domingo, 5 de abril de 2020

COVID-19 e Alteridade

José Roberto Goldim


A COVID-19 tem gerando situações muito inusitadas. Muitas explicações têm sido dadas, as vezes utilizando justificativas e modelos simplistas, na busca de entender o que está ocorrendo. 

A reflexão sobre a adequação das ações tomadas por governos, organizações internacionais, empresas, instituições e pessoas tem inúmeras maneiras de ser enfocada. A Alteridade, contudo, parece ser o referencial teórico que mais tem adequação com o que estamos vivendo.

A Alteridade é uma proposta recente na história da Filosofia, como modelo estruturado de pensamento. Esta nova escola foi, predominantemente elaborada pelo filósofo Emmanuel Levinas. Porém, as suas bases remontam a diferentes momentos e manifestações do processo civilizatório. Levinas deu sentido a práticas sociais, que eram realizadas em diferentes níveis. Ele fez uma reflexão que propicia um enfoque muito criativo e inovador para várias situações. 

Muitas perspectivas, sejam elas individualistas ou coletivistas, retiravam a perspectiva do outro. A Alteridade permite uma ultrapassagem dos conceitos de egoísmo e de altruísmo como sendo as únicas possibilidades de abordagem de situações como as apresentadas pela Pandemia da COVID-19.

As manifestações egoístas se manifestam de várias formas durante a situação de Pandemia que estamos vivendo. No plano individual, por exemplo, este egoísmo se manifesta ao comprar e estocar medicamentos, alimentos e outros produtos que uma pessoa sequer necessita, na presunção de que poderá vir a utilizar.  As manifestações de violência doméstica, verificadas em todos os países, também é reflexo desta postura individualista e egoísta. O outro é objeto de violência por que não conta, por que atrapalha. Em nível nacional, isto se manifesta ao utilizar a metáfora da guerra como enfrentamento à Pandemia. Este enfoque justifica estabelecer bloqueios de acesso e padrões de oferta agressiva de compra de produtos e equipamentos com a finalidade de abastecer unicamente o seu próprio país. Os fornecedores também contribuem neste processo, ao aceitar estas vender seus produtos por valores superiores aos que estavam praticando, tendo estoques limitados e comprometidos, acabam cancelando contratos de compra e venda anteriormente estabelecidos. Desta forma, deixam desassitidos compradores que se anteciparam e se programaram para enfrentar a situação atual. Outra manifestação de egoísmo coletivo é o bloqueio de retorno de cidadãos aos seus países. Estabelecer medidas de isolamento e quarentena ´para os viajantes que retornam se justificam pela ptoeção da comunidade, mas impedir o retorno é negar a própria cidadania destas pessoas. 

Por outro lado, o altruísmo, quando assumido como uma perspectiva única, acarreta  que os interesses do outro dominem a tomada de decisão, por meio da negação das necessidades e interesses da própria pessoa. Isto pode ocorrer quando, no ímpeto de auxiliar o outro, o profissional atua em situações de risco, sem as devidas medidas de proteção, e acaba se contaminando ou adoecendo Esta negligência para consigo mesmo é que caracteriza a inadequação do altruísmo absoluto.

A Alteridade colocou a reflexão ética das nossas ações, entendida como a busca pelo sentido e adequação das mesmas, como o centro da reflexão filosófica. Levinas incorporou várias tradições em suas reflexões. A Alteridade parte do ponto fundamental de que cada um de nós tem que incluir o outro como parte fundamental do nosso viver. É o outro que dá significado e sentido ao nosso próprio viver. 

Ao reincluir o outro como parte fundamental do meu viver, a Alteridade ressignifica a minha própria reflexão pessoal. Ao perceber o olhar do outro, a sua face, a sua relação única e significativa para comigo, isto impede um olhar indiferente. A desconsideração do outro afasta, despersonalizar, gera uma indiferença que tem um efeito terrível sobre a vida e o viver desta outra pessoa. A não-indiferença, ao contrário, traz consigo um olhar que acolhe, que inclui, que gera uma co-presença ética, uma co-responsabilidade. 



Na perspectiva da Alteridade, o indivíduo não tem o foco apenas nos seus interesses, ou abre mão de todos eles para assumir tão somente os interesses do outro. Da mesma forma, o indivíduo não assume os interesses do grupo em detrimento dos seus. A co-presença ética nos insere na relação efetiva com o outro, é ela que gera uma nova unidade que é o "nós". Não são mais os meus interesses, ou apenas os interesses do outro, mas sim os interesses comuns que surgem dessa interação efetiva. A Alteridade gera uma rede de solidariedade recíproca e compartilhada por todos. 

A co-responsabilidade é fruto do reconhecimento de que ao me tornar responsável pelo outro, eu me torno intrinsecamente responsável por mim mesmo. É esta percepção de responsabilidade recíproca que permite dignificar a presença do outro. Ele não é um dependente de mim, mas um parceiro efetivo nesta nova relação que surge a partir do reconhecimento da sua própria existência. 

E o que isto tem a ver com a COVID-19? Em muitas situações que estamos vivenciando a Alteridade está presente ou deveria ser utilizada como forma de explicar esta necessidade de justificar ações solidárias, não como altruístas, mas sim como efetivamente significativas a todos nós.

Quantas situações são possíveis de ser assim entendidas. O distanciamento social é um bom exemplo. Ele pode se manifestar por permanecer em casa, por reduzir os contatos interpessoais ao cumprimentar, ao estabelecer regras de etiqueta ao tossir e espirrar, por exemplo. A utilização de máscaras de proteção facial é uma outra estratégia que se insere nesta mesma linha. 

Ficar em casa é a medida mais efetiva para as pessoas se protegerem neste momento. As pessoas permanecendo em casa se protegem da contaminação e, ao fazerem isto, também estão protegendo outras pessoas. A exposição indevida desrespeita a proteção da própria pessoa e, simultaneamente, desconsidera a proteção do outro. Porém, a permanência em casa também tem consequências inadequadas. O aumento da violência doméstica é um triste exemplo. Mesmo nesta situação a explicação passa pela Alteridade. A violência é a negação do outro, é a negação da possibilidade de uma convivência digna, de um compartilhamento de interesses. 

Ao cumprimentar uma outra pessoa, eu a estou reconhecendo, eu a estou incluindo naquela relação momentânea e, por vezes, fugaz. Quando isto não é apenas um ritual social, que perde o seu sentido real, o cumprimento nos inclui. Muito mais importante do que tocar o outro, é estabelecer o contato visual, é ele que nos insere, é ele que reconhece e permite o reconhecimento recíproco. 

Ao utilizar máscaras de proteção, as pessoas protegem a si mesmas e igualmente as demais pessoas. O uso das máscaras de proteção são um bom exemplo de co-responsabilidade. Esta política de enfrentamento da pandemia tem sido utilizada em muitos locais. Um vídeo da República Tcheca justifica o uso de máscaras por toda a população com base na co-responsabilidade. De cada um cuidando de si e do outro. ou seja, baseando-se na Alteridade. Mesmo com o uso de máscaras, o olhar é possível.

Outra manifestação nesta mesma direção tem sido a relação entre filhos e pais idosos. Inúmeros filhos acolheram seus pais ou foram morar com eles neste momento de permanecer em casa. Os filhos mais velhos, que já tem seus filhos mais independentes, receberam os seus pais em suas casas. Outros optaram por retornar a casa de seus pais. A possibilidade de trabalho remoto possibilitou que todos permaneçam em casa, se protejam, e convivam, 

Em algumas outras situações este contato tem sido mediado por telefones celulares ou computadores. As redes sociais e as demais forma de contato interpessoal pessoal têm minimizado este distanciamento social e até mesmo o transformado em uma possibilidade de proximidade afetiva. 

Todas estas situações adequadas demonstram que a solidariedade real é fruto da Alteridade, da inclusão do outro como parte fundamental do meu viver..

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