José Roberto Goldim
As ações humanas podem ser classificadas de diferentes maneiras, de acordo com a teoria moral associada. A prescrição médica também. As teorias morais tiveram uma evolução no sentido de sair de uma proposta meramente dual, de considerar as ações positivas ou negativas, para assumir uma complexidade de perspectivas, onde existe a possibilidade da tolerância.
A Teoria Moral Divalente, por exemplo, utiliza apenas duas categorias de ação: ações obrigatórias (positivas) e ações proibidas (negativas). Entende-se por ação obrigatória aquela que o indivíduo que a realizar mereça aprovação por fazê-la e uma censura ou repreensão por não realizá-la. As ações proibidas, tem uma perspectiva inversa, ou seja, o indivíduo é aprovado quando não realiza esta ação proibida, porém é censurado quando a realiza.
O surgimento da Teoria Moral Trivalente foi considerado como sendo uma evolução, pois introduziu uma nova categoria que é a a da ação ser considerada indiferente. A ação permitida é tolerada, é indiferente, não sendo nem aprovada, nem censurada. Uma ação permitida não é obrigatória ou proibida, fazer ou não fazer esta ação não gera consequências morais.
A partir de alguns estudos sobre situações especiais de avaliação de uma ação foi proposta a Teoria Moral Tetravalente, com a introdução de uma nova categoria: suprarrogação. Este termo foi criado para explicar as ações que ficam entre a obrigação ou a proibição e a permissão. A suprarrogação, supererrogation em ingles, é algo que está alem da noção de dever. Nesta categoria podem ser incluídas as condutas tidas como recomendáveis ou desencorajáveis. Uma conduta recomendável merece elogios quando realizada, mas a sua não realização é indiferente, desde o ponto de vista moral, não merece aprovação ou censura. A conduta desencorajável é o oposto. Ao não realizar uma ação associada a uma conduta desencorajável é que a pessoa merece elogios pelo seu esforço, enquanto que, se o fizer, é indiferente.
O debate de condutas profissionais durante a pandemia da COVID-19 está sendo realizado sem uma maior reflexão. Muitas vezes esta avaliação se restringe a critérios deontológicos, ou seja, dos deveres profissionais associados.
As profissões têm comportamentos morais prescritos nos seus Códigos de Conduta Profissional Adequada, erroneamente denominados de Códigos de Ética. A Ética nunca é prescreve uma ação, ela busca justificativas de adequação. A Moral, por sua vez, é que estabelece regras de convivência para um determinado grupo de pessoas em um tempo e local.
A maioria dos Códigos de Conduta se baseiam na Teoria Divalente, isto é, em obrigações e proibições. Isto fica evidente na sua leitura, pois a maioria de seus artigos iniciam com a expressão "é vedado ao" profissional realizar esta ou aquela conduta.
Quando um medicamento é liberado para uso assistencial, por uma agência reguladora, como no caso da ANVISA no Brasil, os profissionais médicos têm a permissão de prescrever ou não esta droga. Esta é a conduta possével: é permitido prescrever. É parte da liberdade do profissional poder avaliar as necessidades do paciente, discutir os riscos e benefícios associados ao seu uso com o próprio paciente e então decidir por utilizar ou não uma droga disponível.
As Sociedades Científicas, ou outros grupos de profissionais, podem realizar estudos avaliando o conhecimento existente de uma droga no sentido de orientar o seu uso, tido como adequado. Assim, estes documentos podem recomendar ou desencorajar o uso de uma determinado medicamento. Este é o sentido moral destas condutas, ou seja, é uma ação que apenas pode ser merecedora de elogios ou ser indiferente.
As condutas obrigatórias ou proibidas são bastante delicadas, pois restringem a liberdade do prescritor. Estas condutas devem estar estabelecidas por meio de políticas públicas solidamente embasadas em critérios técnicos gerados por conhecimentos cientificamente reconhecidos e terem este caráter normativo claro.
A discussão em torno da utilização de drogas para o tratamento da COVID-19 tem sido enquadrada, por muitas pessoas, como sendo obrigatória ou proibida. A rigor, a prescrição destas substâncias é uma conduta permitida. Mesmo fora da sua liberação pela ANVISA, existe a prerrogativa do médico em prescrever o seu uso como sendo "off label", assumindo a responsabilidade integral pela sua utilização.
A consolidação dos conhecimentos gerados por estudos científicos é que poderão orientar que esta conduta seja tida como recomendável ou desencorajável, mas este é o limite.
A criação de um clima de confronto entre estas posições é típica de uma visão polarizada, como era a proposta pela Teoria Moral Divalente, onde apenas duas categorias de ação eram possíveis.
A utilização do referencial da Teoria Moral Tetravalente possibilita um melhor enquadramento destas questões, evitando o acirramento de posições e permitindo ao profissional o exercício de sua liberdade para propor e deliberar com o paciente sobre as alternativas que podem ser adequadas ao seu tratamento.
O importante é reconhecer que temos problemas e não dilemas. É sair da visão meramente maniqueísta, ou seja, de ter apenas dois caminhos possíveis, para assumir que podem existir múltiplas possibilidades para a abordagem de um problema.
Para ler mais:
Urmson JO.Saints
and Heroes. In: Melden AI, editor. Essays
in Moral Philosophy. Seattle: University of Washington Press; 1958. p. 198-216. (para a noção de suprarrogatório)
Mário Sottomayor-Cardia. Etica I.Lisboa: Presença, 1992:132.