quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

COVID-19, Isolamento, Quarentena e Confinamento

José Roberto Goldim

O crescimento do número de casos e da área de ocorrência da COVID-19, doença causada pelo novo Coronavirus, tem gerado algumas questões bioética importantes em termos de decisões epidemiológicas. 

Uma das estratégias para conter o avanço de uma doença infectocontagiosa é restringir justamente o contato interpessoal. Estas restrições podem ser individuais ou coletivas, em diferentes níveis de complexidade. Estas restrições podem variar desde o isolamento de uma pessoa, a quarentena a um grupo de pessoas até o confinamento populacional. 

No nível individual, um paciente com uma doença infectocontagiosa pode ser colocado em isolamento. Esta medida tem por objetivo separar esta pessoa já doente das demais ainda não infectadas. É uma medida que mantém esta pessoa em uma restrição de contatos. Os profissionais de saúde, nestas ocasiões, seguem protocolos de segurança, que permitem minimizar a sua possibilidade de contaminação. São utilizados equipamentos de proteção individual, áreas e salas especiais, vestimentas adequadas à este tipo de atendimento. O isolamento é uma medida compulsória que visa reduzir os riscos individuais e coletivos enquanto houver possibilidade de contaminação usual. Ao isolar o paciente, esta medida protege a sociedade de um potencial foco de contaminação; protege os demais pacientes internados, que já estão fragilizados, de um risco adicional; protege os profissionais de saúde de serem contaminados ao exercerem suas atividades de cuidado e protege o próprio paciente, ao permitir a continuidade ao seu tratamento. 

Vale lembrar que com aumento do número de pacientes contaminados, é possível ampliar de isolamentos individuais para constituir unidades de internação dedicadas a este tipo de atendimento.  A construção de hospitais específicos para isolamento de pacientes, como o que ocorreu na China, foi uma estratégia de ampliar o cuidado devido ao número crescente de casos de pessoas contaminadas. A estratégia tradicional de isolamento individual não seria capaz de permitir o atendimento de todos os pacientes que necessitam de cuidados. Ao estabelecer um hospital específico e dedicado a este tipo de situação, também se impede que outros pacientes entrem em contato com a doença.   

O isolamento é uma medida de restrição de liberdade individual visando a proteção da sociedade. Algumas pessoas caracterizam o isolamento como sendo discriminatório, mas a rigor é uma estratégia de diferenciação de cuidado. A vulnerabilidade do paciente e da própria sociedade justifica esta medida na perspectiva da preservação da integridade pessoal e coletiva.  A perspectiva discriminatória tem origem nas medidas que eram utilizadas em épocas passadas, de simplesmente afastar as pessoas doentes do convívio da sociedade deixando-as entregues à sua própria sorte.

É importante diferenciar este tipo de isolamento de outro, denominado de Isolamento Protetor ou Reverso. Neste caso, o paciente é isolado como forma de evitar que ele se exponha a situações de contaminação. É uma estratégia de cuidado à saúde utilizada nos pacientes que estão com imunodeficiência ou imunossupressão, como no caso de pacientes se recuperando de Terapia com Células-Tronco Hematopoiética, comumente conhecida como Transplante de Medula Óssea. Neste caso é uma medida que visa o bem do próprio paciente ao protegê-lo de situações de risco à sua saúde.

Outra estratégia é a Quarentena. É uma maneira de lidar com situações de risco de contaminação que vem sendo utilizada desde a Idade Média. A quarentena é utilizada para grupos de pessoas em situações de risco. A restrição ao acesso às pessoas com presumível exposição à doença contagiosa por um período estabelecido de tempo é a estratégia básica. Nem sempre são 40 dias, como o nome indica, mas sim o adequado a cada situação de possível contaminação. Podem ser utilizados períodos de tempo menores ou maiores. No caso da COVID-19 tem sido utilizado um período de 14 dias. Vale salientar que a quarentena lida com pessoas que ainda não estão doentes, ou seja não estão contaminadas ou ainda não manifestaram os sintomas da doença. Novamente, é uma medida que visa proteger a sociedade, mas neste caso sem o benefício individual associado. Existe a discussão ética sobre a adequação desta medida, em nível individual, ao restringir a liberdade de uma pessoa na presunção de um risco e não de uma contaminação comprovada.  Algumas vezes é utilizado o argumento de que as pessoas permaneçam em quarentena de forma voluntária, como uma recomendação e não como uma obrigação. Por outro lado, podem ser estabelecidas medidas coercitivas que efetivamente impeçam os indivíduos em quarentena de ter qualquer outro contato externo ao grupo que está submetido a esta medida. Dois exemplos atuais. O navio de cruzeiro Diamond Princess, no Japão, foi mantido, como um todo, em uma quarentena compulsória, enquanto que os seus passageiros, individualmente, receberam a recomendação de manterem um isolamento protetor, restringindo a sua circulação às próprias cabines. Ao serem liberados da quarentena no navio alguns passageiros foram transferidos para outra quarentena, em seus países de destino,  em função da possibilidade de contaminação decorrente da própria restrição imposta anteriormente. Os passageiros com sintomas passaram a ser mantidos em isolamento.  No caso mais recente de um hotel nas ilhas Canárias, H10 Costa Adeje Palace, os hóspedes receberam a recomendação de não saírem de suas habitações. Alguns puderam circular em áreas de uso comum, como salões de refeições. Apesar da quarentena ser uma recomendação, desde o discurso das autoridades, as saídas do hotel estavam com carros da polícia, o que foi interpretado pelos hóspedes como uma forma de coerção. A quarentena é uma medida de restrição de liberdade visando dar o tempo necessário para que os sintomas se manifestem nas pessoas que estavam sob risco de contaminação. Passado o prazo estabelecido, as pessoas que não manifestaram sintomas ou que tiveram exames negativos são liberadas. Novamente é uma primazia dos interesses da sociedade sobre as pessoas individualmente. 

A forma mais radical e discutível de contenção de uma doença contagiosa é o confinamento social amplo. Esta forma de restringir comunidades com presunção de risco é de difícil implantação. Ela visa restringir a circulação de pessoas e a redução das interações sociais entre os atingidos pela medida. O confinamento social amplo tem como finalidade a contenção da doença nos limites de uma fronteira epidemiológica. O estabelecimento destas medidas em uma extensa área territorial da China, envolvendo milhões de pessoas, e de pelo menos 11 pequenas cidades da Itália tem gerado questionamentos sobre a liberdade das pessoas em termos de deslocamentos.

Estas medidas epidemiológicas, isolamento, quarentena e confinamento social, variam em termos das pessoas atingidas, desde doentes diagnosticados, pessoas com possível exposição ao agente contagioso até pessoas com risco presumível comunitário. 

Os aspectos éticos são inúmeros e devem ser considerados, sob pena de ser um mero exercício de biopoder e biopolítica, sem a devida justificativa bioética associada.

Para ler mais:

Wilder-Smith A, Freedman DO. Isolation, quarantine, social distancing and community containment: pivotal role for old-style public health measures in the novel coronavirus (2019-nCoV) outbreak. J Travel Med. 2020 Feb 13; 

Goldim R. Bioética e pandemia de influenza. Rev HCPA. 2009;29(2):161–6.