segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Inteligência Artificial e Saúde

 José Roberto Goldim


A Percepção da Opinião Pública sobre a Inteligência Artificial

Em 2024, em uma pesquisa de opinião pública, 73% das pessoas de 20 diferentes países disseram que compreendiam o que é Inteligência Artificial (IA), com uma variação de 53% no Japão e 80% na Indonésia e em Portugal. No Brasil a compreensão declarada foi de 76%.

Foram questionadas, também, a aprovação ou não para nove situações específicas de atendimento à saúde. Tanto no Brasil como nas respostas da amostra como um todo, a maior aprovação foi para os procedimentos envolvendo diagnósticos por imagem. A prescrição de medicamentos foi a atividade que teve a menor aceitação nos grupos estudados (tabela 1). É sempre bom relembrar que estas pesquisas, mais do que a opinião pública, avaliam a opinião publicizada pelas pessoas, ou seja, podem ocorrer viéses nas respostas em função de múltiplos fatores associados.

Tabela 1 - Resultados de uma pesquisa de opinião pública envolvendo 23882 pessoas de 23 diferentes países, sendo 1121 no Brasil, em maio de 2024.

Área
Brasil
n=1121
Global
n=23882
Aprova
(%)
Desaprova
(%)
Aprova
(%)
Desaprova
(%)
Diagnósticos por imagem641559 (38-74)18 ( 6-30)
Cirurgia robótica581951 (40-63)23 (12-38)
Triagem de paciente572047 (29-70)25 ( 8-40)
Recomendar Tratamentos571851 (33-77)22 ( 8-35)
Robôs acompanhantes542153 (36-75)26 ( 6-32)
Dispensar medicamentos512448 (31-62)24 ( 8-34)
Decidir tratamento482446 (31-62)25 (12-34)
Recomendar medicamentos472746 (33-63)25 (12-34)
Prescrever medicamentos433146 (28-68)25 ( 7-38)

Global Public Opinion on Artificial Intelligence (GPO-AI). Schwartz Reisman Institute / University of Toronto (May 16, 2024). 


As Origens da Inteligência Artificial

A Inteligência Artificial se baseia no uso de computadores e sistemas que permitem realizar inúmeras tarefas e atividades que simulam o funcionamento do cérebro humano. Inúmeras contribuições de diferentes pesquisadores permitiram construir as bases do hoje denominamos de Inteligência Artificial.

Goldim JR. Linha do Tempo: "Do ábaco à Inteligência Artificial". Sutori, 2024. 

A expressão Inteligência Artificial foi utilizada pela primeira vez em 1955, em um projeto de pesquisa, na Universidade de Dartmouth, nos Estados Unidos. Os quatro autores -John McCarthy, Marvin L. Minsky, Nathaniel Rochester e Claude Shannon -  utilizaram esta expressão - Inteligência Artificial - como alternativa para Cibernética, que era a mais utilizada naquele momento. Ao mudança da denominação foi uma maneira de se independizar do pensamento vigente, naquela época, para a abordagem de alguns problemas na área da computação.  O objetivo do projeto era discutir, ao longo de um seminário de dois meses, sete pontos principais:  

  1. uma calculadora automática pode ser programada para simular o funcionamento de uma máquina?
  2. um computador ser programado para utilizar uma linguagem?
  3. um conjunto de "neurônios hipotéticos" pode ser arranjado para formar conceitos?
  4. é possível desenvolver um teoria do tamanho do cálculo?
  5. é possível o auto-aprimoramento das próprias máquinas?
  6. é possível ter abstrações realizadas pelas máquinas?
  7. os computadores têm capacidade de lidar com aleatoriedade e criatividade? 

McCarthy J, Minsky ML, Rochester N, Shannon CE. A Proposal for the Dartmouth Summer Research Project on Artificial Intelligence. Dartmouth; 1955, Aug, 31. 

 

Definição de Inteligência Artificial

A UNESCO define que:

"Os sistemas de IA são tecnologias de processamento de informação que integram modelos e algoritmos com capacidade de aprender e de realizar tarefas cognitivas que conduzem a resultados como previsão e tomada de decisão em ambientes materiais e virtuais. (...) Os sistemas de IA são concebidos para funcionar com vários graus de autonomia, através da modelagem e representação do conhecimento,  da exploração de dados e do cálculo de correlações"

UNESCO. Recommendation on the Ethics of Artificial Intelligence. Paris: Unesco; 2021. 

Outra definição  é de que a Inteligência artificial 

"é o estudo dos sistemas que agem de um modo que, a um observador qualquer, pareceria ser inteligente. (...)  Inteligência Artificial envolve a utilização de métodos baseados no comportamento inteligente de humanos e outros animais para solucionar problemas complexos". 

Silveira SR, DeVit ARD. Inteligência Artificial: os computadores podem ser criativos? In: Fernandes MS, Caldeira CM de G, editors. Inteligência Artificial e Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: GZ; 2023:7–30.

Russel e Norvig, que escreveram o livro texto que é utilizado em mais de 1500 universidades, definem que 

"o campo da inteligência artificial, ou IA, se preocupa não apenas em compreender, mas também em construir entidades inteligentes—máquinas que podem processar como agir de forma efetiva e segura em uma ampla variedade de novas situações".

Russell SJ, Norvig P. Artificial Intelligence: A Modern Approach. 4th ed. Hoboken, NJ: Pearson; 2024. 


A Classificação da Inteligência Artificial

A Inteligência Artificial, que não tem uma classificação muito clara e uniforme entre diferentes autores e instituições. As duas classificações mais usualmente utilizadas são pelos critérios de capacidade e de finalidade.

classificação por capacidade parte da comparação entre a inteligência humana, tomada como controle, com a das máquinas. São utilizadas três categorias: fraca, forte e  superinteligente.  

A Inteligência Artificial Fraca ou Restrita, denominada de Narrow em inglês (ANI) é aquela que realiza tarefas e funções específicas. Todas as ferramentas de Inteligência Artificial atualmente disponíveis estão neste estágio. 

A Inteligência Artificial Forte o Geral, General, em inglês (AGI), já possibilita simular atividades intelectuais humanas de forma independente. A Prova de Turing é que poderá identificar o início deste estágio, quando não mais será possível diferenciar os resultados humanos e de máquinas. 

A Inteligência Artificial classificada como Superinteligent em inglês, ou Superinteligente, talvez fosse melhor traduzida por Suprainteligente, pois estará além da inteligência humana. É neste estágio teórico que supostamente as máquinas ultrapassarão a inteligência humana.

Fernandes MS, Goldim JR. Aspectos éticos, legais e sociais associados à Inteligência Artificial. In: Fernandes MS, Caldeira CM de G, editors. Inteligência Artificial e Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: GZ; 2023:31–44. 

A classificação por finalidade, ou purpose em inglês, tem como objetivo verificar a abrangência das tarefas realizadas pelas ferramentas de inteligência artificial, que pode ser específica ou geral. A utilização destes mesmos termos em duas classificações pode gerar confusões e ambiguidades entre elas próprias, dificultando a sua compreensão. 

A Inteligência Artificial Específica, ou Narrow em inglês, é aquela na qual os modelos ou sistemas informatizados tem finalidades restritas. São as ferramentas dedicadas a algumas tarefas, que podem ser complexas, mas que ficam restritas em termos de uso. As ferramentas de tratamento de imagem, tanto na publicidade, no cinema e na medicina, são exemplo disto, assim as aplicações para fins financeiros e os sistemas autônomos de direção de veículos. Na área de armamentos, os sistemas de armas letais autônomas, LAWS - Lethal Autonomous Weapon Systems, em inglês, também tem esta classificação. 

A Inteligência Artificial Geral, ou general em inglês, é a utilizada pelos modelos e sistemas com finalidades amplas, tais como os chatbot que utilizam modelos generativos. Estes modelos de grande abrangência de linguagem, ou large language models (LLM) em inglês, conseguem entender e gerar conteúdos de linguagem que são interativos. Os melhores exemplos deste tipo de inteligência artifical geral de grande abrangência são as ferramentas ChatGPT, Gemini, Claude AI, Perplexity, o1 e DeepSeek, entre outros. São sistemas poderosos que tem uma excelente interação com pessoas, mas que podem apresentar problemas de conteúdo nas suas mensagens geradas. 

Bengio Y. International AI Safety Report: The International Scientific Report on the Safety of Advanced AI. London: UK Government; 2025:27.

A classificação por criatividade ou originalidade, segundo Denis Hassabis, premio Nobel e CEO do Google DeepMind, pode ser um elemento para caracterizar o salto de capacidade da Inteligência Artificial Restrita para a Geral.  O nivel de criatividade básica apenas interpola dados, pode encaminhar soluções que representem a média dos conhecimentos existentes, mas se baseia apenas no que já é existente. O nível de criatividade intermediário é o que já é capaz de extrapolar, ou seja, é capaz de criar algo novo a partir de um conjunto de dados já disponíveis. Extrapolar é ir além do já conhecemos. O nível avançado de criatividade é o que permite a invenção, que é criar algo totalmente inovador, com grande grau de abstração.



O Desempenho da Inteligência Artificial

É inegável que as máquinas apresentam maior volume de armazenamento de informações e maior velocidade na realização de cálculos matemáticos, mas isto não necessariamente representa melhor desempenho cognitivo.

Um pesquisador dos Países Baixos testou diferentes ferramentas de Inteligência Artificial utilizando testes de QI desenvolvidos para seres humanos. Utilizou o teste de QI padrão desenvolvido pela Mensa da Noruega. 

Em setembro de 2024, a maioria das ferramentas teve um desempenho inferior a QI=80, indicando um desempenho que poderia ser melhor. Nesta avaliação apenas o o1, da Open AI, se aproximou de QI=100, que seria considerado Bom. Um dia após, a maioria das ferramentas já tinha um desempenho na faixa entre 80 e 100 pontos. o o1 já tinha atingido 120 pontos, que é considerado um resultado Excelente.

Em janeiro de 2025 foi feita uma nova avaliação, já incluindo o DeepSeek. Esta nova ferramenta teve um desempenho de cerca de 100 pontos. Este desempenho foi semelhante ao Gemini Advanced, com ambos superando todas as demais ferramentas, exceto o o1, que manteve o seu resultado ao redor dos 120 pontos. 



Este tipo de avaliação, contudo, tem alguns importantes problemas associados:
  1. Estes testes foram desenvolvidos para avaliar a cognição humana, e ainda recebem críticas quanto a sua validade;
  2. Ainda não se tem uma clara definição e diferenciação da inteligência humana e da inteligência das máquinas;
  3. As máquinas tem claros viéses de aprendizado, em função dos dados utilizados para o seu treinamento prévio.
Uma outra forma de medir o desempenho das máquinas é avaliar outras características como a quantidade e qualidade das informações e a empatia associada à comunicação. Em 2023 foi publicado um artigo no periódico JAMA, que comparou as respostas dadas por médicos e pelo ChatGPT,. versão 2022, a questionamentos encaminhados por pacientes por meio de sites de perguntas para médicos. Foram selecionadas 195 interações por escrito de pacientes e médicos e as mesmas questões encaminhadas foram submetidas ao ChatGPT. Um painel de especialistas avaliou as respostas, sem identificação da sua origem ser do médico ou da máquina, quanto a qualidade, quantidade e empatia. Em todas estas características as respostas do ChatGPT foram avaliadas melhor que a dos médicos, de forma estatisticamente significativa.


Estes resultados devem ser avaliados em seus aspectos mais amplos e não apenas em termos de desempenho pontual destas variáveis. A melhor maneira de avaliar é, talvez, reconhecer aspectos que devam ser aprimorados na comunicação entre médicos e pacientes, ao invés de fazer a proposta de substituição de pessoas por máquinas. É importante relembrar que os conhecimentos utilizados pelas máquinas, assim como os algoritmos e programas que as fazem funcionar, foram desenvolvidos por seres humanos.


Os Benefícios da Inteligência Artificial

Os benefícios resultantes do uso da Inteligência Artificial são inúmeros e já estão sendo incorporados à rotina diária das pessoas, em maior ou menor grau. É possível destacar:
  1. Melhor processamento de informações não estruturadas
  2. Análises de grandes volumes de dados
  3. Consolidação de conhecimentos
  4. Interação com linguagem natural
  5. Facilidade de tradução de textos e linguagem verbal
  6. Produção audiovisual
  7. Reconhecimento de imagens
  8. Precisão de movimentos
  9. Padronização de processos


Os Riscos da Inteligência Artificial

Os riscos associados à Inteligência Artificial também são inúmeros. Muitos deles são fáceis de identificar e prever e outros apresentam enormes desafios par a sua prevenção. Uma breve lista de riscos inclui aspectos referentes a:
  1. Privacidade e confidencialidade 
  2. Origem não confiável dos dados (GIGO)
  3. Viéses algorítmicos (GIGO)
  4. Associações espúrias ("alucinações" - GIGO)
  5. Falta de avaliação prévia à liberação das ferramentas e de explicabilidade
  6. Má intenção associada ao uso das ferramentas (dolo)
  7. Responsabilidade das ações geradas por sistemas autônomos de tomada de decisão 
  8. Arrogância tecnológica - Infocracia (Han, 2022)
  9. Impacto ecológico do consumo de energia dos data centers
  10. Estupidez artificial” e “Burrice natural

A arrogância tecnológica se contrapõe com a humildade humana, que permite reconhecer que errou ou que não se conhece o suficiente para assumir um posicionamento. É a humildade que se conjuga com a curiosidade, duas caraterísticas intrinsecamente humanas.



Os Aspectos Éticos, Legais, Morais e Sociais da Inteligência Artificial

Em um recente estudo publicado, o setor de Cuidados à Saúde foi um dos três como maiores barreiras éticas e legais associadas. Desta forma, é fundamental que seja feita uma reflexão sobre os aspectos éticos e regulatórios associados a Inteligência Artificial em todos os estágios de desenvolvimento.



Existem inúmeros documentos refletindo ou estabelecendo normas de como entender e enfrentar os problemas decorrentes da Inteligência Artificial. 

Em 2021 a UNESCO publicou as suas recomendações sobre a Ética da Inteligência Artificial que baseavam quatro valores centrais:
  1. Respeito, proteção e promoção dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e da dignidade humana;
  2. Prosperidade ambiental e ecossistêmica;
  3. Garantir diversidade e inclusão; e
  4. Viver em sociedades pacíficas, justas e interconectadas.


A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também divulgou um documento sobre princípios para a Inteligência Artificial. O enfoque deste documento não é exatamente o mesmo da UNESCO, ele apresenta uma perspectiva mais operacional. Os cinco valores que embasaram as reflexões foram:
  1. Desenvolvimento, inclusivo e sustentável, e bem-estar;
  2. Direitos humanos e valores democráticos, incluindo justiça e privacidade;
  3. Transparência e explicabilidade;
  4. Robustez, segurança física e patrimonial; e
  5. Responsabilidade pelos resultados.

Quanto a responsabilidade, o termo de uso do ChatGPT indica:
 

Quanto aos aspectos legais, o Senado Federal brasileiro, já aprovou, em 18/12/2024, o Projeto de Lei 2338/2023 que estabelece um marco legal para o uso da Inteligência Artificial no Brasil. Este projeto aguarda tramitação na Câmara dos Deputados. É um projeto de aborda estas questões de forma contemporânea e dentro do enquadramento legal que está sendo discutido em muitos outros países.


Foi apresentado um novo Projeto de Lei 5960/2025, em 25/11/2025 que propõe o Marco de Fomento à Economia Digital no Brasil, que se aplica "exclusivamente às plataformas digitais e aos sistemas de IA".


A Europa já aprovou, em junho de 2024, o seu regulamento para a Inteligência Artificial, é um documento que todos os países vinculados à Europa deverão discutir internamente e adequar as suas legislação nacionais para atenderem aos padrões estabelecidos.


Em 28 de janeiro de 2025, o Vaticano publicou um documento elaborado por dois órgãos internos: o Dicastério da Fé e o Dicastério da Cultura e da Educação. O documento, intitulado de Antigo e Novo faz uma reflexão moral e religiosa sobre as questões envolvidas com a Inteligência Artificial.

O documento critica a equiparação da Inteligência Artificial com a Inteligência Humana, classificando o uso da palavra "inteligência" para a IA como "enganosa". A IA deve ser vista como um produto da inteligência humana, e não como uma forma artificial dela.

Algumas questões merecem ser destacadas:
  • A amplitude da Inteligência Humana, que pode ser entendida nos termos complementares de "razão" (ratio) e "intelecto" (intellectus), sendo o intellectus a intuição da verdade e a ratio o processo discursivo e analítico que leva ao juízo.
  • A limitação da IA que, embora possa imitar algumas operações, está confinada a um âmbito lógico-matemático e baseia-se em inferências estatísticas. Ela carece da capacidade de se desenvolver organicamente, ser moldada por experiências corporais, replicar o discernimento moral e estabelecer relações autênticas. A IA pode simular a empatia, mas não a pode replicar.
  • A IA pode aumentar as desigualdades, o "fosso digital", e reforçar a marginalização e a discriminação.
  • É perigoso antropomorfizar a IA, pois isso pode obscurecer a distinção entre humano e artificial.
  • A IA deve ser utilizada como uma ferramenta complementar à inteligência humana e não para substituir a sua riqueza.


É importante que a abordagem ética seja feita de forma multidimensional, e não apenas princípios. A maioria dos documentos que estabelecem reflexões éticas se limitam ao estabelecimento de princípios, que são recomendações.

A existência de uma marco regulatório é fundamental, mas ele deve ser precedido e  monitorado de uma reflexão ética continuada. Sem esta reflexão poderemos ter muitos documentos regulatórios, porém com pouca ação prática efetiva. 

Atualmente, temos muitas gerações com diferentes culturas e perspectivas convivendo. Podem ocorrer diferentes percepções a respeito da adequação ou não de práticas envolvendo Inteligência Artificial em grupos de “imigrantes digitais” e de “nativos digitais”. Estas diferenças culturais e geracionais ainda estão sem dados que permitam verificar a sua importância na condução de políticas a respeito desta área tão importante.

Fernandes MS, Goldim JR. Artificial Intelligence and Decision Making in Health: Risks and Opportunities. In: Sousa Antunes, H., Freitas, P.M., Oliveira, A.L., Martins Pereira, et al editor. Multidisciplinary Perspectives on Artificial Intelligence and the Law. Cham, Switzerland: Springer; 2024:187–204. 

Perspectivas Futuras na Saúde

A utilização de ferramentas de Inteligência Artificial na área da Saúde deve levar em conta as seguintes perspectivas futuras:

  • Benefício potencial nas áreas de diagnóstico, com mais precisão e precocidade; de tratamento, com maior especificidade e eficácia; e de gestão dos pacientes e recursos;
  • Risco de reversão, sendo fundamental evitar a “estupidez artificial, quando a Inteligência artificial se converte em uma ferramenta rígida e ineficaz, incapaz de se adaptar a situações complexas;
  • Necessidade de discutir e estabelecer padrões éticos e legais que garantam o uso da inteligência artificial, de maneira  justa e responsável, especialmente na área da saúde.


O que nos faz humanos

É sempre importante lembrar que o futuro da Inteligência Artificial ​​não se refere apenas aos algoritmos – refere-se aos valores que codificamos neles. e que o futuro da humanidade não depende apenas de ações individuais, mas sim de discussões e reflexões que envolvam as diferentes comunidades e países.

As máquinas não foram feitas para entender uma mentira.

Adela Cortina. Ética o ideología de la inteligencia artificial? El eclipse de la razón comunicativa en una sociedad tecnologizada. Madrid: Paidós; 2024.

Apesar de todo o seu desempenho computacional, o computador é burro, na medida em que lhe falta a capacidade de hesitar.

Como queremos viver? O que há de humano no ser humano, de natural na natureza, que precisa ser protegido? (...) Essas perguntas antigas-novas podem ser jogadas de um lado para o outro entre a vida cotidiana, a política e a ciência. No estágio mais avançado do processo civilizatório, elas voltam a ocupar uma posição prioritária na agenda – também, ou precisamente, em tempos em que estão envoltas no disfarce de fórmulas matemáticas e controvérsias metodológicas. 

Ulrich Beck. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: 34, 2011.

O Alerta de Weizenbaum

Em 1976, Weizenbaum publicou um livro com o título Computer power and human reason: from judgment to calculation. Neste livro ele faz uma série de reflexões, que continuam extremamente atuais sobre as relações das pessoas com os computadores. É possível destacar alguns pontos importantes:

  • Diferenciação de cálculo e julgamento: os cálculos são baseados em regras e os julgamentos se baseiam, entre outros fatores, nos sistemas de crenças e valores pessoais;
  • Crítica ao Tecno-otimismo: esta perspectiva entende que os computadores poderão substituir a inteligência humana;
  • Implicações Éticas da Tecnologia: a delegação de funções para os comutadores gera desumanização, como na tomada de decisão autônoma realizada por vários sistemas, com fatores que hierarquizam a máquina acima do humano. Isto poderia ser denominado de uma "arrogância tecnológica".
  • Limites da Inteligência Artificial: nestes sistemas computacionais existe uma carência de compreensão genuína, de intuição e de responsabilidade moral. Além da falta de explicabilidade dos sistemas em si;
  • Impacto Cultural e Filosófico: a perspectiva de mundo apenas pela tecnologia gera uma interpretação reducionista da realidade em função da simples quantificação das variáveis;
  • Desconsideração dos aspectos intangíveis da realidade humana como a arte, a moralidade e o amor.

Adeus à IA Generativa

Já existem alertas de que os recursos da IA Generativa estejam se esgotando ou sendo mal utilizados e interpretados.
Shalita Suranga alertou para alguns pontos importantes:
  • Dependência de conhecimento criado por humanos;
  • Criação de conhecimento inexistente e não confiável a partir de algoritmos amigáveis;
  • Falta de inovação e criatividade;
  • Falta de habilidades lógicas.
Segundo o autor:
"A IA generativa nunca substituirá de fato engenheiros de software, designers, escritores e outros profissionais qualificados, talentosos e criativos, mas a IA pode criar ferramentas melhores para eles e aprimorar seu trabalho se as utilizarem de forma ética". 
 

O Pensamento Crítico e a Fronteira Irregular da IA
A rigor, ninguém conhece toda a gama de recursos dos modelos de linguagem grande (LLM) mais avançados, como o GPT-4. Não se conhecem as fronteiras entre seu uso adequado ou as condições nas quais eles falham. Não existe um manual de instruções que descreva as suas funcionalidades e o seu uso adequado. É possível identificar tarefas para as quais a IA é imensamente poderosa, assim como outras em que falha de forma sutil ou completa.
Esta fronteira de capacidades tecnológicas da IA é irregular (jagged techonologial frontier).


A fronteira tecnológica irregular demonstra que as ferramentas de IA não têm desempenho uniforme em todas as áreas de conhecimento. Em algumas tarefas ela ultrapassa a fronteira e realmente auxilia, porém em outras está aquém do mínimo necessário para auxiliar na consecução de uma tarefa, pois os seus resultados são imprecisos e podem perturbar o desempenho das pessoas que as utilizam.

Em um estudo envolvendo 758 consultores da Boston Consulting Group foram avaliados quanto ao desempenho em realizar 19 tarefas para serem cumpridas. Em 18 tarefas a IA era capaz de auxiliar adequadamente na realização da tarefa e em uma outra a IA estava fora de condições de auxiliar adequadamente. Os consultores foram divididos em três grupos: os que não utilizariam IA (grupo controle) e os que utilizariam IA sem treinamento prévio, e os que utilizariam IA com treinamento na elaboração de perguntas (prompts). O tempo para realizar as tarefas era de 90 minutos.

Nas 18 tarefas que estavam dentro da fronteira de capacidades da IA, estes foram os resultados obtidos. Os grupos que utilizaram IA realizaram mais tarefas do que o grupo controle, em menor tempo e com maior acurácia. Os valores de percentual entre parênteses demonstram a comparação dos grupos que utilizaram IA em relação ao controle.
 

Sem IA

Apenas IA

IA + treinamento

Tarefas

82%

91% (+9%)

93% (+11%)

Tempo

 

-28%

-22%

Acurácia

4,099

5,565 (+38%)

5,755 (+42%)


Na tarefa que ultrapassava a fronteira da capacidade da IA, ou seja, onde os resultados seriam não precisos, os resultados tiveram uma outra tendência. O grupo controle teve melhor desempenho em relação aos grupos com IA. O grupo controle teve uma acurácia de 84% na resolução desta tarefa, enquanto que o grupo com IA sem treinamento obteve um valor de 70%, com uma redução de 14%, e o grupo com IA e treinamento, teve um resultado de 60%, com uma redução de 24% no seu desempenho.

Ou seja, a IA pode auxiliar ou atrapalhar as pessoas que a utilizam, dependendo da relação entre as fronteiras do conhecimento e das capacidades da IA.

Texto incluído em 15/02/2025 e atualizado em 01/12/2025







domingo, 30 de novembro de 2025

Bioética e Saúde: Uma Perspectiva Complexa, Integrada e Compreensiva

 José Roberto Goldim


A Bioética, quando entendida em sua perspectiva complexa, permite reflexões sobre vários temas. A saúde é um destes temas preferenciais para a reflexão bioética.  A perspectiva complexa associada às ações na área da Saúde permite envolver um conjunto amplo de argumentos que servem para verificar a sua adequação. 

A saúde têm múltiplos significados de acordo com o entendimento, com o paradigma utilizado e da abrangência estabelecida para as suas ações. a ter uma abordagem baseada no paradigma das evidências epidemiológicas ou das evidências narrativas. Quanto a abrangência, podem ser identificadas a  saúde individual, a saúde pública, a saúde coletiva, a saúde única, a saúde global e a saúde planetária.

Os diferentes entendimentos da saúde

Hipócrates, ao redor de 340aC, na Grécia, tinha uma concepção integrada de saúde. Isto ficou evidente na sua obra Ares, Águas e Locais. Neste texto ele afirmava que o local onde se vive influencia diretamente a saúde, que depende da relação entre o indivíduo e o meio, incluindo o clima e as estações; a água e os alimentos; o estilo de vida, os hábitos e as emoções. Em outros textos, Hipócrates enfatizou a importância da noção de equilíbrio para o adequado entendimento da saúde.

Galeno rejeitava a noção de que saúde é apenas a ausência de doença, pois afirmava que saúde e doença eram independentes. Ele afirmava que existem diferentes graus de saúde de acordo com o funcionamento ou a constituição dos órgãos corporais.

Com o passar do tempo, a ideia de que saúde é ausência de doença se consagrou. É uma perspectiva que valoriza o paciente individualmente, com ênfase nos aspectos biológicos. É neste contexto que o médico passa a ter o papel central de identificar e enfrentar as  doenças. O local onde a saúde é tratada passou a ser identificado como sendo o hospital. Neste contexto, os médicos, a partir da metade do século XIX, passaram a contar, de forma sistemática e profissional, com a colaboração das Enfermeiras na realização de suas atividades.

No início do século XX, a saúde também passou a ser entendida como sendo um direito humano coletivo. A Revolução Mexicana, de 1913, a Revolução Russa, de 1917, e a Constituição de Weimar do Império Alemão, de 1919, consagraram este entendimento. Este direito coletivo garante o acesso aos cuidados de saúde para todos os cidadãos, sendo a que saúde se realiza no âmbito de toda a sociedade. O Art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, consagrou este entendimento ao propor que a "saúde é um direito de todos e um dever do Estado". A saúde passou a ser considerada como um critério de cidadania.

Com a criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, foi dado um outro entendimento do que é saúde. O modelo de abordagem biopsicossocial passou a ser incorporado e a saúde foi definida como o estado de pleno bem-estar físico, mental e social. Os aspectos biológicos foram acrescidos dos aspectos biográficos do individuo. Esta nova perspectiva também teve uma alteração de quem realiza saúde e onde que ela ocorre. Aos médicos e enfermeiros foram acrescidos todas as demais profissões da área da saúde. No Brasil, de acordo com a Resolução CNS 218/1997, são considerados profissionais de saúde:  Assistentes Sociais, Biólogos, Profissionais de Educação Física, Enfermeiros, Farmacêuticos, Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos, Médicos, Médicos Veterinários, Nutricionistas, Odontólogos, Psicólogos e Terapeutas Ocupacionais. A partir da Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978, o local onde a saúde ocorre passou a ser a rede de saúde, incluindo, além dos hospitais, os postos de diferentes níveis de complexidade. Novos profissionais e novos locais foram sendo incorporados às ações de saúde, entendida de forma mais abrangente.

Os paradigmas em saúde

Dois paradigmas são mais utilizados, o da Saúde baseada em Evidências Epidemiológicas e da Saúde baseada em Evidências Narrativas. Habitualmente, estes termos são utilizados de forma mais restrita, como Medicina baseada em Evidências e Medicina baseada em Narrativas. A opção de utilizar a expressão Saúde, ao invés de Medicina, tem como objetivo ampliar para além de um único enfoque profissional, envolvendo todos os demais participantes nas ações. 

Saúde baseada em Evidências Epidemiológicas é uma abordagem quantitativa que tende a ter  uma perspectiva de totalidade dos fenómenos estudados, ou seja, de buscar explicações que abarquem o conjunto de indivíduos, sem levar em conta as suas peculiaridades. Esta perspectiva baseada em evidências científicas, especialmente as epidemiológicas. 

Segundo Guyatt (1992), Saúde baseada em Evidências é uma abordagem que 

"retira a ênfase da intuição, da experiência clínica assistemática e de uma lógica patofisiológica como base suficiente para a tomada de decisões clínicas e enfatiza o exame das evidências da pesquisa clínica". 

Segundo este mesmo autor, esta abordagem exige novas habilidades dos profissionais e dos pacientes. Os profissionais têm que aprender a realizar buscas continuadas na literatura científica e a utilizar regras formais de avaliação destas evidências contidas nas produções científicas. 

HG Wells (1903), de forma antecipatória já havia dito que: 

"o pensamento estatístico será, um dia, tão necessário para a cidadania eficiente, quanto a habilidade de ler e escrever!"

A conjugação do pensamento estatístico com as buscas continuadas de dados publicados levou à possibilidade de estabelecer uma classificação das evidências de acordo com a confiança e validade associadas. A maneira mais comum de expressar esta classificação foi por meio da Pirâmide de Evidências Epidemiológicas. A opinião de especialistas é a evidência que tem a menor confiança e validade. No topo da pirâmide, ao contrário, estão  as revisões sistemáticas e os estudos de metanálise.

Esta é a mesma linha de pensamento da citação atribuída a W. Edwards Deming, porém não localizada em qualquer dos seus textos:

"sem dados, você é apenas uma pessoa com uma opinião". 

Porém, não basta ter apenas informações, se elas não estiverem associadas a uma perspectiva sobre o mundo, ou seja, a um paradigma. Matt Coyle (2021), fez um contraponto a proposta de Deming, ao afirmar que:
"sem uma opinião para guia-lo, você é apenas mais uma pessoa com dados".

Saúde baseada em Evidências Narrativas valoriza o individual, a singularidade, as múltiplas possibilidades de entender uma mesma situação de acordo com o paciente ou situação envolvida. É a recuperação da possibilidade de contar a histórica individual de cada pessoa, de cada paciente.  É, de acordo com Goyal e colaboradores (2008), lembrar que os pacientes tem nome e endereço, ou seja, são pessoas únicas e localizadas. A proposta destes autores é de que os profissionais de saúde devem sair dos relatos impessoais dos pacientes. 

Infelizmente, o conceito de narrativa tem sido confundido com o de versão. Narrativa, segundo Alberti (2012) é:
"é o estabelecimento de uma organização temporal, através de que o diverso, irregular e acidental entram em uma ordem, que não é anterior ao ato do relato, mas coincidente com ele; que é pois constitutiva de seu objeto."

Versão, por outro lado, são os "diferentes modos de contar ou interpretar o mesmo ponto, fato, história etc.", segundo esta mesma autora. Ou seja, a narrativa organiza um relato, informações antes dispersas que passam a fazer sentido., enquanto que a versão pode ser fantasiosa e infundada.

Zaharias (2018) ao questionar o que é Medicina baseada em Narrativa responde que é uma habilidade de contar histórias. Contar histórias é reconhecer a singularidade de cada paciente, é estabelecer e aproximar as conexões entre o profissional e o próprio paciente, é, finalmente, reconhecer que podem existir diferentes perspectivas para entender a mesma situação. Fazer a narrativa é organizar estas informações de uma maneira que permita o seu melhor entendimento por parte de todos.

Isto já havia sido descrito por Hipócrates, no seu livro Prognóstico. Neste texto, a palavra prognóstico, não se refere apenas a predizer o futuro, mas sim dar esta continuidade de informações ao longo do tempo, é estabelecer uma trajetória, uma hipótese, um modelo explicativo para a situação que busca descrever. O texto de Hipócrates estabelece que:

"Parece-me que é excelente que o médico estabeleça hipóteses. Pois, se ele investiga e relata aos seus pacientes, o presente, o passado e o futuro, antes mesmo que ocorram, preenchendo as lacunas nos relatos dados pelos doentes, ele terá mais condições de compreender os casos. Desta forma, os pacientes se entregarão a ele, com confiança, para tratamento."  

Muitas vezes estes paradigmas epidemiológico e narrativo são entendidos como sendo antagônicos, quando, na realidade, são complementares. Subbiah (2023) reenquadrou a Pirâmide de Evidências na perspectiva de um Iceberg de Evidências. A antiga Pirâmide é apenas a parte visível desta gigantesca estrutura de conhecimentos. Na parte "submersa", que aprofunda estas questões, estão incluídas as novas contribuições geradas pela tecnologia da informação, como a internet das coisas e o aprendizado de máquinas, assim como o paradigma narrativo. Os dados da História Natural, incluindo aspectos ambientais e sociais, e da história pessoal passam  a ser parte de mesmo conjunto de informações. 

Esta é a grande contribuição da teoria da complexidade: permitir esta visão integrada de paradigmas antes isolados. Não é uma fusão, uma perda de fronteiras, nem mesmo uma apropriação: é a possibilidade de diálogo, de troca de saberes entre duas diferentes perspectivas - epidemiológica e narrativa - de descrever a mesma realidade.

A abrangência da saúde

Existem múltiplas abrangências para a saúde. Os enfoques podem variar do nível individual, de uma única pessoa, até a saúde planetária, quando as questões mais amplas são abarcadas.

A perspectiva da saúde ser entendida apenas como um enfrentamento às doenças, tinha uma  perspectiva individual e biológica, baseada na pessoa doente. Saúde era o contrário da doença. O foco desta abrangência era manter e salvar a vida desta pessoa. A inclusão do bem-estar na definição de saúde proposta na criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, incluiu, além das questões biológicas, as relacionadas à saúde mental e social. Ou seja, as questões biográficas passaram a ser também consideradas. Cada ser humanos não era mais considerado apenas como um ser vivo, mas também como uma pessoa. A perspectiva da Saúde não era mais apenas preservar a vida, garantir a sobrevivência, mas também ter uma atenção ao viver, ao bem-viver, de dada um. Desta forma, os aspectos relacionais entre pessoas, antes vistos apenas na perspectiva de doenças infectocontagiosas, passaram a ter um novo olhar. 

A abrangência das questões envolvendo a saúde foi sendo progressivamente ampliada para abarcar as questões de Saúde Pública de Saúde Coletiva. Esta mudança da perspectiva individual para coletiva surgiu no final do século 19 e no início do século 20. A Saúde Pública se utilizou  dos conhecimentos gerados pela Epidemiologia, para estabelecer políticas públicas de alocação de recursos na área da saúde. Por outro lado, com a evolução do pensamento dos Direitos Humanos, alguns Estados começaram a garantir o direito à saúde, entendido como um direito coletivo e não individual. Esta inclusão da saúde como um critério de cidadania, é que permitiu o surgimento da Saúde Coletiva. A saúde pública assumiu uma proposta mais quantitativa, enquanto que a saúde coletiva passou a abordar estas mesmas questões de uma forma mais qualitativa, mais crítica e articulada. 

No final do século 20 foram incorporadas as reflexões sobre as questões ambientais. Houve a proposta de que o ambiente saudável é um direito fundamental transpessoal, ou seja, que ultrapassa inclusive a perspectiva humana. Isto acarretou também uma nova ampliação do entendimento do que é saúde, com a introdução da saúde única, da saúde global e da saúde planetária.

Ampliando ainda mais esta visão, surgem a Saúde Global e a Saúde PlanetáriaA saúde global abarcando, de forma mais abrangente, o conjunto de todos os elementos anteriormente citados. É a saúde não mais na perspectiva de um país ou região, mas do conjunto dinâmico das ações sanitárias em nível supranacional. É uma abrangência que leva em conta as biorregiões. A saúde global propõe uma perspectiva abrangente para as políticas públicas. Por sua vez, a saúde planetária vai ainda mais além. O seu objeto de preocupação é o planeta como um todo, é o entendimento sistêmico e integrado da Terra como Gaia. A saúde planetária passa a incluir na saúde, as questões climáticas, o uso de recursos naturais, as diferentes formas de produção e uso de energia, as alterações de paisagens e de ecossistemas, a mineração e a emissão de gases. Estas questões mais abrangentes, que antes não eram abordadas na perspectiva da área da saúde, passaram a assumir crescente importância devido às suas repercussões.

A perspectiva de Uma Só Saúde (One Health) surgiu de uma proposta de integração mais efetiva entre os aspectos de saúde envolvendo diferentes seres vivos, não só considerando os humanos. Nesta perspectiva a saúde humana e a saúde animal deveriam ter uma convergência e não uma atuação em paralelo. A Medicina Humana e a Medicina Veterinária devem ter uma maior proximidade, em termos de entendimento e de atuação. Inúmeras questões podem ser levantadas nesta nova visão. A pressão de sobrevivência das espécies animais selvagens que vivem em ecossistemas ameaçados ou em transformação, e que passam a ter maior interação com populações humanas é um destes temas. As diferentes formas de produção de animais para servirem de alimento é outro tema relevante. Da mesma forma, o aumento da quantidade e do tipo de interação  entre humanos e animais de estimação é outra questão importante desde o ponto de vista da saúde. Os animais de estimação passaram a fazer parte da vida diária e familiar, com maior interação e convívio, inclusive tendo estas relações reconhecidas como pertencentes a "famílias multiespécies". Os animais de estimação, assim como os animais de produção, começaram a receber medicamentos semelhantes aos utilizados por humanos, com repercussões ambientais e sanitárias importantes. A própria relação com microorganismos também mudou, ao invés de um enfrentamento, a nova perspectiva é de adaptação, de convivência segura e não de eliminação. A relação menos estudada, mas que é uma importante fronteira a ser ainda devidamente entendida, é da interação dos humanos com as plantas. As questões de saúde decorrentes do uso de alimentos vegetais, suas transformações e modos de produção, incluindo nutrição vegetal e controles de produção. Como fica evidente, a perspectiva da proposta de Uma Só Saúde exige uma perspectiva relacional e dinâmica de todos os fatores envolvidos, seja em âmbito individual, populacional, comunitário ou ambiental.

Em uma perspectiva linear de pensamento, cada um destes diferentes níveis de saúde - saúde individual, saúde pública, saúde coletiva,  saúde global, saúde planetária e uma só saúde - cada um seria apenas uma ultrapassagem da anterior. Porém, quando estas múltiplas perspectivas são abordadas de forma complexa,  elas não são excludentes, mas se complementam, permitindo uma visão abrangente do todo, sem perder a peculiaridade de cada uma das partes.  Todas as perspectivas são importantes de acordo com a sua adequação e relação às demais.  A abordagem complexa da Saúde permite uma visão integrada da unidade na multiplicidade.

Um conceito integrador que poderá facilitar a compreensão conjunta das questões de Bioética, entendida como complexa, com a Saúde, entendida em uma perspectiva de One Health/Uma Só Saúde, é o de One Welfare, ou Bem-estar Único. Nesta perspectiva a saúde humana, animal, vegetal e as questões ambientais passam a ter esta perspectiva de bem-estar, que fica muito coerente com a proposta de adequação das ações. One Welfare poderá ser um elemento facilitados na compreensão abrangente das relações entre Saúde e Bioética. 

Bioética, Saúde e Complexidade

A Bioética e a Saúde, quando entendidas de forma complexa, expressam esta perspectiva integradora de competências científicas e humanísticas. A saúde deve ter este novo olhar integrado, que permita construir argumentos que possam servir para explicar melhor a atual situação que estamos enfrentando. Não é uma visão de escolha, de exclusão, mas sim de inclusão de múltiplas perspectivas de entendimento. A contribuição da Bioética é a de permitir uma reflexão sobre a adequação das ações envolvidas na área da saúde, em todos os seus múltiplos significados e usos.

Referências

Hippocrates. Vol. I - Ancient Medicine. Airs, Waters, Places. Epidemics 1 and 3. The Oath. Precepts. Nutriment. Boston: Harvard University Press; 1923. 

Galeni. Methodus medendi: vel De morbis curandi. Paris: Didier Maheu; 1519.

Guyatt G. Evidence-Based Medicine. JAMA. 1992 Nov 4;268(17):2420. 

Wells HG. Manking in the making. New York: Chapman & Hall; 1903.





Texto publicado em 13/10/2023 e atualizado em 30/11/2025