quarta-feira, 15 de maio de 2024

Catástrofe Ambientais, Saúde e Bioética

 José Roberto Goldim


Estamos vivenciando uma catástrofe ambiental sem precedentes. O termo mais adequado é catástrofe mesmo, pois estão falando muito em tragédia, desastre, guerra... Tragédia não é o mais adequado, pois é uma alusão a um estilo teatral que termina, por definição, em um acontecimento ruim, na maioria das vezes fatal. Desastre é habitualmente associado a um acidente,  a algum evento imprevisto, a algo que não esperávamos. Finalmente, utilizar a comparação com a guerra implica em combater um inimigo. O que estamos vivenciando não termina com um evento fatal, não foi um imprevisto, nem é um combate. É sim uma catástrofe, pois é um evento de grande destruição, que afeta muitas pessoas e que exige um enorme esforço de reconstrução. É uma calamidade.

Quando em 2009 vivemos a pandemia da gripe A (H1N1) tive a impressão de que era a maior emergência de saúde que eu viveria. Foi a primeira vez que tivemos que utilizar máscaras indiscriminadamente no atendimento a pacientes, mandamos os alunos para casa, tivemos o auxílio da Aeronáutica para as atividades de triagem realizadas na frente do hospital. Vivemos um período de clara exceção nas atividades da nossa instituição.

Veio 2020, com a possibilidade de um novo evento importante. Inicialmente, os relatos eram de um problema de saúde local, quase uma curiosidade, mas que se alastrou para todo o mundo de uma maneira sem precedentes na história contemporânea. A pandemia da COVID-19 foi um desafio gigantesco para toda a população mundial, especialmente no atendimento às demandas de saúde. Foi um período de superação para os governos e instituições, para o trabalho dos profissionais de saúde, para os cientistas, enfim para todas as áreas da sociedade, em nível mundial. Foi um longo e penoso período de superação, de inovação nos relacionamentos e de desafios para a sobrevivência e a convivência. Novamente, eu pensei que teria sido o meu maior desafio profissional e pessoal.

No final de 2023 tivemos dois eventos climáticos importantes no nosso estado, mas que não serviram para despertar a necessidade de estarmos em prontidão para o que viria. Porém, nos últimos dias de abril e nos primeiros de maio de 2024 veio um evento inesperado, mas previsível: a maior cheia da história do Rio Grande do Sul. Uma inundação dos rios em níveis alarmantes, com uma extensão territorial enorme e com um potencial muito grande de devastação. A catástrofe ambiental não foi uma surpresa. Sinais estavam indicando que poderia haver um evento semelhante ao que ocorreu. Faltou prudência e precaução, faltou planejar medidas de contingência que permitissem, no mínimo, mitigar os riscos e os danos. Mais uma vez, como sociedade, como governos, como instituições, subestimamos a Natureza. 

E não é por falta de reflexão sobre estas questões ambientais, é por falta de sensibilidade. Desde a década de 1970, o Rio Grande do Sul tem um importante debate ambiental. O legado de José Lutzenberger, da AGAPAN, e de tantas outras pessoas e entidades, fez com que muitas questões importantes fossem enfrentadas, balizando as suas ações na busca de manter a integridade ambiental possível em um cenário de utilização crescente e desordenada de recursos. Naquela época foram propostas discussões muito relevantes sobre as relações da Ecologia com a Sociedade.

A Bioética também ressaltou a importância da integração do ser humano com a Natureza. Na década de 1920, com o pensamento de Fritz Jahr e de  Albert Schweitzer, e na década de 1970, com as propostas de Van Rensselaer Potter, os animais, as plantas, o solo, as paisagens foram incluídos como parte importante da nossa reflexão bioética. A própria Conferência do Clima, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992, teve como base o Princípio da Precaução de Hans Jonas. Porém, as estratégias ambientais ficaram muito tímidas e subordinadas a outros interesses.

Não é apenas esperar o final terrível da tragédia, nem aceitar a aleatoriedade dos desastres, que se impõe por si própria, e muito menos assumir uma perspectiva de combater a Natureza, como se ela fosse um inimigo em uma guerra. As catástrofes nos lembram que a evolução ocorre, não pela sobrevivência dos mais fortes, pois não é uma luta, mas sim como um embate, que gera repercussões e que necessita resistência. São os mecanismos de adaptação, que permitem a sobrevivência e a manutenção da vida e do viver em condições adversas. 

Se adaptar é reconhecer as mudanças, é ver as alternativas que permitam o enfrentamento das novas realidades que a Natureza nos impõe. Se adaptar é se integrar a dinâmica que nos é imposta. Temos inúmeros exemplos de integração de fenômenos cíclicos de cheias que propiciaram sobrevivência e desenvolvimento de populações. Um exemplo histórico foram as cheias do rio Nilo. Este ciclo foi alterado, na década de 1970 com a construção da represa de Assuã, com repercussões locais e regionais importantes.

É fundamental que o plano de reconstrução, a ser estabelecido para a catástrofe do Rio Grande do Sul, inclua a todos, que permita uma ampla discussão de todas as consequências previsíveis, em diferentes níveis. A reconstrução é um desafio para toda a sociedade, onde os governos, em suas múltiplas instâncias, tem o papel de organizar as demandas e prover os recursos possíveis. A reconstrução não deve ser apenas orientada pela visão econômica, mas sim pelas múltiplas perspectivas envolvidas abordadas de uma forma integrada. É um exercício de construção de um conjunto de medidas interdisciplinares, que devem ter como foco comum os interesses comuns a todos, com a perspectiva de incluir demandas de setores específicos. Não é uma visão dicotômica entre o todo ou a parte, mas sim, o todo e a parte vistos de forma integrada. Não é a opção entre a "árvore" ou a "floresta", mas sim uma visão ecossistêmica que permita visualizar harmonicamente este conjunto de demandas que podem ser, aparentemente, conflitantes. O desafio ético é de verificar a adequação das propostas a serem implantadas. 

Vale lembrar a proposta feita por Lutzenberger, no seu livro "Gaia, o planeta vivo", publicado em 1990:

"Só uma visão sistêmica, unitária e sinfônica poderá nos aproximar de uma compreensão do que é nosso maravilhoso planeta vivo."

Lutzenberger J. Gaia, o planeta vivo. Porto Alegre: L&PM, 1990. 

Fernando Mainardi Fan (IPH/UFRGS - Palestrante),  José Roberto Goldim (HCPA - Coordenação)
Eventos extremos de cheia no Rio Grande do Sul: uma visão hidrológica.
Grand Round HCPA 15/05/2024 Vídeo 1:07

Site do IPH: https://www.ufrgs.br/iph/

Site da Bioética: https://www.ufrgs.br/bioetica/


domingo, 21 de abril de 2024

Immanuel Kant - 300 anos (22/04/1724-22/04/2024)

José Roberto Goldim

Immanuel Kant é um dos pensadores mais influentes da história humana. Mais de 480 biografias foram escritas sobre a sua pessoa. Ao refletir sobre a Dignidade Humana, Kant permitiu um novo olhar para toda a humanidade. Com isso, temas como a Autonomia, a Universalidade das Ações, a Liberdade e a Paz foram interligados e discutidos.

Kant foi um homem pequeno, com 1,57m de altura, de pele muito clara e olhos azuis, com muitos amigos, que nunca se afastou de sua cidade natal, Königsberg, principalmente em função de sua frágil saúde.   Königsberg era parte do Reino da Prússia. A partir de 1946, com o final da II Guerra Mundial, esta cidade passou a ser chamada de Kaliningrado, que foi anexada ao território da Rússia.

Esta cidade já era conhecida na história da Ciência, mesmo antes da obra de Kant, em função de um problema discutido pelos seus moradores no início do século XVIII. A questão era relacionada à possibilidade de fazer um trajeto pelas sete pontes, então existentes na cidade, passando apenas uma única vez por cada uma das pontes. Das sete pontes originais, restam apenas duas. Em 1736, quando Kant tinha apenas 12 anos de idade, o matemático suíço, Leonard Euler demonstrou que era impossível fazer este trajeto. Para resolver este problema, Euler desenvolveu novas formas de pensar as questões da Matemática, que serviu de base para a Topologia e para a Teoria dos Grafos

Kant nasceu em uma família, cujo pai - Johann Georg - era um artesão que fabricava arreios e a mãe - Anna Regina - se dedicava a cuidar da casa e dos nove filhos. Immanuel era o quarto filho. Quatro filhos morreram na infância. As mortes de pessoas afetivamente próximas, tais como o pai, a mãe, seus irmãos e amigos acompanharam e marcaram a vida de Kant. Em uma carta endereçada à mãe de um amigo, Johann Daneil Funk, que morreu em 1764, ele finalizou escrevendo que: "até que a morte, que sempre pareceu distante, de repente acaba com todo o jogo".

Em boa parte de sua vida, Kant foi governado por Frederico II, considerado por muitos como um déspota esclarecido. As suas ideias e formas de governar influenciaram o seu pensamento.

Uma característica importante foi a sólida formação moral recebida de seus pais que eram Pietistas. Esta denominação religiosa, derivada do Luteranismo, dá uma ênfase importante à dimensão religiosa individual, baseada na simplicidade e obediência às regras morais. Desta formação religiosa familiar, Kant incorporou o valor da correção, que pautou toda a sua vida em termos de honradez pessoal e de respeito às pessoas. Não há registro de uma situação desabonadora ao longo de sua vida. Kant, pessoalmente, não professava esta perspectiva pietista, que era predominante na sua escola e, posteriormente, na Universidade, onde foi professor. Fez todos os seus estudos com a ajuda financeira de um tio. 

Kant trabalhava muito como professor de filhos de famílias abastadas da cidade e, posteriormente na Universidade de Königsberg. Mesmo com este emprego de professor, a sua situação financeira nunca foi cômoda. Foi, talvez, por este motivo econômico que ele nunca se casou. Ele mesmo brincava com os seus amigos que quando o casamento poderia lhe dar algum proveito ele não tinha dinheiro. Porém, quando tinha dinheiro, já era demasiado velho para ter algum proveito.

Joseph Green, um comerciante inglês que foi morar em Königsberg, em função de seus negócios, foi um grande amigo e companheiro de Kant. Green era uma pessoa muito erudita,  que apresentou a Kant algumas ideias que circulavam no Reino Unido e na Europa continental, especialmente as obras de David Hume e de Jean Jacques Rousseau. Green era uma pessoa metódica e com uma rigidez para a pontualidade, que também nunca se casou. Alguns hábitos atribuídos a Kant eram, na realidade, de Green. Eles se reuniam diariamente para trocar ideias, tendo discutido a Crítica a Razão Pura, palavra por palavra, antes da sua publicação em 1781. Kant ficou muito abalado com a sua morte em 1786.

Kant já havia sido influenciado pelas obras de Lucrécio e de Isaac Newton, porém foi a  leitura da obra de David Hume que provocou uma profunda reflexão. Kant estava com cerca de 46 anos quando isto ocorreu. Kant achava as conclusões de Hume inaceitáveis, mas reconhecia que os seus argumentos eram irrefutáveis. Ficou uma década sem divulgar seus textos, até que em 1871 publicou a Crítica da Razão Pura.

Na passagem de 1783 para 1784 foi publicado o ensaio "Uma resposta à questão: o que é o Iluminismo?", A palavra Aufklärung pode ser melhor traduzida como sendo Esclarecimento. Este pequeno texto definiu questões que deram base para uma série de reflexões posteriores. Kant afirmava que era o Esclarecimento que daria a "maioridade" à pessoa, ou seja, a possibilidade de poder ser autônomo.

A partir da Crítica da Razão Pura, a sua obra se desenvolveu com uma força impressionante. Foi neste conjunto de publicações que se inseriram a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, publicada em 1785, e a Crítica da Razão Prática, em 1788. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes foi proposto Imperativo Categórico, que teve três diferentes formulações: 

"Age como se a máxima de tua ação devesse ser transformada em lei universal da Natureza".

"Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na outra pessoa, sempre como um fim e nunca como um meio".

"Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais".

Kant no livro Crítica da Faculdade do Juízo, de 1790, também refletiu sobre a música. Uma das questões mais relevantes foi a de pensar, de forma integrada, na unidade e na multiplicidade contidas em uma composição. Ele denominava de "linguagem dos afetos" este arranjo entre harmonia e melodia. Kant entendia que a Estética era sensibilidade. Esta discussão sobre a sensibilidade e o entendimento acompanhou toda a sua obra.

Nas suas reflexões tardias, de 1795, Kant argumentava em torno da Paz Perpétua, que seria a culminância do processo civilizatório. Nesta obra Kant cita Frederico II e enaltece a Revolução Francesa  como uma possibilidade na constituição de uma federação de nações republicanas.

Em 1796 Kant de aposentou  da carreira de professor, com 72 anos. No ano seguinte publica a Metafísica dos Costumes. A partir de 1800, ele apresentou um considerável declínio cognitivo, vindo a falecer em 1804.

Ele próprio reconheceu, na Crítica à Razão Pura, que a sua obra teria repercussão equivalente à "revolução copernicana" ocorrida na Astronomia. Posteriormente foi criada a expressão "virada kantiana" para reconhecer a importância da sua obra para toda a humanidade. O pensamento crítico reformulou a forma de entender o mundo como tal.

Talvez a frase que melhor expresse o pensamento de Kant, com sua expressão de unidade e multiplicidade seja aquela contida na Crítica da Razão Prática:

“Duas coisas enchem a alma de uma admiração e de uma veneração sempre novas e sempre crescentes, à medida que a reflexão se aplica com mais frequência e constância: o céu estrelado acima de mim e a lei moral de mim”.

Sugestão de Leitura Complementar

Kuehn, Manfred. Kant - A Biography. Edimburgh, Cambridge, 2001.