domingo, 4 de outubro de 2020

COVID-19, Morte e Morrer

 José Roberto Goldim


Talvez o maior medo associado a pandemia da COVID-19 é a morte. O número de mortos assume valores impressionantes. Inicialmente estes valores assustaram a todos. o passar do tempo e a continuidade do crescimento, houve uma banalização do seu impacto. Isto pode ser explicado por duas diferentes fontes. A famosa citação: “A morte de uma pessoa: é uma catástrofe. Cem mil mortes: isso é uma estatística!”, atribuída equivocadamente a Stalin, foi escrita, na realidade, por Kurt Tucholsky, em 1925. Da mesma forma, a Lei de Shannon, proposta em 1948, afirma que na medida em que a frequência de uma informação aumenta, o seu impacto inicial diminui. Informações sobre as mortes, que antes geravam discussões e ansiedade, passaram a ser apenas dados que se acumulam. 

Muitos temas associados à morte e ao morrer seguem exigindo a nossa reflexão. A reflexão passa pela necessidade de alocar recursos escasso, da condução adequada dos cuidados prestados, das peculiaridades de procedimentos, em função de legislações nacionais, e da percepção da sociedade.

Em várias publicações leigas e científicas existe ambiguidade e confusão na utilização de conceitos essenciais. 

A utilização de critérios defensáveis, desde o ponto de vista técnico, ético e social, para a alocação de recursos escassos, foi uma necessidade para o enfrentamento de situações criticas em algumas regiões de diferentes países. Alguns autores confundiram a situação dos pacientes que não tiverem acesso aos recursos necessários com a eutanásia passiva. Estes pacientes devem receber todos os cuidados paliativos necessários para minorar o seu sofrimento e desconforto. A eutanásia passiva ocorre quando alguém, habitualmente um profissional de saúde, abrevia intencionalmente a vida do paciente.  Este é o objetivo da realização do procedimento. Na triagem, o objetivo é disponibilizar os recursos escassos de acordo com os critérios previamente estabelecidos e conhecidos pela sociedade. O paciente e seus familiares não podem ser surpreendidos com a utilização de critérios nunca antes discutidos e compartilhados. Como os recursos são escassos e excepcionais, a morte é decorrente da evolução do quadro de saúde preexistente. e não em função da restrição em si. O que não pode ocorrer é o abandono de pacientes que não preenchem os critérios de triagem e muito menos a sua utilização sem que haja carência de recursos. 

Ao longo dos atendimentos dos pacientes COVID-19 nas Unidades de Tratamento Intensivo também tem ocorrido situações de obstinação terapêutica, também denominadas de Distanásia. Muitas vezes os profissionais de saúde ou os familiares questionam no sentido de manter cuidados já considerados fúteis ou de implantar outras medidas progressivamente invasivas sem que haja possibilidade de benefício para o paciente. É simplesmente utilizar por ter o recurso disponível. Conforme propôs Günther Ropohl, em 1981, não devemos fazer tudo o que a técnica nos permite fazer. A adequação na utilização dos recursos tecnológicos na área da saúde é fundamental. Não tem sentido utilizar medidas fúteis. É importante saber reconhecer quando os recursos, que podem beneficiar os pacientes, se esgotam. 

É extremamente importante manter os familiares e os próprios pacientes, quando possível, informados desta avaliação. Quando todas as medidas terapêuticas de cura se esgotam, permanecem os cuidados paliativos indispensáveis. Um questionamento sempre presente é se foram tomadas todas as medidas que deveriam ser tomadas. Reconhecer o esgotamento de recursos terapêuticos de cura é poder afirmar que tudo que podia ser feito foi efetivamente utilizado. Ir além é postergar, é prolongar indevidamente. É fundamental que as equipes tenham objetivos e metas terapêuticas claras, que sejam compartilhadas entre todos os profissionais, com os pacientes e seus familiares. É fundamental garantir uma morte adequada aos pacientes, isto é, uma adequação  em relação a causa, ao modo e ao tempo da sua ocorrência. O morrer adequado é muitas vezes denominado de Ortotanásia.

A questão dos cuidados paliativos também teve inúmeras utilizações discutíveis. Alguns autores consideraram os cuidados  paliativos como sendo eutanásia passiva. Nos cuidados paliativos a intenção é reduzir o sofrimento do paciente, é permitir que ele tenha uma alívio de seus sintomas e situações. Podem ser utilizadas medidas de anagesia para controle da dor e de sedação paliativa para o alívio da falta de ar. Os cuidados paliativos evitam um prolongamento indevido dos cuidados prestados. Na eutanásia passiva, por outro lado, a intenção é antecipar a morte do paciente. A dificuldade é ampliar a perspectiva habitual de cuidados paliativos, voltada a pacientes individuais, para ser utilizada no sofrimento coletivo gerado pela pandemia.

Com relação a eutanásia propriamente dita, ocorreram situações aparentemente paradoxais. Na Holanda, primeiro país a ter uma legislação específica sobre este tema, houve uma suspensão da realização deste procedimentos em função da mobilização dos profissionais para atenderem as demandas geradas pela pandemia. O Euthanasia Expertise Centre, da Holanda, responsável por mais 898 procedimentos deste tipo em 2019, suspendeu todas as suas atividades durante a pandemia. Os procedimentos de eutanásia foram considerado como eletivos. Por outro lado, no Canadá, onde 1,6% das mortes são medicamente assistidas, vários procedimentos foram realizados no sentido de atender a solicitações de antecipação de eutanásia, para evitar que estas pessoas não corressem o risco de ter COVID-19. Ou seja, são duas posições contrárias frente a mesma situação, que podem ser explicadas em função do foco da decisão. 

Os estudos de avaliação de características de culturas nacionais, realizados com base na proposta de Gert Hofstede, demonstram que estes dois países têm muitas semelhanças, mas algumas diferenças que podem explicar este aparente paradoxo frente a eutanásia durante a pandemia. Das seis características utilizadas no modelo de Hosftede, os dois países tem semelhanças em quatro e se diferenciam em outras duas. Tanto o Canadá quanto a Holanda têm uma noção de interdependência entre seus cidadãos, e ambos têm culturas individualistas. Estes dois países também são sociedades competitivas, que aceitam um certo grau de risco associado às tomadas de decisão. As duas características que diferenciam estes países são a orientação de longo prazo e a forma como estas sociedades lidam com impulsos e desejos. Os canadenses tem uma orientação mais voltada ao curto prazo, enquanto que os holandeses tem uma perspectiva mais longo prazo. Porém quanto aos impulsos e desejos, as perspectivas de invertem. Os canadenses são mais indulgentes em relação aos impulsos e desejos, enquanto que os holandeses são mais restritivos. Isto pode ser a explicação das duas perspectivas. O Canadá ao ao realizar os procedimentos de eutanásia durante a pandemia reflete estas perspectivas de curto prazo e de valorizarem a realização de impulsos e desejos. Por outro lado, a Holanda ao postergar a realização dos procedimentos de eutanásia, revela as suas características de pensar pragmaticamente e a longo prazo. São duas perspectivas apenas aparentemente contraditórias, que quando avaliadas de forma mais abrangente têm uma coerência com as suas caraterísticas históricas e culturais.

Uma última abordagem possível é a discussão sobre as mortes evitáveis. Esta situação já foi descrita com a denominação de Mistanásia. Estas mortes, que ocorrem por falta de planejamento adequado, poderiam ter sido evitadas, menos pessoas poderiam ter morrido em decorrência da pandemia. Estas mortes podem envolver ou não a infecção pelo SARS-CoV-2, pois muitas outras mortes deveriam ser também computadas como decorrentes da pandemia. Muitos pacientes morreram, por outras causas, durante a pandemia por falta de assistência adequada. A restrição de procedimentos, de escassez recursos e do despreparo para enfrentar situações como a vivida nesta pandemia, fizeram com que muitos pacientes com COVID-19 e outros sem COVID-19 morressem indevidamente. Nos casos de óbitos causados pela COVID-19 existem modelos que permitem fazer uma estimativa de mortes. Estas mortes evitáveis são aquelas que extrapolam os modelos de mortalidade usuais. As mortes evitáveis em outros diagnósticos poderão ser verificadas posteriormente. Será possível avaliar se houve, na vigência da pandemia, uma mortalidade superior à média histórica, excluindo o computo dos casos de COVID-19.


Para ler mais

Shannon CE. A Mathematical Theory of Communication. Bell Syst Tech J. 1948;27:379–423, 623–656. 

Davis SP. Euthanasia of the Coronavirus - COVID-19. Online J Heal Ethics [Internet]. 2020;16(1). 

Pomeroy R. COVID-19 and Passive Euthanasia. RealClear Science. 2020. 

Pancevski B. Coronavirus Is Taking a High Toll on Sweden’s Elderly . Families Blame the [Internet]. The Wall Street Journal. 2020

Yuill K, Boer T. What Covid-19 has revealed abut euthanasia. Spiked. 2020 

Wiebe E, Green S, Wiebe K. Medical assistance in dying (MAiD) in Canada: practical aspects for healthcare teams. Ann Palliat Med. 2020 Aug;9(6):38–38.