sábado, 15 de fevereiro de 2025

Inteligência Artificial e Saúde

 José Roberto Goldim


A Percepção da Opinião Pública sobre a Inteligência Artificial

Em 2024, em uma pesquisa de opinião pública, 73% das pessoas de 20 diferentes países disseram que compreendiam o que é Inteligência Artificial (IA), com uma variação de 53% no Japão e 80% na Indonésia e em Portugal. No Brasil a compreensão declarada foi de 76%.

Foram questionadas, também, a aprovação ou não para nove situações específicas de atendimento à saúde. Tanto no Brasil como nas respostas da amostra como um todo, a maior aprovação foi para os procedimentos envolvendo diagnósticos por imagem. A prescrição de medicamentos foi a atividade que teve a menor aceitação nos grupos estudados (tabela 1). É sempre bom relembrar que estas pesquisas, mais do que a opinião pública, avaliam a opinião publicizada pelas pessoas, ou seja, podem ocorrer viéses nas respostas em função de múltiplos fatores associados.

Tabela 1 - Resultados de uma pesquisa de opinião pública envolvendo 23882 pessoas de 23 diferentes países, sendo 1121 no Brasil, em maio de 2024.

Área
Brasil
n=1121
Global
n=23882
Aprova
(%)
Desaprova
(%)
Aprova
(%)
Desaprova
(%)
Diagnósticos por imagem641559 (38-74)18 ( 6-30)
Cirurgia robótica581951 (40-63)23 (12-38)
Triagem de paciente572047 (29-70)25 ( 8-40)
Recomendar Tratamentos571851 (33-77)22 ( 8-35)
Robôs acompanhantes542153 (36-75)26 ( 6-32)
Dispensar medicamentos512448 (31-62)24 ( 8-34)
Decidir tratamento482446 (31-62)25 (12-34)
Recomendar medicamentos472746 (33-63)25 (12-34)
Prescrever medicamentos433146 (28-68)25 ( 7-38)

Global Public Opinion on Artificial Intelligence (GPO-AI). Schwartz Reisman Institute / University of Toronto (May 16, 2024). 


As Origens da Inteligência Artificial

A Inteligência Artificial se baseia no uso de computadores e sistemas que permitem realizar inúmeras tarefas e atividades que simulam o funcionamento do cérebro humano. Inúmeras contribuições de diferentes pesquisadores permitiram construir as bases do hoje denominamos de Inteligência Artificial.

Goldim JR. Linha do Tempo: "Do ábaco à Inteligência Artificial". Sutori, 2024. 

A expressão Inteligência Artificial foi utilizada pela primeira vez em 1955, em um projeto de pesquisa, na Universidade de Dartmouth, nos Estados Unidos. Os quatro autores -John McCarthy, Marvin L. Minsky, Nathaniel Rochester e Claude Shannon -  utilizaram esta expressão - Inteligência Artificial - como alternativa para Cibernética, que era a mais utilizada naquele momento. Ao mudança da denominação foi uma maneira de se independizar do pensamento vigente, naquela época, para a abordagem de alguns problemas na área da computação.  O objetivo do projeto era discutir, ao longo de um seminário de dois meses, sete pontos principais:  

  1. uma calculadora automática pode ser programada para simular o funcionamento de uma máquina?
  2. um computador ser programado para utilizar uma linguagem?
  3. um conjunto de "neurônios hipotéticos" podem ser arranjados para formarem conceitos?
  4. é possível desenvolver um teoria do tamanho do cálculo?
  5. é possível o auto-aprimoramento das próprias máquinas?
  6. é possível ter abstrações realizadas pelas máquinas?
  7. os computadores têm capacidade de lidar com aleatoriedade e criatividade? 

McCarthy J, Minsky ML, Rochester N, Shannon CE. A Proposal for the Dartmouth Summer Research Project on Artificial Intelligence. Dartmouth; 1955, Aug, 31. 

 

Definição de Inteligência Artificial

A UNESCO define que:

"Os sistemas de IA são tecnologias de processamento de informação que integram modelos e algoritmos com capacidade de aprender e de realizar tarefas cognitivas que conduzem a resultados como previsão e tomada de decisão em ambientes materiais e virtuais. (...) Os sistemas de IA são concebidos para funcionar com vários graus de autonomia, através da modelagem e representação do conhecimento,  da exploração de dados e do cálculo de correlações"

UNESCO. Recommendation on the Ethics of Artificial Intelligence. Paris: Unesco; 2021. 

Outra definição  é de que a Inteligência artificial 

"é o estudo dos sistemas que agem de um modo que, a um observador qualquer, pareceria ser inteligente. (...)  Inteligência Artificial envolve a utilização de métodos baseados no comportamento inteligente de humanos e outros animais para solucionar problemas complexos". 

Silveira SR, DeVit ARD. Inteligência Artificial: os computadores podem ser criativos? In: Fernandes MS, Caldeira CM de G, editors. Inteligência Artificial e Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: GZ; 2023:7–30.

Russel e Norvig, que escreveram o livro texto que é utilizado em mais de 1500 universidades, definem que 

"o campo da inteligência artificial, ou IA, se preocupa não apenas em compreender, mas também em construir entidades inteligentes—máquinas que podem processar como agir de forma efetiva e segura em uma ampla variedade de novas situações".

Russell SJ, Norvig P. Artificial Intelligence: A Modern Approach. 4th ed. Hoboken, NJ: Pearson; 2024. 


A Classificação da Inteligência Artificial

A Inteligência Artificial, que não tem uma classificação muito clara e uniforme entre diferentes autores e instituições. As duas classificações mais usualmente utilizadas são pelos critérios de capacidade e de finalidade.

classificação por capacidade parte da comparação entre a inteligência humana, tomada como controle, com a das máquinas. São utilizadas três categorias: fraca, forte e  superinteligente.  

A Inteligência Artificial Fraca ou Restrita, denominada de Narrow em inglês (ANI) é aquela que realiza tarefas e funções específicas. Todas as ferramentas de Inteligência Artificial atualmente disponíveis estão neste estágio. 

A Inteligência Artificial Forte o Geral, General, em inglês (AGI), já possibilita simular atividades intelectuais humanas de forma independente. A Prova de Turing é que poderá identificar o início deste estágio, quando não mais será possível diferenciar os resultados humanos e de máquinas. 

A Inteligência Artificial classificada como Superinteligent em inglês, ou Superinteligente, talvez fosse melhor traduzida por Suprainteligente, pois estará além da inteligência humana. É neste estágio teórico que supostamente as máquinas ultrapassarão a inteligência humana.

Fernandes MS, Goldim JR. Aspectos éticos, legais e sociais associados à Inteligência Artificial. In: Fernandes MS, Caldeira CM de G, editors. Inteligência Artificial e Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: GZ; 2023:31–44. 

A classificação por finalidade, ou purpose em inglês, tem como objetivo verificar a abrangência das tarefas realizadas pelas ferramentas de inteligência artificial, que pode ser específica ou geral. A utilização destes mesmos termos em duas classificações pode gerar confusões e ambiguidades entre elas próprias, dificultando a sua compreensão. 

A Inteligência Artificial Específica, ou Narrow em inglês, é aquela na qual os modelos ou sistemas informatizados tem finalidades restritas. São as ferramentas dedicadas a algumas tarefas, que podem ser complexas, mas que ficam restritas em termos de uso. As ferramentas de tratamento de imagem, tanto na publicidade, no cinema e na medicina, são exemplo disto, assim as aplicações para fins financeiros e os sistemas autônomos de direção de veículos. Na área de armamentos, os sistemas de armas letais autônomas, LAWS - Lethal Autonomous Weapon Systems, em inglês, também tem esta classificação. 

A Inteligência Artificial Geral, ou general em inglês, é a utilizada pelos modelos e sistemas com finalidades amplas, tais como os chatbot que utilizam modelos generativos. Estes modelos de grande abrangência de linguagem, ou large language models (LLM) em inglês, conseguem entender e gerar conteúdos de linguagem que são interativos. Os melhores exemplos deste tipo de inteligência artifical geral de grande abrangência são as ferramentas ChatGPT, Gemini, Claude AI, Perplexity, o1 e DeepSeek, entre outros. São sistemas poderosos que tem uma excelente interação com pessoas, mas que podem apresentar problemas de conteúdo nas suas mensagens geradas. 

Bengio Y. International AI Safety Report: The International Scientific Report on the Safety of Advanced AI. London: UK Government; 2025:27.

A classificação por criatividade ou originalidade, segundo Denis Hassabis, premio Nobel e CEO do Google DeepMind, pode ser um elemento para caracterizar o salto de capacidade da Inteligência Artificial Restrita para a Geral.  O nivel de criatividade básica apenas interpola dados, pode encaminhar soluções que representem a média dos conhecimentos existentes, mas se baseia apenas no que já é existente. O nível de criatividade intermediário é o que já é capaz de extrapolar, ou seja, é capaz de criar algo novo a partir de um conjunto de dados já disponíveis. Extrapolar é ir além do já conhecemos. O nível avançado de criatividade é o que permite a invenção, que é criar algo totalmente inovador, com grande grau de abstração.



O Desempenho da Inteligência Artificial

É inegável que as máquinas apresentam maior volume de armazenamento de informações e maior velocidade na realização de cálculos matemáticos, mas isto não necessariamente representa melhor desempenho cognitivo.

Um pesquisador dos Países Baixos testou diferentes ferramentas de Inteligência Artificial utilizando testes de QI desenvolvidos para seres humanos. Utilizou o teste de QI padrão desenvolvido pela Mensa da Noruega. 

Em setembro de 2024, a maioria das ferramentas teve um desempenho inferior a QI=80, indicando um desempenho que poderia ser melhor. Nesta avaliação apenas o o1, da Open AI, se aproximou de QI=100, que seria considerado Bom. Um dia após, a maioria das ferramentas já tinha um desempenho na faixa entre 80 e 100 pontos. o o1 já tinha atingido 120 pontos, que é considerado um resultado Excelente.

Em janeiro de 2025 foi feita uma nova avaliação, já incluindo o DeepSeek. Esta nova ferramenta teve um desempenho de cerca de 100 pontos. Este desempenho foi semelhante ao Gemini Advanced, com ambos superando todas as demais ferramentas, exceto o o1, que manteve o seu resultado ao redor dos 120 pontos. 



Este tipo de avaliação, contudo, tem alguns importantes problemas associados:
  1. Estes testes foram desenvolvidos para avaliar a cognição humana, e ainda recebem críticas quanto a sua validade;
  2. Ainda não se tem uma clara definição e diferenciação da inteligência humana e da inteligência das máquinas;
  3. As máquinas tem claros viéses de aprendizado, em função dos dados utilizados para o seu treinamento prévio.
Uma outra forma de medir o desempenho das máquinas é avaliar outras características como a quantidade e qualidade das informações e a empatia associada à comunicação. Em 2023 foi publicado um artigo no periódico JAMA, que comparou as respostas dadas por médicos e pelo ChatGPT,. versão 2022, a questionamentos encaminhados por pacientes por meio de sites de perguntas para médicos. Foram selecionadas 195 interações por escrito de pacientes e médicos e as mesmas questões encaminhadas foram submetidas ao ChatGPT. Um painel de especialistas avaliou as respostas, sem identificação da sua origem ser do médico ou da máquina, quanto a qualidade, quantidade e empatia. Em todas estas características as respostas do ChatGPT foram avaliadas melhor que a dos médicos, de forma estatisticamente significativa.


Estes resultados devem ser avaliados em seus aspectos mais amplos e não apenas em termos de desempenho pontual destas variáveis. A melhor maneira de avaliar é, talvez, reconhecer aspectos que devam ser aprimorados na comunicação entre médicos e pacientes, ao invés de fazer a proposta de substituição de pessoas por máquinas. É importante relembrar que os conhecimentos utilizados pelas máquinas, assim como os algoritmos e programas que as fazem funcionar, foram desenvolvidos por seres humanos.


Os Benefícios da Inteligência Artificial

Os benefícios resultantes do uso da Inteliegência Artificial são inúmeros e já estão sendo incorporados à rotina diária das pessoas, em maior ou menor grau. É possível destacar:

  1. Melhor processamento de informações não estruturadas
  2. Análises de grandes volumes de dados
  3. Consolidação de conhecimentos
  4. Interação com linguagem natural
  5. Facilidade de tradução de textos e linguagem verbal
  6. Produção audiovisual
  7. Reconhecimento de imagens
  8. Precisão de movimentos
  9. Padronização de processos


Os Riscos da Inteligência Artificial

Os riscos associados à Inteligência Artificial também são inúmeros. Muitos deles são fáceis de identificar e prever e outros apresentam enormes desafios par a sua prevenção. Uma breve lista de riscos inclui aspectos referentes a:
  1. Privacidade e confidencialidade 
  2. Viéses algorítmicos (GIGO)
  3. Origem não confiável dos dados (GIGO)
  4. Associações espúrias (alucinações)
  5. Falta de avaliação prévia à liberação das ferramentas
  6. Má intenção associada ao uso das ferramentas (dolo)
  7. Sistemas autônomos de tomada de decisão (responsabilidade)
  8. Arrogância tecnológica - Infocracia (Han, 2022)
  9. Estupidez artificial” e “Burrice natural


Os Aspectos Éticos, Legais e Sociais da Inteligência Artificial

Em um recente estudo publicado, o setor de Cuidados à Saúde foi um dos três como maiores barreiras éticas e legais associadas. Desta forma, é fundamental que seja feita uma reflexão sobre os aspectos éticos e regulatórios associados a Inteligência Artificial em todos os estágios de desenvolvimento.



Existem inúmeros documentos refletindo ou estabelecendo normas de como entender e enfrentar os problemas decorrentes da Inteligência Artificial. 

Em 2021 a UNESCO publicou as suas recomendações sobre a Ética da Inteligência Artificial que baseavam quatro valores centrais:
  1. Respeito, proteção e promoção dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e da dignidade humana;
  2. Prosperidade ambiental e ecossistêmica;
  3. Garantir diversidade e inclusão; e
  4. Viver em sociedades pacíficas, justas e interconectadas.


A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também divulgou um documento sobre princípios para a Inteligência Artificial. O enfoque deste documento não é exatamente o mesmo da UNESCO, ele apresenta uma perspectiva mais operacional. Os cinco valores que embasaram as reflexões foram:
  1. Desenvolvimento, inclusivo e sustentável, e bem-estar;
  2. Direitos humanos e valores democráticos, incluindo justiça e privacidade;
  3. Transparência e explicabilidade;
  4. Robustez, segurança física e patrimonial; e
  5. Responsabilidade pelos resultados.


O Senado Federal brasileiro, ao longo de 2023 e 2024, discutiu o Projeto de Lei 2338/2023 que estabelece um marco legal para o uso da Inteliegência Articial no Brasil. Este projeto já foi aprovado no Senado Federal em 18/12/2024, e aguarda tramitação na Câmara dos Deputados. É um projeto de aborda estas questões de forma contemporânea e dentro do enquadramento legal que está sendo discutido em muitos outros países.



A Europa já aprovou, em junho de 2024, o seu regulamento para a Inteligência Artificial, é um documento que todos os países vinculados à Europa deverão discutir internamente e adequar as suas legislação nacionais para atenderem aos padrões estabelecidos.


Mais recentemente, em 28 de janeiro de 2025, o Vaticano publicou um documento elaborado por dois órgãos internos: o Discatério da Fé e o Dicastério da Cultura e da Educação. O documento, intitulado de Antigo e Novo faz uma reflexão moral e religiosa sobre as questões envolvidas com a Inteleigência Artificial.



É importante que a abordagem ética seja feita de forma multidimensional, e não apenas princípios. A maioria dos documentos que estabelecem reflexões éticas se limitam ao estabelecimento de princípios, que são recomendações.

A existência de uma marco regulatório é fundamental, mas ele deve ser precedido e  monitorado de uma reflexão ética continuada. Sem esta reflexão poderemos ter muitos documentos regulatórios, porém com pouca ação prática efetiva. 

Atualmente, temos muitas gerações com diferentes culturas e perspectivas convivendo. Podem ocorrer diferentes percepções a respeito da adequação ou não de práticas envolvendo Inteligência Artificial em grupos de “imigrantes digitais” e de “nativos digitais”. Estas diferenças culturais e geracionais ainda estão sem dados que permitam verificar a sua importância na condução de políticas a respeito desta área tão importante.

Fernandes MS, Goldim JR. Artificial Intelligence and Decision Making in Health: Risks and Opportunities. In: Sousa Antunes, H., Freitas, P.M., Oliveira, A.L., Martins Pereira, et al editor. Multidisciplinary Perspectives on Artificial Intelligence and the Law. Cham, Switzerland: Springer; 2024:187–204. 

Perspectivas Futuras na Saúde

A utilização de ferramentas de Inteligência Artificial na área da Saúde deve levar em conta as seguintes perspectivas futuras:

  • Benefício potencial nas áreas de diagnóstico, com mais precisão e precocidade; de tratamento, com maior especificidade e eficácia; e de gestão dos pacientes e recursos;
  • Risco de reversão, sendo fundamental evitar a “estupidez artificial, quando a Inteligência artificial se converte em uma ferramenta rígida e ineficaz, incapaz de se adaptar a situações complexas;
  • Necessidade de discutir e estabelecer padrões éticos e legais que garantam o uso da inteligência artificial, de maneira  justa e responsável, especialmente na área da saúde.


O que nos faz humanos

É sempre importante lembrar que o futuro da Inteligência Artificial ​​não se refere apenas aos algoritmos – refere-se aos valores que codificamos neles. e que o futuro da humanidade não depende apenas de ações individuais, mas sim de discussões e reflexões que envolvam as diferentes comunidades e países.

As máquinas não foram feitas para entender uma mentira.

Adela Cortina. Ética o ideología de la inteligencia artificial? El eclipse de la razón comunicativa en una sociedad tecnologizada. Madrid: Paidós; 2024.

Apesar de todo o seu desempenho computacional, o computador é burro, na medida em que lhe falta a capacidade de hesitar.

Byung-Chul Han. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes; 2015:54. 

Como queremos viver? O que há de humano no ser humano, de natural na natureza, que precisa ser protegido? (...) Essas perguntas antigas-novas podem ser jogadas de um lado para o outro entre a vida cotidiana, a política e a ciência. No estágio mais avançado do processo civilizatório, elas voltam a ocupar uma posição prioritária na agenda – também, ou precisamente, em tempos em que estão envoltas no disfarce de fórmulas matemáticas e controvérsias metodológicas. 

Ulrich Beck. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: 34, 2011.




segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Comitê de Bioética Clínica do HCPA: História, Atuação e Desafios

 José Roberto Goldim


O Comitê de Bioética Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) tem desempenhado um papel essencial na análise e orientação de questões éticas na prática clínica desde sua criação. Seu histórico remonta a 1993, quando foi estabelecido como um órgão consultivo e propositivo dentro da Diretoria Médica do hospital. Desde então, o comitê expandiu sua atuação e consolidou-se como referência na área. O próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) quando publicou a Recomendação CFM 08/2015 incentivando a participação dos médicos em Comitês de Bioética, em sua Exposição de Motivos, reconheceu o pioneirismo nacional do Comitê de Bioética do HCPA.

Histórico e Desenvolvimento

A trajetória da bioética clínica no HCPA envolve diversas iniciativas ao longo dos anos. Em 1993, foi criado o Programa de Atenção aos Problemas de Bioética, vinculado à Diretoria Médica do HCPA. Em 2015, este Programa passou a ter a denominação de Comitê de Bioética Clínica.  

As consultorias de Bioética Clínica são prestadas pelos consultores vinculados ao Núcleo de Bioética Clínica, igualmente vinculado à Diretoria Médica do HCPA. As consultorias vinculadas às demandas individuais de pacientes, ou de questões institucionais, tiveram início em 1994. Em 1997, foram iniciados os rounds semanais de Bioética Clínica na UTI Pediátrica, atividade que se mantém até os dias de hoje. 

Além disso, a partir de 1995, foram oferecidas seis diferentes disciplinas sobre temas de Bioética, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas da UFRGS. Assim como outras atividades de formação para profissionais de saúde, envolvendo temas como a comunicação em situações difíceis, Estas atividades têm contribuído para a disseminação de conhecimentos e boas práticas na área da Bioética Clínica.

A Atuação do Comitê de Bioética Clínica

O Comitê de Bioética Clínica realiza reuniões mensais desde 1993, somando até o momento 295 encontros. Sua composição é multiprofissional e interdisciplinar, contando com 29 membros de 12 diferentes profissões de diversas áreas de conhecimento, tais como Medicina, Psicologia, Direito, Serviço Social, Enfermagem e outras.

O Comitê de Bioética Clínica serve como uma instância de reflexão sobre a adequação bioética de práticas realizadas na instituição. As principais demandas do comitê envolvem temas como privacidade e confidencialidade; situações de violência envolvendo profissionais de saúde como vítimas; questões de início e final de vida; limites de atuação dos profissionais de saúde; atendimento a demandas específicas de grupos minoritários, entre outras 

Além das atividades internas, o Comitê tem auxiliado inúmeras instituições de saúde, incluindo hospitais universitários, hospitais públicos e privados, e unidades especializadas, a constituírem comitês de bioética. Até o presente momento, 12 instituições, de diferentes locais do Brasil, já foram atendidas em suas demandas.

A Atuação do Núcleo de Bioética Clínica

As consultorias de Bioética Clínica tem mantido uma demanda frequente. Desde 1994, foram atendidas e registradas 6.853 consultorias, sendo 454 apenas no ano de 2024. Os temas mais frequentes abordados nestas consultorias são demandas na área de conflitos, envolvendo as equipes assistenciais e os ocorridos entre familiares; a comunicação entre as pessoas envolvidas; os processos de tomada de decisão, incluindo o processo de consentimento e as diretivas antecipadas de vontade; e as questões sociais presentes nas situações. Os dados das consultorias estão disponíveis no Painel das Consultorias de Bioética Clínica do HCPA.

As atividades educacionais do Núcleo de Bioética Clínica incluem a realização semanal de um round de Bioética Clínica, com a participação regular dos consultores e dos residentes da Psiquiatria Forense. Nestas atividades também participam outros residentes que estão com estágios em Bioética. Com os residentes médicos é realizado um seminário semanal para discutir questões teóricas envolvidas no atendimento das consultorias. Os residentes multiprofissionais tem uma atividade mensal para discussão de temas de Bioética. De forma periódica, são oferecidos cursos de pequena duração para a comunidade de profissionais da instituição sobre temas específicos, como os que envolvem habilidades de comunicação.

Desafios e Perspectivas

Entre os desafios atuais, destaca-se a implantação do credenciamento de consultores em Bioética Clínica, previsto para o primeiro semestre de 2025. Está prevista a oferta de um novo Curso de Formação de Consultores, internos e externos à instituição, visando uma capacitação mais aprofundada para os profissionais que queiram realizar este tipo de atividade.

Outros pontos prioritários que merecem ser objeto de reflexão para aprimorar as atividades de Bioética Clínica, incluem:

  • o aperfeiçoamento da comunicação verbal e escrita, especialmente nos registros em prontuário dos pacientes;
  • o melhor entendimento dos processos de tomada de decisão em Bioética;
  • o desenvolvimento de habilidades para lidar com conflitos entre familiares e equipes de profissionais de saúde;
  • o entendimento da importância da diversidade de referenciais éticos a serem utilizados na elaboração das reflexões e pareceres, mantendo uma perspectiva de argumentação baseada na complexidade inerente às questões da área da saúde.

As atividades do Comitê de Bioética Clínica do HCPA têm contribuído para um cuidado mais humanizado e responsável, reconhecendo as inúmeras vulnerabilidades presentes em todas as situações que ocorrem na área da saúde.

domingo, 19 de janeiro de 2025

Ficção científica ou Ciência fictícia: o risco de uma brincadeira

José Roberto Goldim
Márcia Santana Fernandes

Se o Prof. Ubaldo Kanflutz, reitor da Universidade de Ciências Fictícias da Sbórnia, tivesse feito esta publicação que vamos comentar, tudo estaria adequado, pois é uma apresentação teatral que tem personagens e entidades fictícias. Mas, quando isto ocorre com uma aparência de ciência verdadeira, a questão muda.

A revista científica International Journal of Surgery Case Reports tem um fator de impacto de 0,6. É um valor considerado como baixo na área da Cirurgia, mas que indica, ainda assim, que os artigos ali publicados são citados por outros autores. O CiteScore, que representa o número médio de citações de cada artigo publicado,  é de 1,1. Esta revista é publicada por uma editora consagrada, tem um corpo editorial e todos os artigos são avaliados de forma independente por revisores. 

Em agosto de 2024, a revista publicou uma Carta ao Editor com o título Practice of neurosurgery on Saturn. Apesar de estar publicada como uma correspondência, a publicação seguiu o roteiro de uma série de três relatos de casos cirúrgicos, inclusive com um Abstract que apresenta os elementos chave do material publicado, e seis descritores, ou Keywords. Os dois autores tem suas credenciais acadêmicas apresentadas ao final do texto, incluindo a suas respectivas contribuições para a elaboração do mesmo.

Nesta Carta/Artigo constam três relatos de pacientes fictícios atendidos em um país, igualmente fictício, denominado de Illusionland, localizado no planeta Saturno. Segundo o texto, Saturno seria habitado por 60 milhões de homo sapiens sapiens, que migraram da Terra fazem 30 anos. 

Nestes três relatos cirúrgicos é descrito o uso de medicamentos reais, tais como pregabalina, gabapentina, amirtriptilina, clominpramina e carbamazepina, assim como de outro fictício: idinexazepam. Da mesma forma é citado um equipamento cirúrgico, denominado de zekaknife, que também é fictício. No artigo é dito que este insrtrumento é comparável a um equipamento real de radiocirurgia, que é a gamma knife.

Constam apenas duas referências bibliográficas na publicação. A primeira se refere ao juramento de Hipócrates, com uma citação incompleta e fora dos padrões estabelecidos pela própria revista. A outra citação é do conto Os Inimigos, de Anton Tchekhov. 

Vale lembrar que esta publicação recebeu um identificador de DOI (https://doi.org/10.1016/j.ijscr.2024.110139) e já  foi catalogada na base PUBMED, no formato de artigo, recebendo os indexadores do PMID (39153336) e PMCID (PMC11378218). No seu registro não consta qualquer indicativo de que é um texto ficcional ou de que os dados publicados não são verdadeiros.

Quando de sua publicação, vários pesquisadores divulgaram este artigo como uma curiosidade. O que nos preocupou, desde o início, foi o fato de não haver, ao longo de toda a publicação, ou na sua catalogação, menção ao fato de ser uma brincadeira.

Algum tempo após a publicação do artigo, o Editor da revista, R. David Rosin, publicou uma nota de esclarecimento a respeito desta publicação. Ele afirma que a revisão foi feita por ele mesmo e que a publicação foi feita com algumas revisões. Neste suposto esclarecimento, ele novamente não refere que o texto é de ficção. Ele ainda se coloca, como editor, a disposição para publicar outros textos semelhantes.

Logo após a publicação da nota de esclarecimento do editor a nossa preocupação se ampliou, em função do risco deste tipo de informação ficcional ser classificada como sendo real. Resolvemos encaminhar uma Carta ao Editor com algumas considerações que julgamos relevantes. A nossa carta foi publicada, igualmente com um erro de referência no encaminhamento para o texto da nota de esclarecimento do editor.

As nossas maiores preocupações, associadas ao texto publicado, foram as seguintes:

a) a publicação foi feita na seção de Cartas ao Editor, mas está formatada como um artigo.  Nas normas de publicação da revista não há previsão de publicação de artigos como Carta ao Editor. Esta confusão ficou evidente quando da catalogação da publicação na base de dados da PUBMED. Não há menção na catalogação de que a publicação é uma Carta ao Editor. Inclusive o resumo, deste suposto artigo, foi incluído no seu registro; 

b) o artigo foram incluídos seis descritores, ou palavras-chave, inclusive um para "aspectos éticos". Existe um termo padronizado que seria muito adequado a esta situação: "Obra de Ficção", ou "Fictional Work". A definição utilizada no vocabulário MeSH da base PUBMED define esta palavra-chave como: "Trabalhos sobre escrita criativa, não apresentados como baseados em fatos". A utilização deste descritor tornaria a publicação adequada;

c) no item Conformidade com padrões éticos, os autores declaram que o artigo apresenta resultados de uma pesquisa observacional que não exigiu aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa. O suposto artigo publica uma série de três casos cirúrgicos fictícios. Divulgar dados forjados  em uma revista científica, sem qualquer menção a ser uma obra de ficção, caracteriza uma fraude científica;

d) consta, neste mesmo item sobre questões éticas, que o Comitê de Ética em Pesquisa do Centre Clinical de Soyaux/França afirmou que não haveria necessidade de aprovação ética para este artigo, nem seria necessária a obtenção de consentimento informado. Este Comitê está vinculado a instituição hospitalar privada existente na cidade de Soyaux, onde um dos autores tem atuação profissional.  Esta dispensa de avaliação ética e de obtenção de consentimento seria adequada a uma publicação ficcional. Porém, vale ressaltar, que esta caracterização não consta em qualquer parte da publicação;

e) os autores afirmam, nos aspectos éticos, que foram obtidos os consentimentos de todas as pessoas incluídas nestes estudo. Isto fica contraditório com a afirmação de que o Comitê de Ética em Pesquisa já havia dispensado a sua obtenção. Por ser uma obra de ficção, não foram incluídos pacientes reais, mas sim criados dados fictícios;

f) posteriormente, logo após o item dos aspectos éticos, os autores declaram que o artigo não contém estudos envolvendo seres humanos ou animais. Esta afirmativa reitera a confusão, pois se não foram incluídos seres humanos não deveriam ter sido obtidos os consentimentos. Seria melhor se os autores tivessem afirmado que esta publicação se refere a casos fictícios;


g) um outro fator que pode gerar confusão e ambiguidade é a referência a medicamentos e equipamentos existentes e fictícios sem a devida diferenciação entre eles. Estas referências a produtos reais e fictícios, mescladas ou comparadas entre si, podem gerar uma credibilidade aos demais dados fictícios publicados;

h) as referências bibliográficas, incluídas no artigo, não utilizam os padrões preconizados pelas normas da própria revista.  A referência ao Juramento de Hipócrates é vaga e  incompleta, não permitindo a sua adequada recuperação. A outra referência, relativa ao texto de Anton Tchekhov,  está igualmente incompleta. O agravante é que esta referência contém um link associado, que direciona para uma indicação de outra publicação, diferente da citada no próprio texto dos autores. É preocupante que o Editor tenha declarado, na sua nota de esclarecimento, que ele próprio fez a revisão do material antes de ser publicado, inclusive tendo encaminhado sugestões.

O fato mais significativo associado a esta publicação é a omissão de que este texto é ficcional. Um leitor humano, minimamente esclarecido, entende que esta publicação se trata de uma obra de ficção científica, pois não existem seres humanos habitando o planeta Saturno e, muito menos, cirurgias sendo lá realizadas. No entanto, as bases de dados e os programas de inteligência artificial, não tem esta capacidade de discernir. Estas bases e plataformas assumem as informações que lhes são fornecidas ou os metadados captados pelos seus algoritmos de aprendizado de máquina. Na base do PUBMED esta publicação é considerada como válida, tanto que após o seu registro constam outras publicações similares, como quatro artigos de cirurgia e um de mecânica celeste envolvendo Saturno. Nas plataformas de inteligência artificial esta informação também poderá ser considerada como sendo válida, pois foi publicada em uma revista científica existente, vinculada a uma editora reconhecida e com avaliação por um corpo editorial. Ou seja, uma publicação com dados científicos validados. Esta é a sua maior inadequação: a publicação de dados fictícios sendo incorporada acriticamente às bases de conhecimentos tidos como cientificamente validados. 

A Ciência se baseia em observações reais, em fatos e evidências, não em dados fictícios.  Esta publicação torna difusa a fronteira entre ficção científica e ciência fictícia, pois publica dados fictícios em uma revista científica, sem qualquer menção a esta peculiaridade do artigo publicado.  

Esta é uma forma de quebra de integridade científica, que envolve autores e editores: publicar dados fictícios em uma revista científica como sendo uma informação válida. Identificar este tipo de situação é uma questão fundamental da Ética na Ciência. 


Referências 

Mostofi K, Peyravi M. Practice of neurosurgery on Saturn. Int J Surg Case Rep. 2024;122(August):3–5. 

Rosin RD. Regarding the letter to the editor: “Practice of neurosurgery on saturn.” Int J Surg Case Rep. 2024 Nov:110665. 

Goldim JR, Fernandes MS. Science fiction or fictitious science.  Int J Surg Case Rep. 2025 Jan:126:110757.


domingo, 5 de janeiro de 2025

Síndrome do Familiar Distante

 José Roberto Goldim


A relação médico-paciente, ou profissional de saúde-paciente, é habitualmente entendida na perspectiva de um relacionamento entre duas pessoas. Em algumas áreas, como Pediatria, Geriatria e Psiquiatria, a presença de outras pessoas, especialmente familiares, já era comum, devido a idade ou incapacidade do paciente em ter o entendimento necessário sobre o seu quadro de saúde ou de participar do processo de tomada de decisão. Contudo, mais recentemente, a presença dos familiares nas interações dos profissionais de saúde com os seus pacientes tem sido crescente. 

Este aumento no número de participantes nos processos de comunicação e decisão tem gerado grandes desafios às atividades dos profissionais de saúde. Da mesma forma, o crescente acesso destas pessoas ás fontes de informações, antes restritas apenas a determinados grupos, também tem gerado dificuldades, em função da falta de entendimento adequado sobre o seu significado e da qualidade das fontes utilizadas.

Estes desafios exigem dos profissionais uma crescente necessidade de atualização de formas de atualização de conhecimentos e de comunicação. É importante tornar acessível conteúdos que nem sempre são fáceis de entender sem uma série de outros conhecimentos prévios. Mas estas situações são manejáveis com cordialidade, preparação e comunicação adequadas.

É sempre importante relembrar algumas características das famílias que devem ser consideradas nestas interações, que foram propostas no texto do livro The patient in the family: an ethics of medicine and families. Um ponto fundamental é que os membros da família não são substituíveis por similaridade ou por pessoas mais qualificadas. Outro ponto é que estas pessoas estão vinculadas umas às outras, seja por vínculos naturalmente impostos, que podem ser positivos ou negativos. Isto pode ser devido aos motivos associados às relações, que sempre sempre contam muito. Por fim, é fundamental entender que as famílias são histórias em andamento.

Levar em conta todas estas características é muito importante ao lidar com processos de tomada de decisão envolvendo familiares. Nos prontuários e nas informações compartilhadas entre profissionais, a composição e outros aspectos relacionados às famílias são escassos e muitas vezes confusos.

As situações decorrentes de ter um familiar doente que necessita cuidado, atenção, acompanhamento e auxílio na tomada de decisões importantes exige empatia e compaixão. Empatia no sentido de buscar entender a situação na perspectiva do outro. Compaixão ao estabelecer a relação de ajuda com o outro que sofre.

Um outro fator que pode impactar neste processo de deliberação é a chegada de um familiar distante, que pode desde o ponto de vista geográfico e afetivo. Esta é uma situação que ocorre frequentemente. 

O paciente e os familiares, que já tinham contato com o médico assistente, ou outros membros das equipes assistenciais, já podem estar adequadamente esclarecidos. Os processos de tomada de decisão podem estar sendo encaminhadas de forma harmônica. Contudo, com a chegada de um "familiar distante" esta situação pode sofrer uma perturbação, algumas vezes de forma significativa. 

A chegada de um familiar distante pode retomar conflitos familiares, talvez, não adequadamente entendidos ou resolvidos; de falta de conhecimento da própria situação atual do paciente e da família; da falta de comunicação entre os membros da família; e de diferentes perspectivas nos sistemas de crenças e valores.

Muitos conflitos familiares não são discutidos pelas pessoas envolvidas, talvez querendo negar ou evitar desgastes e enfrentamentos. Nas situações de maior tensão, como as vivenciadas em um ambiente de saúde, estes conflitos podem emergir e podem deslocar o foco das discussões. Desentendimentos e mágoas antigas podem voltar e criar barreiras emocionais entre os membros do grupo familiar. 

É bastante frequente o paciente, ou outro familiar, confidenciar a um membro das equipes assistenciais envolvidas sobre este tipo de situação. Caso esta informação seja relevante para o entendimento e condução da situação atual, a mesma deve ser compartilhada no prontuário, com uma descrição isenta de julgamento moral. As informações compartilhadas devem ser descritas apenas em seus pontos considerados como relevantes. Os profissionais devem antecipar esta situação aos pacientes e familiares, ou seja, que as informações relevantes são compartilhadas entre os membros das equipes, mas que todos têm o dever de confidencialidade associado às mesmas.

A chegada de um "familiar distante" é um desafio em termos de atualizar informações sobre o paciente e o processo de tomada de decisão atualmente vigente. É fundamental, quando possível, consultar o paciente, ou caso tenha um representante formalmente indicado, sobre os limites de compartilhamento de informações. A privacidade pessoal deve ser sempre priorizada. Nestas interações, deve ser enfatizado dever de preservar estas informações a todos os envolvidos. Os limites da privacidade relacional também são importantes de serem delimitados. Este "familiar distante" pode chegar com a expectativa de um quadro de saúde que não mais existe. O paciente ou outros familiares podiam ter omitido informações com a finalidade de não preocupar quem estava distante, mas que agora é surpreendido com uma mudança importante entre o quadro esperado e o realmente existente. Esta  dissonância deve ser adequadamente esclarecida por meio de uma comunicação adequada. 

Outro importante fator é a falta de comunicação entre os próprios familiares. Não é incomum ter membros da família que não se comunicavam por um longo período de tempo. Pessoas que romperam relacionamentos familiares podem se deparar com uma situação de convivência forçada pela necessidade do quadro de saúde do paciente. A presença de diferentes níveis de conhecimento e compreensão é um fator dificultador na relação com os profissionais de saúde. Além de poder potencializar  conflitos entre os familiares. Os profissionais de saúde podem auxiliar na mediação ou no encaminhamento destas situações mantendo sempre a perspectiva do melhor interesse do paciente. 

Finalmente, um outro importante fator a ser considerado é o sistema de crenças e valores. Este sistema envolve não apenas valores objetivos, crenças estruturadas, mas também interesses e desejos. O importante é trazer a discussão sobre este tema na perspectiva do paciente. As famílias podem não ter mais um conjunto de crenças e valores comum entre seus membros. O próprio afastamento deste familiar pode ter sido causado por estes fatores, assim como também pode gerar mudanças de como encarar desafios de vida e viver. O importante não é discutir os sistemas de crenças e valores pessoais de cada um, mas buscar um exercício de entendimento empático na perspectiva do paciente. As famílias são histórias em andamento. 

A "Síndrome do Familiar Distante" é uma situação frequente e que deve ser enfrentada de forma adequada por todos os profissionais. Em muitas destas situações, assim como esta pessoa chegou de forma inesperada, também se vai abruptamente, após ter causado uma perturbação. É fundamental identificar quem representa os melhores interesses do paciente, que não este estiver impedido de tomar as suas próprias decisões.

Leitura recomendada

Nelson HL, Nelson JL. The patient in the family:  an ethics of medicine and families. New York: Routledge, 1995.







quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Redes Sociais e Bioética

José Roberto Goldim




Muitas vezes, quando se fala em Ética, as pessoas relacionam com impedimentos gerados por Códigos de Ética Profissional. A Ética propriamente dita é diferente. Segundo Joaquim Clotet, a Ética tem por objetivo facilitar a realização das pessoas. Este é o objetivo das reflexões éticas: aprimorar o viver das pessoas. 


Esta é a proposta da Bioética. Entender como fazer esta possibilidade de aprimorar o viver é fruto de uma reflexão compartilhada, complexa e interdisciplinar sobre a adequação de ações que realizamos. Fazer uma reflexão complexa é incluir as múltiplas perspectivas da realidade. Fazer uma reflexão compartilhada é dialogar, é compartilhar conhecimentos e argumentos. Fazer uma reflexão interdisciplinar é incluir as múltiplas perspectivas de visão de mundo e da realidade, geradas a partir de diferentes olhares, que possibilitam, por esta troca, a geração de novos conhecimentos, antes não existentes ou consolidados.


A reflexão sobre a adequação das nossas ações ultrapassa a simples perspectiva do bem e do mal, do correto e do incorreto. Ao verificar os fatos e circunstâncias envolvidos e permitir uma reflexão contextualizada, se vislumbra um conjunto de justificativas para realizar ou não esta determinada ação.


É nesta perspectiva que proponho fazer esta reflexão sobre o uso adequado das redes sociais. Elas estão na ordem do dia das discussões na nossa sociedade. É importante relembrar as discussões propostas por Habermas sobre o que é a Esfera Pública, como o espaço onde as pessoas podem se reunir e debater as suas ideias, é o espaço privilegiado de formação da chamada opinião pública.


No século XVIII, a Esfera Pública ocorria na nova imprensa artesanal. Era um novo espaço de compartilhamento de ideias e opiniões. Embora restrito, teve uma importância pela sua difusão continuada.


No século seguinte foi a vez da imprensa comercial, com os grande jornais. Estes periódicos tinham grande tiragem, com periodicidade regular e grande abrangência. As fronteiras da esfera pública foram sendo alargadas para além das comunidades locais.


O rádio e a televisão assumiram este papel no século XX, com uma difusão massiva de informações em tempo real, e não mais em edições periódicas. O radio e a televisão invadiam as casas e outros locais. Não havia a necessidade de ter um horário de disseminação das informações. A qualquer hora era possível estar atualizado e em qualquer lugar.


Finalmente, no século XXI este protagonismo passou para a internet. Nesta nova forma de compartilhar informações não há mais a necessidade da institucionalização, qualquer pessoa coloca as suas ideias e notícias para todos os demais. Não mais a mediação profissional e institucionalizada. Qualquer pessoa pode difundir suas ideias e opiniões. É interessante que, no início, a internet divulgava as notícias que eram oriundas das rádios, da televisão e dos jornais. Com o passar do tempo e a expansão do acesso às redes sociais, os meios tradicionais é que passaram a divulgar as informações compartilhadas nesta nova esfera pública. As informações da internet passaram a ser divulgadas nos demais meios. Os jornais, as rádios e as televisões começaram a migrar para este novo espaço.


Um dos maiores riscos na área da saúde, em relação aos espaços públicos, é o da quebra de confidencialidade. Na área da saúde, nas décadas de 1990 e 2000, um dos locais de maior fragilidade para a confidencialidade eram os elevadores dos hospitais. As quebras de confidencialidade ocorreriam entre 8,9% e 15,8% das viagens em elevadores, de acordo com o país onde esta situação foi avaliada.


Com a entrada das redes sociais, a partir da década de 2010, estas oportunidades de quebras de confidencialidade aumentaram. No Facebook, por exemplo, foi constatada uma ocorrência de 26,3%, no Instagram de 19,9% e no Tweeter de 32,1%. As redes sociais potencializam a divulgação de informações que anteriormente eram mantidas de forma confidenciais por profissionais de saúde e alunos em formação. Vale lembrar que além da divulgação direta, existe a possibilidade de propagação destas mesmas informações por outras pessoas, sem controle por parte de quem as postou.


Em uma revisão sistemática sobre Redes Sociais, cobrindo o período de 2006-2020, realizada em 12 bases de dados, avaliando 544 artigos, foi possível identificar três diferentes categorias e dez diferentes usos. As categorias foram Instituições de Saúde, Profissionais de Saúde e Público em Geral .


Nas instituições de saúde foram encontrados quatro diferentes usos: vigilância de informações; disseminação de informações de saúde e combate a desinformação; realização de intervenções em Saúde e geração de mobilização social.


Nos profissionais de saúde os usos mais relevantes foram: facilitar a pesquisa em saúde; facilitar a comunicação entre médicos e pacientes e destes com os serviços de saúde; e a possibilidade de desenvolvimento profissional.


Finalmente, no público em geral, os usos mais destacados foram: buscar e compartilhar informações relacionadas à saúde; compartilhar suporte social em comunidades online; e acompanhar e compartilhar atividades e estados de saúde. 


Nestes usos identificados, seja por profissionais ou por instituições, as redes sociais apresentam riscos, tais como: disseminar informações de baixa qualidade; possibilitar danos à imagem profissional; riscos de quebras de privacidade de pacientes, por meio de dados e imagens compartilhadas; exposição demasiada da vida privada do próprio profissional; violação da fronteira da relação profissional-paciente; além da divulgação de credenciamento e de área de atuação profissional, que não podem ser adequadamente comprovados


Por outro lado, as redes sociais também oferecem oportunidades, tais como: possibilitar contatos entre profissionais (networking); permitir acesso mais facilitado à educação profissional; promover as organizações junto a sociedade; permitir maior comunicação com pacientes; ter potencial de gerar educação de pacientes; promover e divulgar programas de saúde pública; poder gerar contribuições à pesquisa; e, até mesmo, contribuir para um melhor cuidado de pacientes.


As redes sociais são uma realidade que não pode ser ignorada pela área da saúde. O que deve ser feito é uma avaliação e compreensão das múltiplas utilizações possíveis. A partir destas constatações, é possível estabelecer algumas recomendações práticas para os profissionais e alunos da área da saúde a respeito do uso de redes sociais em termos de imagem e identidade profissional, da utilização profissional das redes sociais e da comunicação com os pacientes.


Em relação a imagem e identidade profissional, é fundamental:

  • realizar periodicamente auditorias para verificar a sua presença pessoal nas redes. Os resultados podem gerar importantes dados sobre o que está circulando de informações e imagens referentes a cada profissional ou aluno. Estas auditorias podem gerar a necessidade de estabelecer uma correção do rumo da divulgação desta imagem profissional.

  • maximizar as configurações de privacidade de seus programas e sites que são utilizados. Muitas vezes as configurações em uso estão aquém dos padrões de proteção para informações pessoais sensíveis, como às referentes à área da saúde.

  • utilizar uma “dupla cidadania” nas redes, ou seja, separar o perfil profissional do perfil pessoal. Esta separação evita a confusão de papéis nas relações sociais, especialmente quando envolvem pacientes. Ter este cuidado não evita o acesso as informações de caráter mais pessoal, mas minimiza a exposição em ambientes profissionais. A postagem de informações ou imagens que podem comprometer a imagem do profissional ou do aluno devem ser evitadas ou, se forem divulgadas, terem seu acesso mais restrito.


Ao utilizar as redes sociais de forma profissional:

  • considere que todas as suas postagens passam a ser públicas e permanentes. Ao realizar uma divulgação o autor perde o controle da sua disseminação. Mesmo que a postagem seja apagada ou deletada, não existe a garantia de que não tenha sido copiada ou divulgada por outras pessoas para seus círculos de contatos.

  • considere que o seu comportamento na rede deve ser o mesmo que aquele realizado de forma presencial no ambiente de trabalho. As mesmas regras de cordialidade e convivência devem ser observadas em ambos os ambientes. 

  • evite compartilhar vinhetas ou fotos de casos, mesmo que não identificados. Isto só pode ser realizado, ainda com muita cautela, com a autorização expressa e documentada das pessoas expostas. Dados de pacientes, mesmo não identificados podem permitir a sua identificação, ou pior, podendo ocorrer uma identificação cruzada. As fotos, ainda que com medidas de descaracterização das imagens, permitem manipulação e reidentificação. Na divulgação de resultados de exames ou de imagens, todo cuidado é pouco, pois muitas vezes constam dados de registros que podem reidentificar os pacientes que ficam pouco evidentes.


Na comunicação com pacientes:
  • utilize meios seguros de comunicação com os pacientes e familiares, caso contrário, obtenha consentimento por escrito. Caso esteja realizando uma vídeo-chamada com um paciente, pergunte se tem mais alguém presente no local onde ele está, pois o campo visual não permite verificar a presença de outras pessoas. Isto é muito importante para preservar a privacidade dos pacientes.
  • evite comunicação profissional direta sobre informações de pacientes atendidos com outras pessoas que não sejam os próprios pacientes ou familiares por eles designados. Não é incomum pessoas se apresentarem como intermediários de pacientes solicitando informações pessoais sensíveis, como dados de saúde. Nesta situações informe que apenas o paciente e pessoas por ele identificadas e autorizadas podem ter acesso a estas informações..
  • reconheça que os pacientes e seus familiares podem não ter os mesmos recursos de informática que os profissionais e alunos dispõem. Muitos pacientes podem não ter acesso a redes de boa velocidade ou aparelhos que possibilitem chamadas de vídeo. É importante questionar sobre estas questões de acesso a estes recursos.



É muito importante destacar o que Mostaghimi e Crotty propuseram em 2011:


Não estamos sugerindo que os médicos devam ser proibidos de utilizar as redes sociais.

Os médicos apenas necessitam ter prudência (razão prática) quanto ao conteúdo e o tom

daquilo que será postado online.


Referencias

Joaquim Clotet. Una Introducción al tema de la Ética. Psico 1986;12(1)84-92.


Goldim JR. Bioética: origens e complexidade. Revista HCPA 2006;26(2):83-92.


Habermas J. Mudança Estrutural na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003.


Hasman A, Hansen NR, Lassen A, Rabøl R, Holm S. What do people talk about in Danish hospital elevators? Ugeskr Laeger. 1997;159(46):6819–2.


Ubel PA, Zell MM, Miller DJ, Fischer GS, Peters-Stefani D, Arnold RM. Elevator talk: observational study of inappropriate comments in a public space. Am J Med. 1995;99(2):190–4.


Langenfeld SJ, Cook G, Sudbeck C, Luers T, Schenarts PJ. An Assessment of Unprofessional Behavior Among Surgical Residents on Facebook: A Warning of the Dangers of Social Media. J Surg Educ; 2014;71(6):e28–32.


Moras iLS de, Dargél VA, Ribeiro JT, Fernandes MS, Goldim JR. A privacidade do paciente e o elemento responsabilidade na formação médica. Anais X Semana de Extensão, Pesquisa e Pósgraduação - SEPesq - UniRitter. Porto Alegre: UniRitter; 2014.


Ahmed W, Jagsi R, Gutheil TG, Katz MS. Public Disclosure on Social Media of Identifiable Patient Information by Health Professionals: Content Analysis of Twitter Data. J Med Internet Res. 2020 Sep 1;22(9):e19746.


Chen J, Wang Y. Social media use for health purposes: Systematic review. J Med Internet Res. 2021;23(5):1–16.


George DR, Rovniak LS, Kraschnewski JL. Dangers and opportunities for social media in medicine. Clin Obs Gynecol 2013;56(3):1–7.


Lee Ventola C. Social media and health care professionals: Benefits, risks, and best practices. P&T 2014;39(7):491–500.


Mostaghimi A, Crotty BH. Professionalism in the digital age. Ann Intern Med. 2011;154(8):560–2.