sábado, 16 de maio de 2020

COVID-19 e a Ética da Vontade

José Roberto Goldim

O referencial teórico da Ética baseada na Vontade, proposto Pedro Abelardo, no século 12, pode ser associado à reflexão de várias ações de assistência e pesquisa realizadas na vigência da pandemia da COVID-19. 

Pedro Abelardo buscou ter o entendimento do mundo que cercava por meio da razão. Um dos resultados de suas reflexões foi que o valor moral de uma ação depende tanto da intenção quanto do consentimento associados à mesma. São as manifestações da vontade das pessoas que devem ser levadas em conta: a intenção de quem faz a ação e o consentimento de quem sofre a ação. É, talvez, a base de toda a justificativa para a teoria do processo de consentimento, tão discutido na Bioética atual.

Pedro Abelardo, ao analisar o valor moral associado a uma ação realizada por uma pessoa, deslocou  o foco da ação em si para a intenção associada. Isto fica evidente na sua proposta de que "mesmo quando uma ação pode ser entendida como errada, o que vale é a intenção associada". 

É com base em propostas como esta, que foi possível, posteriormente, avaliar a questão da responsabilidade associada à ação em seus aspectos subjetivos e objetivos. A intenção associada à ação é um dos aspectos subjetivos, enquanto que as consequências decorrentes da ação são objetivas. Segundo Thadeu Weber, " a importância da intenção, por exemplo, está claramente expressa na distinção jurídica entre ato doloso e ato culposo, ato com ou sem intenção".

Por outro lado, para garantir o valor moral associado a ação, não basta a intenção ser adequada, a pessoa que sofre a ação deve consentir para que isto ocorra. Pedro Abelardo estabeleceu dois componentes para avaliar a validade de um consentimento: a informação e a liberdade. Ele afirmou que "não comete erro quem é forçado a fazer algo ou o fez por ignorância". Ou seja, para que um consentimento seja válido ele deve basear-se em informações corretas e acessíveis, assim como na liberdade para escolher dentre as alternativas existentes. Paul Ricouer, que retomou a Filosofia da Vontade, enfatizou que "consentir é se entregar, se render ao outro", que "consentir é tomar sobre si, assumir, fazer seu". 

Tanto na perspectiva de quem faz como de quem sofre a ação, é importante caracterizar a diferença entre um ato voluntário e um ato por necessidade. A ação voluntária está aberta às alternativas, é ter a liberdade de escolher uma dentre tantas possibilidades. Por outro lado, a ação por necessidade é premida pelas circunstâncias. Muito depois de Abelardo, já no século 20, a lógica modal estabeleceu claramente a diferença entre necessidade e possibilidade, a primeira como sendo um operador forte e a segunda um operador fraco. 

Pedro Abelardo afirmou que a beneficência, entendida como fazer o bem e evitar o mal, "é dar suporte às necessidades das pessoas". 

Nas atividades assistenciais, o paciente apresenta uma necessidade, que o profissional de saúde busca atender por meio ações. O paciente, em contrapartida, tem que consentir com a realização das mesmas, quando possível. O profissional de saúde deve basear a realização de suas ações no atendimento destas necessidades: esta deve ser a sua intenção primeira. É a intenção de fazer o bem que justifica as ações realizadas por um profissional de saúde em situações de emergência, ainda que sem o seu consentimento. É justamente a beneficência associada a situação de extrema necessidade do paciente, que garante o valor moral associado à ação do profissional. A ausência do consentimento amplia a necessidade de avaliar a adequação da intenção associada à ação.  Estas situações podem ocorrer no atendimento de pacientes em Serviços de Emergência e em Unidades de Tratamento Intensivo.

Quando a intenção não é no sentido de atender aos melhores interesses do paciente, mas sim de buscar outros objetivos, sejam eles quais forem, é que permite caracterizar a possibilidade de um conflito de interesses por parte do agente da ação. Estes interesses secundários podem ser associados, dentre outros, a aspectos econômicos, políticos ou de outras crenças associadas. 

Por outro lado, desde o ponto de vista do consentimento, também podem haver inadequações associadas a restrições de liberdade ou de informações.  A pressão de oferecer pagamento associado à participação em uma pesquisa pode reduzir a liberdade de escolha de pessoas, especialmente nas que já têm vulnerabilidade econômica. Isto está ocorrendo em vários projetos de pesquisa de fase 1 para testar a segurança de vacinas para o SARSCoV-2. Esta possibilidade é permitida no marco regulatório de vários paises para as pesquisas envolvendo seres humanos. Da mesma forma, a falta de informações ou a distorção de dados, também comprometem a validade da obtenção do consentimento. Apresentar benefícios não comprovados, ou ocultar riscos já verificados, fazem com que o consentimento seja baseado em informações inadequadas. 

O pensamento de Pedro Abelardo parte da intenção de quem faz a ação para após incluir o consentimento de quem a sofre. Esta ênfase na intenção associada à ação é que fez com que alguns outros autores denominassem este referencial teórico como Intencionalismo. Esta denominação acabou distorcendo a perspectiva original que aliava à intenção ao consentimento na avaliação do valor moral de uma determinada ação. 

Caracterizar o consentimento como um ato de "entrega", por parte de quem sofre a ação,  permite verificar que o valor deste consentimento depende inerentemente da intenção de quem irá realizar a ação. Este ato de "entrega" é baseado no entendimento, por parte de quem sofre a ação, de que a intenção, de quem a faz, é boa, que visa atender a uma necessidade de quem irá consentir. Se a intenção não for esta, o consentimento, mesmo tendo sido dado, fica prejudicado. O consentimento não isenta a responsabilidade de quem faz a ação. Ao contrário, ressalta a importância associada à realização da ação ao ter que demonstrar, mesmo antes da mesma ser realizada, que a sua intenção é adequada. 

O pensamento de Pedro Abelardo merece ser relembrado pela sua atualidade e pela sua importância associada ao viver, ou seja, às relações estabelecidas entre todos nós. 

Para saber mais



Weber T.. Ética e Filosofia do Direito - Autonomia e Dignidade da pessoa humana. Petrópolis: Vozes; 2013.

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