terça-feira, 10 de outubro de 2023

"Martha’s Rule" e a Importância da Relação dos Profissionais da Saúde com Pacientes e Familiares


José Roberto Goldim

Em outubro de 2023 o British Medical Journal publicou uma opinião sobre a questão do direito à segunda opinião por parte do paciente ou dos seus familiares.

A relação profissional-paciente-familiares vem sendo ressignificada desde os anos 1970. Inúmeros autores propuseram que a relação deveria ser mais aberta, permitindo uma efetiva troca de conhecimentos, opiniões, valores, desejos e crenças associadas. Esta troca de informações é que permite o estabelecimento do vínculo de confiança, que é a base desta interação efetiva.


Nesta nova perspectiva, as decisões não devem ser baseadas apenas na preservação da vida, da sobrevivência biológica do paciente, mas também no seu melhor interesse em termos biográficos, levando em conta o seu bem-viver. 


Em nenhum momento houve a proposta de substituir o conhecimento e a prática profissional, mas sim agregar estas outras dimensões ao processo de tomada de decisão.


Inúmeras tentativas de melhorar esta relação foram propostas em diferentes lugares do mundo e implantadas em muitos hospitais, tais como os modelos de “cultura justa”; de reconhecer a importância do “dever de candura” - entendido como dever de estar aberto e de ser honesto em suas posições; do processo de “tomada de decisão compartilhada”; das “Cartas dos Direitos do Paciente”. Todas estas tentativas visam humanizar as relações entre todos os envolvidos, buscando dar voz aos pacientes e familiares.


A própria criação das consultorias de Bioética Clínica e de outras propostas como o C4C - Call 4 Concern, implantado no Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido para os pacientes críticos, podem ser enquadrados neste mesmo tema. Ambas propostas, consultorias e C4C, permitem que outros profissionais possam ser chamados para esclarecer e auxiliar os pacientes, familiares e profissionais nos processos de tomadas de decisão.


A proposta da “Martha’s Rule”, ou seja, da Regra de Martha, surgiu em 2022, como decorrência de uma situação assistencial específica. Em 2021, uma paciente de 14 anos, Martha Mills, foi internada por um trauma de pâncreas, decorrente de uma queda de bicicleta, em um hospital de Londres. A paciente teve o seu estado de saúde progressivamente agravado, culminando com a sua morte. A sua mãe não se conformou com o atendimento assistencial recebido e  solicitou inúmeras vezes que a sua filha fosse avaliada por outros profissionais, com a finalidade de obter uma segunda opinião. A sua solicitação não foi atendida. 


A mãe de Martha, Merope Mills, que é editora do jornal inglês The Guardian, começou uma campanha com a finalidade de garantir o direito de segunda opinião aos pacientes e familiares. Esta campanha culminou, em outubro de 2023, com a publicação de um artigo de opinião no British Medical Journal. Neste seu artigo ela  descreveu o que ocorreu e pediu que este direito seja efetivado em todos os hospitais do Reino Unido.


Além da não realização da segunda opinião, ela também descreveu outras situações, tais como o não registro em prontuário das interações de médicos assistentes, da falta de cuidados aos finais de semana e, especialmente, no descaso em ouvir as suas questões e opiniões. Posteriormente, o King’s College Hospital assumiu que houve uma negligência no cuidado desta paciente.


A “Martha’s Rule” estabelece a garantia do paciente em ter uma segunda opinião, em ser ouvido em suas necessidades.


No Brasil esta situação já é garantida pelo Código de Ética Médica desde a sua edição de 1988. O Art. 64 deste Código estabelecia que o médico não pode “Opor-se à realização de conferência médica solicitada pelo paciente ou seu responsável legal”. Na versão atualmente vigente do Código de Ética Médica, publicada em 2018, esta situação foi melhor esclarecida. O Art. 39 veda ao médico “Opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião solicitada pelo paciente ou por seu representante legal”.


A garantia do direito do paciente e de seus familiares em ter uma segunda opinião é clara, assim como o estabelecimento do dever dos profissionais em respeitar esta possibilidade, já existem e estão devidamente documentadas. A dificuldade é tornar estas possibilidades em ação, é permitir o efetivo exercício destes direitos. Não é uma situação que dependa da existência de um marco regulatório, mas sim de uma cultura institucional e social que inclua os pacientes como participantes ativos em todo o seu processo de cuidado. 


Desde a antiguidade, a relação de confiança entre o médico e o paciente é reconhecida como fundamental. Hipócrates já afirmava que o médico deve informar o paciente adequadamente sobre a sua condição de saúde e dos prognósticos. Ele afirmava que este processo é fundamental para gerar a confiança necessária à preservação da adequada relação médico-paciente.


Resumindo, a comunicação efetiva, o registro adequado da evolução do quadro de saúde, a escuta ativa e empática, além da consideração abrangente dos múltiplos aspectos de vida e viver de todos os envolvidos na relação, são as condições que permitem uma relação entre pessoas que possa gerar uma confiança que se preserva, mesmo em situações críticas. É garantir que a voz do paciente será ouvida.


Bibliografia


Mills M. Martha’s rule: a hospital escalation system to save patients’ lives. BMJ. 2023 Oct 9;(October):p2319. Disponível em: https://www.bmj.com/lookup/doi/10.1136/bmj.p2319


Curtis P, Wood C. Marthas’s Rule: a new policy to amplify patient voice and improve safety in hospitals. DEMOS [Internet]. 2023;(September). Disponível em: https://demos.co.uk/research/marthas-rule-a-new-policy-to-amplify-patient-voice-and-improve-safety-in-hospitals/


Bittencourt ALP, Quintana AM, Goldim JR, Wottrich LAF, Cherer E de Q. A voz do paciente: por que ele se sente coagido ? Psicol em Estud. 2013;18(1):93–101. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pe/a/wCm9rV8NMzyJcWj9MPqZpmQ/

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