Y. Social media use for health purposes: Systematic review. J Med Internet Res. 2021;23(5):1–16.


George DR, Rovniak LS, Kraschnewski JL. Dangers and opportunities for social media in medicine. Clin Obs Gynecol 2013;56(3):1–7.


Lee Ventola C. Social media and health care professionals: Benefits, risks, and best practices. P&T 2014;39(7):491–500.


Mostaghimi A, Crotty BH. Professionalism in the digital age. Ann Intern Med. 2011;154(8):560–2.


quarta-feira, 15 de maio de 2024

Catástrofe Ambientais, Saúde e Bioética

 José Roberto Goldim


Estamos vivenciando uma catástrofe ambiental sem precedentes. O termo mais adequado é catástrofe mesmo, pois estão falando muito em tragédia, desastre, guerra... Tragédia não é o mais adequado, pois é uma alusão a um estilo teatral que termina, por definição, em um acontecimento ruim, na maioria das vezes fatal. Desastre é habitualmente associado a um acidente,  a algum evento imprevisto, a algo que não esperávamos. Finalmente, utilizar a comparação com a guerra implica em combater um inimigo. O que estamos vivenciando não termina com um evento fatal, não foi um imprevisto, nem é um combate. É sim uma catástrofe, pois é um evento de grande destruição, que afeta muitas pessoas e que exige um enorme esforço de reconstrução. É uma calamidade.

Quando em 2009 vivemos a pandemia da gripe A (H1N1) tive a impressão de que era a maior emergência de saúde que eu viveria. Foi a primeira vez que tivemos que utilizar máscaras indiscriminadamente no atendimento a pacientes, mandamos os alunos para casa, tivemos o auxílio da Aeronáutica para as atividades de triagem realizadas na frente do hospital. Vivemos um período de clara exceção nas atividades da nossa instituição.

Veio 2020, com a possibilidade de um novo evento importante. Inicialmente, os relatos eram de um problema de saúde local, quase uma curiosidade, mas que se alastrou para todo o mundo de uma maneira sem precedentes na história contemporânea. A pandemia da COVID-19 foi um desafio gigantesco para toda a população mundial, especialmente no atendimento às demandas de saúde. Foi um período de superação para os governos e instituições, para o trabalho dos profissionais de saúde, para os cientistas, enfim para todas as áreas da sociedade, em nível mundial. Foi um longo e penoso período de superação, de inovação nos relacionamentos e de desafios para a sobrevivência e a convivência. Novamente, eu pensei que teria sido o meu maior desafio profissional e pessoal.

No final de 2023 tivemos dois eventos climáticos importantes no nosso estado, mas que não serviram para despertar a necessidade de estarmos em prontidão para o que viria. Porém, nos últimos dias de abril e nos primeiros de maio de 2024 veio um evento inesperado, mas previsível: a maior cheia da história do Rio Grande do Sul. Uma inundação dos rios em níveis alarmantes, com uma extensão territorial enorme e com um potencial muito grande de devastação. A catástrofe ambiental não foi uma surpresa. Sinais estavam indicando que poderia haver um evento semelhante ao que ocorreu. Faltou prudência e precaução, faltou planejar medidas de contingência que permitissem, no mínimo, mitigar os riscos e os danos. Mais uma vez, como sociedade, como governos, como instituições, subestimamos a Natureza. 

E não é por falta de reflexão sobre estas questões ambientais, é por falta de sensibilidade. Desde a década de 1970, o Rio Grande do Sul tem um importante debate ambiental. O legado de José Lutzenberger, da AGAPAN, e de tantas outras pessoas e entidades, fez com que muitas questões importantes fossem enfrentadas, balizando as suas ações na busca de manter a integridade ambiental possível em um cenário de utilização crescente e desordenada de recursos. Naquela época foram propostas discussões muito relevantes sobre as relações da Ecologia com a Sociedade.

A Bioética também ressaltou a importância da integração do ser humano com a Natureza. Na década de 1920, com o pensamento de Fritz Jahr e de  Albert Schweitzer, e na década de 1970, com as propostas de Van Rensselaer Potter, os animais, as plantas, o solo, as paisagens foram incluídos como parte importante da nossa reflexão bioética. A própria Conferência do Clima, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992, teve como base o Princípio da Precaução de Hans Jonas. Porém, as estratégias ambientais ficaram muito tímidas e subordinadas a outros interesses.

Não é apenas esperar o final terrível da tragédia, nem aceitar a aleatoriedade dos desastres, que se impõe por si própria, e muito menos assumir uma perspectiva de combater a Natureza, como se ela fosse um inimigo em uma guerra. As catástrofes nos lembram que a evolução ocorre, não pela sobrevivência dos mais fortes, pois não é uma luta, mas sim como um embate, que gera repercussões e que necessita resistência. São os mecanismos de adaptação, que permitem a sobrevivência e a manutenção da vida e do viver em condições adversas. 

Se adaptar é reconhecer as mudanças, é ver as alternativas que permitam o enfrentamento das novas realidades que a Natureza nos impõe. Se adaptar é se integrar a dinâmica que nos é imposta. Temos inúmeros exemplos de integração de fenômenos cíclicos de cheias que propiciaram sobrevivência e desenvolvimento de populações. Um exemplo histórico foram as cheias do rio Nilo. Este ciclo foi alterado, na década de 1970 com a construção da represa de Assuã, com repercussões locais e regionais importantes.

É fundamental que o plano de reconstrução, a ser estabelecido para a catástrofe do Rio Grande do Sul, inclua a todos, que permita uma ampla discussão de todas as consequências previsíveis, em diferentes níveis. A reconstrução é um desafio para toda a sociedade, onde os governos, em suas múltiplas instâncias, tem o papel de organizar as demandas e prover os recursos possíveis. A reconstrução não deve ser apenas orientada pela visão econômica, mas sim pelas múltiplas perspectivas envolvidas abordadas de uma forma integrada. É um exercício de construção de um conjunto de medidas interdisciplinares, que devem ter como foco comum os interesses comuns a todos, com a perspectiva de incluir demandas de setores específicos. Não é uma visão dicotômica entre o todo ou a parte, mas sim, o todo e a parte vistos de forma integrada. Não é a opção entre a "árvore" ou a "floresta", mas sim uma visão ecossistêmica que permita visualizar harmonicamente este conjunto de demandas que podem ser, aparentemente, conflitantes. O desafio ético é de verificar a adequação das propostas a serem implantadas. 

Vale lembrar a proposta feita por Lutzenberger, no seu livro "Gaia, o planeta vivo", publicado em 1990:

"Só uma visão sistêmica, unitária e sinfônica poderá nos aproximar de uma compreensão do que é nosso maravilhoso planeta vivo."

Lutzenberger J. Gaia, o planeta vivo. Porto Alegre: L&PM, 1990. 

Fernando Mainardi Fan (IPH/UFRGS - Palestrante),  José Roberto Goldim (HCPA - Coordenação)
Eventos extremos de cheia no Rio Grande do Sul: uma visão hidrológica.
Grand Round HCPA 15/05/2024 Vídeo 1:07

Site do IPH: https://www.ufrgs.br/iph/

Site da Bioética: https://www.ufrgs.br/bioetica/


sexta-feira, 26 de abril de 2024

Dez desafios da Inteligência Artificial

José Roberto Goldim

,

Estes desafios foram propostos por diferentes pessoas com a finalidade de gerar uma reflexão sobre os diferentes aspectos envolvidos com a Inteligência Artificial.(IA). Estas reflexões visam gerar um debate que é necessário para o adequado entendimento das relações sociais neste novo cenário.


1. Como você avalia o movimento sobre os Neurodireitos, liderado pelos próprios neuro-cientistas que estão trabalhando para desenvolver o uso médico de IA ?


A expressão Neurodireitos é uma maneira de chamar a atenção para uma questão particular, quando na realidade estamos tendo um desafio que é de âmbito geral. Neurodireitos são uma nova denominação para a garantia dos direitos humanos, dos direitos da pessoa, dos direitos fundamentais, como queiram chamar. A garantia dos direitos humanos, abrange o todo de cada pessoa e não apenas uma de suas características. 


O direito à vida, o direito à liberdade, o direito à privacidade são exemplos de questões que emergiram no final do século XVIII e permanecem cada vez mais atuais nos dias de hoje.  Mais do que estabelecer uma nova denominação ou classificação, temos é que garantir as questões centrais que nos dão identidade ao longo do nosso viver.


2. O que pensar sobre a ameaça à democracia a que alude carta assinada por Elon Musk e  Yuval Harari?


A ameaça à democracia, que extrapola os termos da carta citada, é clara e real. A disseminação de informações em grande escala e em velocidade crescente gera esta saturação de informações. 


Quem tem melhor abordado esta questão é o Prof. Byung-Chul Han, catedrático de Ética da Universidade de Berlim. Ele criou o termo Infocracia para denominar este fenômeno. A seleção de informações gerada pelos algoritmos das redes sociais e dos sites de busca acaba por dar uma visão extremamente estreita da realidade. O contraditório fica quase que eliminado, existe apenas a reiteração do que se sabe e se pensa. É a eliminação do desafio, do desconforto, mas apenas a mesma matriz de conhecimentos que se repete monotonamente, reiterando posições já assumidas anteriormente. A discussão fica substituída pela simples repetição de ideias e noções. A ausência de discussão gera a perda de reflexão.


3. Como podemos compreender o mau uso da IA, expressa na maldade a que estamos imersas pela Internet? 


O mau está sempre presente. Não é a internet que criou a maldade, ela deu uma dimensão de divulgação e de acesso nunca antes vista. Este mesmo fenômeno ocorreu quando as bibliotecas foram criadas, quando o livro impresso foi disponibilizado, quando o rádio, o cinema e a televisão se difundiram. São novos meios de expressar, de comunicar. Os meios de comunicação em massa, surgidos nos anos 1960, fizeram com que esta reflexão assumisse uma amplitude global. Mais do que estabelecer medidas de controle e contenção, o importante é desenvolver um pensamento crítico capaz de discernir e lidar com estas situações: é educar. Infelizmente, este não tem sido o caminho. A simples repressão gera mais problemas do que solução a este fenômeno.


4. E a Saúde Mental, estará sendo afetada pelo excesso de uso indiscriminado das mídias e IA pelo sujeito comum?


Sem dúvida nenhuma, a saúde mental das pessoas está sendo afetada por esta avalanche acrítica de informações. Os programas de jornalismo mudaram o seu foco informativo para ser um conjunto de comentários sobre um mesmo monótono tema de impacto. Passado o impacto, um novo tema é abordado e assim sucessivamente. A história não é mais contada, é apenas comentada em um breve período de tempo. Um tema fica sendo exposto, em média, por um período de até duas semanas. O foco não é mais informar, mas sim gerar novos impactos. Esta sucessão de impactos é que tem gerado uma certa apatia, uma perda da solidariedade, da perspectiva empática e compassiva com o outro. Tudo é espetáculo, os outros são substituídos constantemente. Assim, as relações se tornam apenas ligações, sem comprometimento associado.


5. Que tipo de legislação regulamenta o uso da IA? Quem fiscaliza?


O uso de Inteligência Artificial tem gerado uma necessidade de um novo marco regulatório que permita de alguma forma estabelecer parâmetros de adequação a estas atividades. O Brasil vem discutindo um projeto de lei neste sentido, a Europa está elaborando um regulamento para estabelecer um uso minimamente adequado à Inteligência Artificial. As leis atuais já permitem resolver muitas destas questões, mas novos temas se apresentam, como por exemplo, a questão da responsabilidade sobre as ações geradas pelos algoritmos. Quem é o responsável? É o desenvolvedor, é quem vende, é quem utiliza? Esta questão pode ser exemplificada por uma situação já existente: o uso de algoritmos para a direção de automóveis. Se ocorrer um acidente causado por um destes sistemas de navegação, quem será o responsável? Alguns sistemas são divulgados como não permitindo que as pessoas externas sejam atingidas. São sistemas que impedem os atropelamentos de pessoas e animais. Outros sistemas protegem os passageiros do próprio veículo. Em uma situação de risco o algoritmo irá proteger as pessoas externas e o outro as internas. O primeiro seria um algoritmo altruísta e o segundo egoísta. É fácil imaginar os desdobramentos de um acidente onde ocorreram danos pessoais: de quem será a culpa? A escolha por um desses algoritmos, na hora da compra, implica em uma responsabilidade para o motorista?


6. Impacto nas crianças


Inúmeros estudos têm demonstrado os impactos nas crianças com a utilização de equipamentos com o uso de imagens e sons. Os estudos realizados na década de 1960, por Edward Palmer sobre a atenção de crianças ao assistirem televisão, mudaram a própria produção destes programas para crianças. Eles mediam a atenção das crianças e provocavam elementos de distração. As sequências de maior atenção eram editadas e divulgadas. Isto fez com que o programa Vila Sésamo tivesse um impacto enorme na produção de programas infantis. Esta mesma técnica é hoje utilizada para manter a atenção em jogos, programas e telas de redes sociais. Existem setores que avaliam continuamente a atenção dos usuários e os elementos distratores presentes.


7. A IA é uma ameaça à criatividade, ao sonhar?


Como qualquer atividade humana, o uso das novas ferramentas de Inteligência Artificial podem ser consideradas como uma ameaça ou como um desafio. A questão é identificar a intenção associada, os interesses envolvidos e a finalidade à qual estão sendo desenvolvidas estas novas ferramentas. Se utilizadas de forma acrítica, podem ser uma ameaça, mas também podem ser um enorme incentivo à criatividade. 


8. Qual o lugar da inteligência emocional? Existe inteligência não artificial?


Esta questão é central: por que chamar de inteligência artificial? Esta expressão foi cunhada para substituir a palavra “cibernética” em uma atividade realizada no MIT, na década de  1960. A inteligência artificial nada mais é do que uma automatização dos processos de tomada de decisão. Cada vez mais a fronteira entre o natural e o artificial fica difícil de ser estabelecida. Isto já havia sido proposto por Jacques Monod, em 1970, em seu livro O Acaso e a Necessidade.


A incorporação de modelos de linguagem natural fez com que a interface fosse alterada. Do uso de um teclado, que é um meio muito precário de interação, surge a possibilidade de utilizar a voz. A comunicação fica mais fluida e facilitada. O uso do teclado dá a dimensão de uma interação com uma máquina, mas a voz parece estreitar esta ligação.  


Os algoritmos podem ser programados e treinados para “expressarem” emoções, mas que nada mais são do que conjuntos de processos previamente programados para reagir desta maneira. As pessoas podem se sentir confusas perante uma manifestação de uma máquina com uma característica emocional presente. 


O uso da palavra artificial gerou esta expectativa de um distanciamento ou de uma nova aproximação. Uma excelente provocação foi feita por Philip Dick, quando deu a uma novela o seguinte título:  “Os andróides sonham com ovelhas elétricas?” Foi esta novela que foi utilizada para elaborar o roteiro para o filme Blade Runner, de Ridley Scott. Esta oposição, entre o natural e o artificial, é sempre desafiadora e nem sempre tão simples de identificar.


9. O uso da IA poderia beneficiar a relação médico-paciente? De que forma?


A inteligência artificial pode beneficiar a relação médico-paciente ao gerar melhores informações, melhores meios diagnósticos, novos métodos de interação. O risco é a despersonalização, é a padronização, é a perda da singularidade. O problema não é a inteligência artificial em si, mas sim o uso que se faz destas novas ferramentas. O uso das ferramentas de IA devem ser auxiliares, devem melhorar a relação médico-paciente e não substituí-la. O profissional não deve se sentir ameaçado, mas sim incentivado a ser que esclarece, que explica aquilo que outras ferramentas apresentam apenas como dados. Gerar informações e sabedoria é o papel de todos os profissionais e a expectativa dos pacientes.


10. Como impacta a subjetivação e como fica o espelhamento do qual necessitamos para nos tornar alguém único e diferenciado do Outro?


Este é um ponto central e pouco abordado na questão da IA. Não é a introdução de ferramentas de IA que geram problemas, mas sim a falta de discussão da Alteridade, da relação efetiva com o outro. Isto sim é que pode gerar inúmeros problemas, que podem ser agravados com o uso de meios tecnológicos que podem distanciar ainda mais as pessoas. 


Entender que o outro é uma pessoa diferente de mim, com características próprias e singularidades. Esta interação efetiva gera corresponsabilidade, que a necessidade de cuidar do outro, que implica em cuidar de si mesmo, independe do uso de uma ferramenta, mas depende de um entendimento do que é viver, do que é se relacionar. Este é desafio proposto a todos nós. Muitas vezes desviamos o foco para outras questões, mas na essência é isto: reconhecer a si próprio e reconhecer o outro. 


Nota

Estes desafios e as notas associadas foram discutidos no evento promovido pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) em 17/08/2023.


domingo, 21 de abril de 2024

Immanuel Kant - 300 anos (22/04/1724-22/04/2024)

José Roberto Goldim

Immanuel Kant é um dos pensadores mais influentes da história humana. Mais de 480 biografias foram escritas sobre a sua pessoa. Ao refletir sobre a Dignidade Humana, Kant permitiu um novo olhar para toda a humanidade. Com isso, temas como a Autonomia, a Universalidade das Ações, a Liberdade e a Paz foram interligados e discutidos.

Kant foi um homem pequeno, com 1,57m de altura, de pele muito clara e olhos azuis, com muitos amigos, que nunca se afastou de sua cidade natal, Königsberg, principalmente em função de sua frágil saúde.   Königsberg era parte do Reino da Prússia. A partir de 1946, com o final da II Guerra Mundial, esta cidade passou a ser chamada de Kaliningrado, que foi anexada ao território da Rússia.

Esta cidade já era conhecida na história da Ciência, mesmo antes da obra de Kant, em função de um problema discutido pelos seus moradores no início do século XVIII. A questão era relacionada à possibilidade de fazer um trajeto pelas sete pontes, então existentes na cidade, passando apenas uma única vez por cada uma das pontes. Das sete pontes originais, restam apenas duas. Em 1736, quando Kant tinha apenas 12 anos de idade, o matemático suíço, Leonard Euler demonstrou que era impossível fazer este trajeto. Para resolver este problema, Euler desenvolveu novas formas de pensar as questões da Matemática, que serviu de base para a Topologia e para a Teoria dos Grafos

Kant nasceu em uma família, cujo pai - Johann Georg - era um artesão que fabricava arreios e a mãe - Anna Regina - se dedicava a cuidar da casa e dos nove filhos. Immanuel era o quarto filho. Quatro filhos morreram na infância. As mortes de pessoas afetivamente próximas, tais como o pai, a mãe, seus irmãos e amigos acompanharam e marcaram a vida de Kant. Em uma carta endereçada à mãe de um amigo, Johann Daneil Funk, que morreu em 1764, ele finalizou escrevendo que: "até que a morte, que sempre pareceu distante, de repente acaba com todo o jogo".

Em boa parte de sua vida, Kant foi governado por Frederico II, considerado por muitos como um déspota esclarecido. As suas ideias e formas de governar influenciaram o seu pensamento.

Uma característica importante foi a sólida formação moral recebida de seus pais que eram Pietistas. Esta denominação religiosa, derivada do Luteranismo, dá uma ênfase importante à dimensão religiosa individual, baseada na simplicidade e obediência às regras morais. Desta formação religiosa familiar, Kant incorporou o valor da correção, que pautou toda a sua vida em termos de honradez pessoal e de respeito às pessoas. Não há registro de uma situação desabonadora ao longo de sua vida. Kant, pessoalmente, não professava esta perspectiva pietista, que era predominante na sua escola e, posteriormente, na Universidade, onde foi professor. Fez todos os seus estudos com a ajuda financeira de um tio. 

Kant trabalhava muito como professor de filhos de famílias abastadas da cidade e, posteriormente na Universidade de Königsberg. Mesmo com este emprego de professor, a sua situação financeira nunca foi cômoda. Foi, talvez, por este motivo econômico que ele nunca se casou. Ele mesmo brincava com os seus amigos que quando o casamento poderia lhe dar algum proveito ele não tinha dinheiro. Porém, quando tinha dinheiro, já era demasiado velho para ter algum proveito.

Joseph Green, um comerciante inglês que foi morar em Königsberg, em função de seus negócios, foi um grande amigo e companheiro de Kant. Green era uma pessoa muito erudita,  que apresentou a Kant algumas ideias que circulavam no Reino Unido e na Europa continental, especialmente as obras de David Hume e de Jean Jacques Rousseau. Green era uma pessoa metódica e com uma rigidez para a pontualidade, que também nunca se casou. Alguns hábitos atribuídos a Kant eram, na realidade, de Green. Eles se reuniam diariamente para trocar ideias, tendo discutido a Crítica a Razão Pura, palavra por palavra, antes da sua publicação em 1781. Kant ficou muito abalado com a sua morte em 1786.

Kant já havia sido influenciado pelas obras de Lucrécio e de Isaac Newton, porém foi a  leitura da obra de David Hume que provocou uma profunda reflexão. Kant estava com cerca de 46 anos quando isto ocorreu. Kant achava as conclusões de Hume inaceitáveis, mas reconhecia que os seus argumentos eram irrefutáveis. Ficou uma década sem divulgar seus textos, até que em 1871 publicou a Crítica da Razão Pura.

Na passagem de 1783 para 1784 foi publicado o ensaio "Uma resposta à questão: o que é o Iluminismo?", A palavra Aufklärung pode ser melhor traduzida como sendo Esclarecimento. Este pequeno texto definiu questões que deram base para uma série de reflexões posteriores. Kant afirmava que era o Esclarecimento que daria a "maioridade" à pessoa, ou seja, a possibilidade de poder ser autônomo.

A partir da Crítica da Razão Pura, a sua obra se desenvolveu com uma força impressionante. Foi neste conjunto de publicações que se inseriram a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, publicada em 1785, e a Crítica da Razão Prática, em 1788. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes foi proposto Imperativo Categórico, que teve três diferentes formulações: 

"Age como se a máxima de tua ação devesse ser transformada em lei universal da Natureza".

"Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na outra pessoa, sempre como um fim e nunca como um meio".

"Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais".

Kant no livro Crítica da Faculdade do Juízo, de 1790, também refletiu sobre a música. Uma das questões mais relevantes foi a de pensar, de forma integrada, na unidade e na multiplicidade contidas em uma composição. Ele denominava de "linguagem dos afetos" este arranjo entre harmonia e melodia. Kant entendia que a Estética era sensibilidade. Esta discussão sobre a sensibilidade e o entendimento acompanhou toda a sua obra.

Nas suas reflexões tardias, de 1795, Kant argumentava em torno da Paz Perpétua, que seria a culminância do processo civilizatório. Nesta obra Kant cita Frederico II e enaltece a Revolução Francesa  como uma possibilidade na constituição de uma federação de nações republicanas.

Em 1796 Kant de aposentou  da carreira de professor, com 72 anos. No ano seguinte publica a Metafísica dos Costumes. A partir de 1800, ele apresentou um considerável declínio cognitivo, vindo a falecer em 1804.

Ele próprio reconheceu, na Crítica à Razão Pura, que a sua obra teria repercussão equivalente à "revolução copernicana" ocorrida na Astronomia. Posteriormente foi criada a expressão "virada kantiana" para reconhecer a importância da sua obra para toda a humanidade. O pensamento crítico reformulou a forma de entender o mundo como tal.

Talvez a frase que melhor expresse o pensamento de Kant, com sua expressão de unidade e multiplicidade seja aquela contida na Crítica da Razão Prática:

“Duas coisas enchem a alma de uma admiração e de uma veneração sempre novas e sempre crescentes, à medida que a reflexão se aplica com mais frequência e constância: o céu estrelado acima de mim e a lei moral de mim”.

Sugestão de Leitura Complementar

Kuehn, Manfred. Kant - A Biography. Edimburgh, Cambridge, 2001.