quinta-feira, 5 de junho de 2025

Bioética, Saúde, Pesquisa e Pesquisa Clínica

José Roberto Goldim


A convergência nas atividades de Pesquisa Clínica de aspectos de Saúde, de Pesquisa e de  Bioética representa uma nova compreensão e uma nova abordagem aos desafios enfrentados nesta área tão importante. 

Bioética e Complexidade 

A Bioética tem como objetivo avaliar adequação das ações que envolvem a vida e o viver. A sua reflexão é abrangente e incorpora os princípios da teoria da complexidade. Esta evolução reflete o reconhecimento de que os dilemas éticos em saúde não podem ser resolvidos através de abordagens lineares ou reducionistas. 

A Bioética Complexa utiliza o conceito de "unidade na multiplicidade", onde elementos próprios mantêm sua independência, os elementos externos geram dependência e a interação de ambos se dá por relações de interdependência. A abordagem sistêmica permite compreender como diferentes níveis de complexidade - desde partículas subatômicas até biosfera - têm influências recíprocas nas decisões em saúde, na perspectiva das questões bioéticas . 

A Bioética Complexa reconhece que os sistemas sociais e biológicos operam em diferentes graus de concordância e incerteza. As situações simples são aquelas onde há grande concordância e baixa incerteza. Por outro lado, quando existe uma baixa concordância e alta incerteza é possível identificar situações caóticas. Nas variações entre estes extremos é que é possível caracterizar as situações complexas. É fundamental para uma reflexão de qualidade reconhecer estas relações. 

Expandindo os Horizontes da Saúde 

O conceito de saúde sofreu uma evolução significativa desde a metade do século XX. Desde então, a saúde deixou de ser considerada apenas como ausência de doença e passou a ter  diferentes perspectivas, tais como: 
  • Saúde Individual, com o foco no bem-estar do indivíduo; 
  • Saúde Pública, como uma proposta de políticas e intervenções com foco nas populações; 
  • Saúde Coletiva, é uma abordagem ampliada que considera a importância dos determinantes sociais; 
  • Saúde Global, é uma perspectiva que integra as questões de saúde sem considerar fronteiras e territórios de países;
  • Saúde Planetária, é um  visão ampliada para a permitir o entendimento da interdependência da saúde humana com as questões ambientais;
  • One Health, ou Uma Só Saúde, é visão integrada das dimensões humana, animal, vegetal, e dos demais seres vivos, e ambiental. 
Não existe um claro entendimento desta progressiva complexidade. Alguns autores colocam a Saúde Planetária como o nível máximo de complexidade associado à saúde, enquanto que outros entendem que One Health, entendida como Uma Só Saúde, é a proposta mais abrangente. Independentemente desta questão, o que importa é que a saúde deve ser entendida em suas múltiplas perspectivas. 

O adequado entendimento da Saúde parte do reconhecimento de que o bem-estar não se limita à ausência de doença, mas engloba as múltiplas dimensões que incluem aspectos físicos, mentais, sociais, espirituais e ambientais, na perspectiva da interação entre diferentes níveis de complexidade. Esta abordagem abrangente da Saúde gera a demanda de uma reconfiguração nas próprias práticas de pesquisa e de intervenção em saúde. É importante avaliar o impacto das novas tecnologia na saúde das pessoas, nas populações e no ambiente. Assim poderemos ter um panorama mais abrangente das intervenções e suas repercussões.

Peculiaridades da Pesquisa Clínica

A pesquisa científica se caracteriza por gerar conhecimento com rigor científico e adequação ética. O pesquisador  convida um potencial participante de um projeto de pesquisa para que aceite ou não este convite. Esta é a lógica do processo de consentimento adequado: a participação em um projeto de pesquisa não clínica é apenas uma possibilidade. 

Nas atividades de assistência o processo de consentimento para procedimentos e tratamentos se baseia na necessidade trazida ou identificada no paciente. O profissional de saúde, após verificar esta necessidade e as alternativas de tratamento, apresenta estas opções. O operador presente neste processo é a necessidade do paciente.

Na pesquisa clínica, na maioria dos projetos, o potencial participante é também um paciente. É uma conjugação da possibilidade de participar com a necessidade de tratar. O processo de consentimento, nestas situações, tem como operador a contingência, que associa a possibilidade com a necessidade.

A pesquisa clínica passou por transformações significativas desde a formalização da medicina baseada em evidências por Guyatt em 1992. A proposta de uma "próxima geração" da medicina baseada em evidências epidemiológicas reflete a necessidade de incorporar novas metodologias e perspectivas mais amplas. Novos delineamentos, como estudos de vida real, ensaios clínicos adaptativos, apresentam novos e importantes desafios para a área metodológica, da ética aplicada à pesquisa e da própria Bioética.

Muitas pesquisas clínicas ainda são realizadas na perspectiva reducionista, ou seja, geram dados baseados em amostras muito selecionadas, gerando dificuldades de generalização. A utilização adequada de delineamentos de pesquisa e de ferramentas estatísticas permitiu um avanço significativo na geração de conhecimentos aplicados à saúde. 

O reconhecimento de que existem diferentes níveis de complexidade e abrangência do próprio conceito de saúde, faz com que a pesquisa clínica contemporânea também tenha a necessidade de transcender aos seus limites tradicionais. Desta forma, existe a necessidade de incorporar:
  • coletar, avaliar e comparar dados de múltiplas espécies de seres vivos e em diferentes ecossistemas; 
  • desenvolver abordagens metodológicas que permitam captar situações e avaliações mais abrangentes e adequadas;
  • utilizar métodos mistos de avaliação, em uma perspectiva interdisciplinar; 
  • assumir a necessidade de ter abordagens mais participativas, que incluam comunidades onde estes dados foram coletados ou onde serão utilizados; 
  • necessidade de realizar reflexões éticas complexas que incluam esta interconexão entre os múltiplos elementos dos sistemas considerados. 
Existe um entendimento inadequado de que as novas ferramentas de inteligência artificial substituirão a pesquisa clínica tradicional.  A incorporação deste novas ferramentas de busca, análise, consolidação e decisão baseadas em informações já geradas por pesquisas anteriores não substitui a investigação criativa. A inteligência artificial é um novo olhar de dados já existentes. Caso a pesquisa passe a basear-se apenas nas novas aplicações de inteligência artificial teremos somente uma reiteração de conhecimentos já existentes. A pesquisa clínica que gera novos conhecimentos deve ser mantida e aprimorada. 

Síntese e Perspectivas Futuras 

Pesquisa Clínica, ao integrar as perspectivas da Bioética Complexa, da Saúde e da Pesquisa em seus múltiplos entendimentos, não é apenas uma sobreposição de áreas, mas sim uma busca de uma síntese genuína que: 
  • Reconheça a interdependência entre a saúde, a ética e a geração de conhecimentos; 
  • Utilize o referencial da complexidade, que permita uma abordagem sistêmica e integrada; 
  • Promova a integração interdisciplinar de saberes; 
  • Valorize a multiplicidade de perspectivas considerando as  diferentes formas de geração e utilização do conhecimento. 
Esta abordagem complexa e integrada apresenta alguns desafios importantes, tais como: 
  • Metodológicos: Desenvolvimento de ferramentas de pesquisa que permitam abordar a complexidade envolvida; 
  • Éticos, com a criação e utilização de referenciais éticos adequados para problemas multidimensionais; 
  • Práticos com a implementação de intervenções que considerem, simultaneamente, os múltiplos níveis envolvidos na pesquisa 
  • Educacionais com a formação baseada em pensamento crítico, que permita ter esta compreensão nas atividades profissionais.
Conclusão 

A convergência entre Bioética Complexa, da Saúde, na perspectiva de One Health e a Pesquisa Clínica representa mais que uma tendência acadêmica - é uma necessidade para enfrentar os desafios de saúde do século XXI. Desde a ocorrência de pandemias até as consequências da emergência climática, os problemas de saúde contemporâneos demandam abordagens que reconheçam a interdependência fundamental entre sistemas humanos, animais e ambientais. 

Esta visão integrada não apenas amplia a nossa compreensão teórica, mas busca oferecer ferramentas práticas e adequadas ao desenvolvimento de projetos de pesquisa com maior efetividade e com adequação ética. Este é o desafio que se apresenta. O futuro da pesquisa em saúde, e da pesquisa clínica em particular, depende da nossa capacidade de reconhecer a complexidade presente em todos os níveis de abordagem da saúde, da pesquisa e da própria avaliação dos aspectos bioéticos envolvidos. 

Referências 





Material de Apoio - Apresentação 



Texto postado originalmente em 05/06/2025 e editado em 08/06/2025.