segunda-feira, 20 de julho de 2020

COVID-19, prescrição de medicamentos e categorias morais de ação

José Roberto Goldim


As ações humanas podem ser classificadas de diferentes maneiras, de acordo com a teoria moral associada. A prescrição médica também. As teorias morais tiveram uma evolução no sentido de sair de uma proposta meramente dual, de considerar as ações positivas ou negativas, para assumir uma complexidade de perspectivas, onde existe a possibilidade da tolerância.

A Teoria Moral Divalente, por exemplo, utiliza apenas duas categorias de ação: ações obrigatórias (positivas) e ações proibidas (negativas). Entende-se por ação obrigatória aquela que o indivíduo que a realizar mereça aprovação por fazê-la e uma censura ou repreensão por não realizá-la. As ações proibidas, tem uma perspectiva inversa, ou seja, o indivíduo é aprovado quando não realiza esta ação proibida, porém é censurado quando a realiza.

O surgimento da Teoria Moral Trivalente foi considerado como sendo uma evolução, pois introduziu uma nova categoria que é a a da ação ser considerada indiferente. ação permitida é tolerada, é indiferente, não sendo nem aprovada, nem censurada. Uma ação permitida não é obrigatória ou proibida, fazer ou não fazer esta ação não gera consequências morais.

A partir de alguns estudos sobre situações especiais de avaliação de uma ação foi proposta a Teoria Moral Tetravalente, com a introdução de uma nova categoria: suprarrogação.  Este termo foi criado para explicar as ações que ficam entre a obrigação ou a proibição e a permissão. A suprarrogação, supererrogation em ingles, é algo que está alem da noção de dever. Nesta categoria podem ser incluídas as condutas tidas como recomendáveis ou desencorajáveis. Uma conduta recomendável merece elogios quando realizada, mas a sua não realização é indiferente, desde o ponto de vista moral, não merece aprovação ou censura. A conduta desencorajável é o oposto. Ao não realizar uma ação associada a uma conduta desencorajável é que a pessoa merece elogios pelo seu esforço, enquanto que, se o fizer, é indiferente.

O debate de condutas profissionais durante a pandemia da COVID-19 está sendo realizado sem uma maior reflexão. Muitas vezes esta avaliação se restringe a critérios deontológicos, ou seja, dos deveres profissionais associados.

As profissões têm comportamentos morais prescritos nos seus Códigos de Conduta Profissional Adequada, erroneamente denominados de Códigos de Ética. A Ética nunca é prescreve uma ação, ela busca justificativas de adequação. A Moral, por sua vez, é que  estabelece regras de convivência para um determinado grupo de pessoas em um tempo e local.

A maioria dos Códigos de Conduta se baseiam na Teoria Divalente, isto é, em obrigações e proibições. Isto fica evidente na sua leitura, pois a maioria de seus artigos iniciam com a expressão "é vedado ao" profissional realizar esta ou aquela conduta.

Quando um medicamento é liberado para uso assistencial, por uma agência reguladora, como no caso da ANVISA no Brasil, os profissionais médicos têm a permissão de prescrever ou não esta droga. Esta é a conduta possével: é permitido prescrever. É parte da liberdade do profissional poder avaliar as necessidades do paciente, discutir os riscos e benefícios associados ao seu uso com o próprio paciente e então decidir por utilizar ou não uma droga disponível.

As Sociedades Científicas, ou outros grupos de profissionais, podem realizar estudos avaliando o conhecimento existente de uma droga no sentido de orientar o seu uso, tido como adequado. Assim, estes documentos podem recomendar ou desencorajar o uso de uma determinado medicamento. Este é o sentido moral destas condutas, ou seja, é uma ação que apenas pode ser merecedora de elogios ou ser indiferente. 

As condutas obrigatórias ou proibidas são bastante delicadas, pois restringem a liberdade do prescritor. Estas condutas devem estar estabelecidas por meio de políticas públicas solidamente embasadas em critérios técnicos gerados por conhecimentos cientificamente reconhecidos e terem este caráter normativo claro.

A discussão em torno da utilização de drogas para o tratamento da COVID-19 tem sido enquadrada, por muitas pessoas, como sendo obrigatória ou proibida. A rigor, a prescrição destas substâncias é uma conduta permitida. Mesmo fora da sua liberação pela ANVISA, existe a prerrogativa do médico em prescrever o seu uso como sendo "off label", assumindo a responsabilidade integral pela sua utilização. 

A consolidação dos conhecimentos gerados por estudos científicos é que poderão orientar que esta conduta seja tida como recomendável ou desencorajável, mas este é o limite.

A criação de um clima de confronto entre estas posições é típica de uma visão polarizada, como era a proposta pela Teoria Moral Divalente, onde apenas duas categorias de ação eram possíveis.  

A utilização do referencial da Teoria Moral Tetravalente possibilita um melhor enquadramento destas questões, evitando o acirramento de posições e permitindo ao profissional o exercício de sua liberdade para propor e deliberar com o paciente sobre as alternativas que podem ser adequadas ao seu tratamento. 

O importante é reconhecer que temos problemas e não dilemas. É sair da visão meramente maniqueísta, ou seja, de ter apenas dois caminhos possíveis, para assumir que podem existir múltiplas possibilidades para a abordagem de um problema. 

Para ler mais:



Mário Sottomayor-Cardia. Etica I.Lisboa: Presença, 1992:132.



Goldim JR. COVID-19 e o Uso Compassivo ou Off Label de Medicamentos. Blog Bioética Complexa, 2020.



quarta-feira, 15 de julho de 2020

COVID-19 e Alocação de Recursos

José Roberto Goldim


A pandemia de COVID-19 tem gerado inúmeras questões importantes em termos de alocação de recursos na área de assistência à saúde. 

A alocação de recursos pode ser feita com base em três tipos de critérios: merecimento, necessidade e benefício associado. O merecimento se baseia em fatos passados, em circunstâncias anteriores ao atendimento. A necessidade é presente, é aquela que se apresenta no momento do atendimento. O benefício associado remete para o futuro, para a consequência decorrente do uso dos recursos. 

Em situações de normalidade, o critério de alocação de recursos escassos de saúde pode ser o merecimento ou a necessidade. A necessidade do paciente é avaliada com base na gravidade do quadro de saúde do paciente no momento do atendimento. Os critérios de acesso às emergèncias e as unidades de tratamento intensivo se baseiam neste critério de gravidade. O merecimento pode ser utilizado quando o critério de atendimento se baseia em ter chegado antes para ser atendido. É o critério do first come, first serve. Este critério foi muito utilizado no passado para alocação de órgãos em transplantes. Posteriormente, foram agregados outros critérios na alocação de órgãos. O critério de merecimento é extremamente discutível quando utiliza critérios sociais para fazer a alocação dos recursos.

Como forma de evitar o uso do critério de merecimento, quando a necessidade iguala a todos os envolvidos, alguns autores referem-se ao caso Holmes da justiça norte-americana. Na sentença, o juíz responsável pelo caso, criticou o uso de critérios e propôs que deveria ser realizado um sorteio entre as pessoas que estavam envolvidas no processo de alocação. Este critério seria isento de elementos subjetivos. Alguns autores fizeram alusão a este processo em algumas propostas para alocação de recursos na pandemia atual.

Outra questão muito presente é a alusão a esta situação como sendo uma "Escolha de Sofia". Esta denominação não é transponível para a alocação de recursos escassos na pandemia. A Escolha de Sofia é uma criação literária, é uma escolha baseada em vínculos afetivos, em critérios não-racionais. Esta expressão foi generalizada indevidamente para outras situações difíceis. Mais d que uma escolha difícil, é uma proposta perversa, é uma armadilha lógica e ética. A proposta se baseava na questão de que se mãe não escolhesse, entre seus dois filhos, qual criança salvar, ambas morreriam. Ou seja, a decisão implica em que a sobrevida de um depende da morte do outro. Lembrando que nesta situação não havia escassez de recursos, mas sim de uma escolha imposta por um outro motivo.  

Um autor que faz o raciocínio que pode ser confundido, equivocadamente, ao da Escolha de Sofia é Edmond CahnEm havendo escassez,  se nem todas as pessoas que necessitam este determinado recurso tem possibilidade de acesso, a nenhuma delas este recurso deveria ser alocado. O seu argumento essencial é de que ninguém pode salvar-se às custas da vida dos outros, salvo que por um decisão pessoal de auto-sacrifício. Ele defende a proposta de igualdade de acesso real. Esta situação parte da escassez para a negativa de uso, no caso de haver igualdade entre os pretendentes. 

Em situações de catástrofes agudas tudo se altera. O critério de gravidade, baseado na necessidade, se altera para a salvabilidade. Ou seja, em primeiro lugar são atendidos os pacientes salváveis, os que têm maior probabilidade de ter benefício com o atendimento imediato. Estes critérios foram muito utilizados em medicina de guerra, ou seja, no atendimento de feridos graves em situações precárias de atendimento.

Nas situações de crônicas, onde os recursos de atendimento para um grande volume de pessoas se alonga no tempo, a situação muda. Podem ser utilizados critérios de salvabilidade associados a gravidade. 

No atendimento de pacientes com COVID-19 a Itália se deparou com uma situação de escassez de recursos de atendimento de pacientes que necessitavam de tratamento intensivo, especialmente medidas de suporte respiratório.  A pandemia na Itália trouxe um misto de necessidades agudas e crônicas. As Recomendações de Ética Clínica, distribuídas aos médicos italianos, estabeleciam que o critério de idade deveria ser utilizado. Este critério, de acordo com a justificativa utilizada, visa selecionar as pessoas que têm maior probabilidade de sobrevivência, baseado em mais anos por vidas salvadas. É uma perspectiva de maximizar os benefícios para o maior número de pessoas. Ou seja, a utilização de um critério utilitarista. 

Utilizar o critério de idade de forma isolada, conforme o previsto nesta recomendação, é discriminação. Existe até um termo para isto: Ageism. Desconsiderando os critérios clínicos, e utilizando apenas a idade, já ter vivido mais  anos não faz com que uma pessoa tenha um pior prognóstico que outra mais jovem. O conjunto do quadro de saúde do paciente, quando avaliado, poderá ser associado à idade, mas não a idade isoladamente. No documento italiano os idosos são caracterizados apenas como consumidores de recursos de saúde, ou seja, como sendo pessoas que ao utilizarem os recursos prejudicam os demais. Os idosos, considerando-se apenas o critério etário, são equiparados aos pacientes frágeis ou com doenças severas.

A Resolução CFM 2.156/2016, que estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva, veda a utilização de quaisquer outros critérios, que não os clínicos, para a avaliação da prioridade dos pacientes que estão necessitando de recursos intensivos.  

As Recomendações italianas também criticam o critério de merecimento baseado no first come, first serve. A sua justificativa se baseia na possibilidade de um paciente que chegar posteriormente a outro ter maior probabilidade de cura. 

Alguns autores norte-americanos também criticam este critério e propõem a utilização de uma acesso aleatorizado para escolher os pacientes que tenham mesmos critérios de acesso. Isto seria uma espécie de "loteria da vida".  Edmond Cahn criticou a sentença dada no caso Holmes, pois esta situação crítica envolve uma aposta muito alta para ser simplesmente resolvida com uma jogada e as responsabilidades são muito grandes para serem deixadas a cargo do destino. Porém, vale lembrar, que na sua concepção, quando vários disputam o mesmo recurso, valeria a proposta ou tem para todos ou não tem para ninguém.

Por este mesmo motivo de ser uma tarefa de alta responsabilidade prospectiva, a triagem  dos pacientes que necessitam recursos escassos não deve ser feita de forma individual. O processo de triagem deve ser realizado como uma decisão compartilhada por, no mínimo, três profissionais de saúde, sendo obrigatoriamente, dois médicos experientes em atendimento de Medicina Intensiva. Quando estes recursos não estiverem disponíveis, poderá ser utilizada telemedicina nesta tarefa, desde que seja realizada em tempo real. Todas as decisões devem ser registradas nos prontuários individuais dos pacientes.

Nas situações mais difíceis é que se deve fazer uma reflexão mais adequada e justa. A utilização de critérios isolados, quando o fenômeno é complexo e multifatorial, é simplista e discriminatória.

As decisões sobre alocação de recursos escassos sempre geram pessoas que não poderão ter acesso àquilo que necessitam ou desejam. O importante é ter critérios defensáveis para esta reflexão e, principalmente, na sua aplicação.

A Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) propôs Princípios de triagem em situações de catástrofes e as particularidades da pandemia COVID-19. Neste documento, a AMIB, como sociedade médica, se posiciona sobre o processo de alocação de recursos de medicina intensiva nesta situação de excepcionalidade.

O adequado nestas situações é selecionar os atendimentos dos pacientes pelo conjunto de suas características de saúde. A restrição das prioridades de internação em UTIs, estabelecidas na Resolução CFM 2.156/2016, deve ser feita pelos gestores do Sistema de Saúde local, regional ou nacional, com base no conjunto de recursos do sistema e na demanda real de atendimentos. É o conjunto dos recursos que deve ser considerado e não o esgotamento pontual de uma instituição. Com isto, a regulação do Sistema de Saúde assume um papel crucial neste processo.

Cabe relembrar que todo e qualquer paciente que procure o Sistema de Saúde deve ser acolhido e atendido, na medida de suas necessidades e das possibilidades de recursos que ainda podem ser alocados. Os tratamentos, ainda que apenas sintomáticos, deverão ser providenciados de forma humana e compassiva. Isto está previsto na Declaração para atendimento de catástrofes da Associação Mundial de Medicina.

Recentemente, no Brasil foram propostas inúmeras de discussão sobre critérios e modos de alocação de recursos na atual situação de pandemia, propostas por diferentes sociedades médicas e científicas, especialmente a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) para critérios de triagem e para a alocação de recursos escassos.

As bases éticas de argumentação que podem ser utilizadas são os Princípios Éticos da Dignidade, Autonomia, Integridade e Vulnerabilidade, propostos por Peter Kemp. 

Para ler mais

sábado, 30 de maio de 2020

COVID-19 e o Uso Compassivo ou Off Label de Medicamentos

José Roberto Goldim

Situações, como as que estamos vivendo na Pandemia de COVID-19, podem levar a utilização de drogas e medicamentos que não tenham liberação específica para este tipo de uso assistencial. É importante diferenciar as situações de Uso Compassivo de drogas e de Uso Off Label de medicamentos.

O Redensevir, produzido pelo laboratório Gilead, é um produto farmacêutico ainda não registrado em qualquer agência regulatória, como a ANVISA no Brasil, e o FDA, nos Estados Unidos. O fabricante disponibilizou uma quantidade de doses do produto para uso assistencial, mesmo antes de seu registro. Este tipo de utilização assistencial precoce caracteriza o que é denominado de Uso Compassivo, ou seja, quando uma droga, ainda experimental e sem qualquer registro, é utilizada para tratar pacientes sem dados que permitam o seu registro junto a uma agência regulatória. O "uso compassivo" se justifica, como uma excepcionalidade, para casos individuais, em função do médico julgar que possa haver um potencial benefício da droga e da ausência de uma terapia medicamentosa eficaz para um paciente acometido de uma determinada doença. Este é o raciocínio utilizado para prescrever assistencialmente o Redensevir a pacientes com COVID-19.

Por outro lado, a cloroquina é um medicamento já liberado, fazem muitos anos, para uso assistencial com indicações específicas. De acordo com a Bula do Produto, elaborada pela FIOCRUZ: "A cloroquina é indicada para profilaxia e tratamento de ataque agudo de malária    causado por Plasmodium vivaxP. ovale P. malarie. Também está indicada no tratamento de amebíase hepática e, em conjunto com outros fármacos, tem eficácia clínica na artrite reumatoide, no lúpus eritematoso sistêmico e lúpus discoide, na sarcoidose e nas doenças de fotossensibilidade como a porfiria cutânea tardia e as erupções polimórficas graves desencadeadas pela luz". O uso da Cloroquina ou de seu análogo, a Hidroxicloroquina, fora desta indicação caracteriza o que se convencionou chamar de Uso Off Label, ou seja, um uso assistencial fora da sua indicação terapêutica aprovada. O Uso Off Label é realizado por um médico assistente tendo em vista o benefício que este medicamento, fora de suas prescrições autorizadas, pode acarretar ao seu paciente assistencial. Este benefício deve ser cotejado contra os riscos associados ao seu uso, que já estão descritos na literatura médica e no próprio processo de liberação do produto. A cloroquina é um medicamento muito conhecido , quando utilizado nas suas indicações usuais, e apresenta inúmeros riscos de eventos adversos graves e esperados, já descritos na sua própria bula.

A droga Redensivir já tem publicados 61 artigos no PUBMED sobre a sua utilização. O artigo mais antigo é de 2016 e se refere ao seu uso em infecções do vírus Ebola. Esta droga já foi testada em macacos e demonstrou eficácia em alguns tipos de contaminação por vírus. No dia 10 de abril de 2020 o New England Journal of Medicine publicou o resultado de um estudo, que acompanhou 61 pacientes nos Estados Unidos, Europa e Ásia que fizeram Uso Compassivo desta droga.  Foi possível constatar, com todos os limites metodológicos deste tipo de estudo, que 68% dos pacientes tratados tiveram alguma melhora clínica. Os autores caracterizaram o estudo como sendo uma coorte, mas, a rigor, esta publicação é uma série de casos.

Em relação ao uso da cloroquina ou seu análogo hidroxicloroquina, para tratamento da COVID-19, existe uma grande controvérsia. Foi divulgado o resultado de um estudo relacionando o uso da cloroquina em pacientes com COVID-19. Eram resultados iniciais, de uma série de 100 pacientes tratados com cloroquina em hospitais da China. Posteriormente, este mesmo grupo de autores teve uma outra publicação, ainda na forma de "journal pre-proof"  de uma outra série de casos em pacientes franceses utilizando cloroquina e azitromicina no tratamento da COVID-19. 
Em um ambiente de incerteza e ansiedade pela busca de algum tratamento, a afirmativa de que a cloroquina seria um tratamento efetivo, como proposto nos dois estudos do pesquisador Didier Raouldt, foi amplamente divulgada pela imprensa e por outras pessoas não vinculadas à área da saúde. Isto gerou, em vários lugares do mundo, a compra desenfreada deste medicamento diretamente nas farmácias. Esta procura provocou um desabastecimento do medicamento, gerando situações de risco e apreensão por parte dos pacientes que já fazem uso assistencial de acordo com as indicações reconhecidas. Também em função destes artigos, estão sendo realizados inúmeros estudos por grupos de pesquisa, em diferentes países do mundo.  Em 11/04/2020, existiam 11 diferentes ensaios clínicos cadastrados no Clinical Trials, inclusive um do Brasil, e na Plataforma Brasil existiam outros doze estudos, sendo quatro multicêntricos e oito unicêntricos. Contudo,  no início de abril de 2020, a Sociedade Internacional de Quimioterapia Antimicrobiana (ISAC) divulgou um posicionamento formal considerando que este último artigo foi considerado como não tendo valor científico mínimo para ser publicado. Este posicionamento não teve uma grande repercussão na imprensa nem no meio científico.

Mesmo profissionais experientes confundem estes dois conceitos - Uso Compassivo e Uso Off Label.  O Prof. Ricardo Kalil, da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, referindo-se ao Uso Compassivo do Redensivir,  afirmou “I would never give this or any other experimental drug off-label to my patients.There is nothing compassionate about compassionate use. You are treating emotion.” 

O Conselho Federal de Medicina divulgou, em 23 de abril de 2020, o Parecer 4/2020 sobre o tratamento de pacientes portadores de COVID-19 com cloroquina e hidroxicloroquina. Neste documento, o Conselho Federal de Medicina propõe que estes medicamentos podem ser utilizados em três diferentes cenários. Os dois primeiros se referem a pacientes com sintomas leves ou com sintomas importantes compatíveis com o quadro clínico de COVID-19. Em ambas situações, o Parecer ressalta que "não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID-19". Na terceira situação, quando o cenário é descrito como sendo associado a "pacientes críticos recebendo cuidados intensivos", a utilização das drogas é caracterizada como sendo Uso Compassivo. Neste mesmo parágrafo existe a observação de que "é difícil imaginar que  (...) possam ter um efeito clinicamente importante". O Parecer continua afirmando que o médico deve "oferecer ao doente o melhor tratamento médico disponível no momento". Na conclusão do Parecer, o CFM propõe, de forma antecipada, que "não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19".

Contrariamente ao que foi divulgado na imprensa, o Parecer do CFM não é uma recomendação ou autorização para o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina. Na própria caracterização da utilização destas drogas o Parecer ressalta que não há "nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID-19". O CFM apenas estabelece que, em caso de prescrição destes medicamentos por um médico, o mesmo não poderá ser questionado desde o ponto de vista ético profissional. No mesmo documento, a caracterização como Uso Compassivo é equivocada, pois os dois medicamentos já estão liberados pela ANVISA, só que para outro tipo de indicação.Desta forma, a sua utilização é como uma prescrição Off Label. 

A Nota Informativa da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, datada de 27/03/2020, e as Orientações do Ministério da Saúde para Tratamento Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da COVID-19, posteriormente divulgada, mas sem data ou responsabilidade institucional indicada no documento, não fazem qualquer referência ao tipo de uso da Hidroxicloroquina ou da Cloroquina. Em ambos os documentos há a indicação da forma de uso individual ou combinado destas drogas fora da indicação para a qual foram liberados pela ANVISA. 

A maior diferença entre o Uso Compassivo e o Uso Off Label é o volume de conhecimento associado aos riscos com o uso da droga. O Uso Off Label, por utilizar um produto já disponível comercialmente, tem um grande volume de dados sobre segurança e tolerabilidade em outros tipos de doenças. Por sua vez, o Uso Compassivo, por ser uma droga nova,  ainda em fase de experimentação, não tem muitos estudos consolidados sobre a sua segurança e tolerabilidade. O Uso Compassivo e o Uso Off Label baseiam-se na presunção de que o paciente poderá vir a ter benefício associado. Desta forma, a relação risco-benefício é diferente entre ambos tipos de usos excepcionais terapêuticos.

Nos Estados Unidos existe a possibilidade da agência regulatória, FDA, dar uma Autorização para Uso Emergencial para uma droga ou conjunto de drogas em situações excepcionais. Esta é a melhor forma de fazer uma liberação,  caso hajam evidências que deem mínima condição de suporte à proposta. A Autorização para Uso Emergencial dá uma garantia para a prescrição adequada realizada pelos médicos e de acesso ao tratamento pelos pacientes, se considerado adequado à sua situação de saúde.. 

Para ler mais
Goldim JR. O uso de drogas ainda experimentais em assistência: extensão de pesquisa, uso compassivo e acesso expandido. Rev Panam Salud Pública / Pan Am J Public Heal. 2008;23:198–206. 

Kolata G. At the Center of a Storm: The Search for a Proven Coronavirus Treatment. New York Times [Internet]. 2020.

Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Farmanguinhos Cloroquina (Bula do profissional de saúde) [Internet]. BulasMed. 2020.

Colson P, Rolain JM, Lagier JC, Brouqui P, Raoult D. Chloroquine and hydroxychloroquine as available weapons to fight COVID-19. Int J Antimicrob Agents [Internet]. 2020;(xxxx):105932.

Gautret P, Lagier J-C, Parola P, Hoang VT, Meddeb L, Mailhe M, et al. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. Int J Antimicrob Agents [Internet]. 2020 Mar 20. 

International Society of Antimicrobial Chemotherapy (ISAC). Statement on IJAA paper Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial (Gautret P et al. PMID 32205204)[Internet]. ISAC.

Conselho Federal de Medicina. Processo-consulta CFM no 8/2020 - Parecer CFM no 4/2020. Brasilia, 23/04/2020.

Conselho Federal de Medicina. CFM condiciona uso de cloroquina e hidroxicloroquina à critério médico e consentimento do paciente. 23/04/2020.

Piller C. Former FDA leaders decry emergency authorization of malaria drugs for coronavirus. Science News 07/04/2020. 


Texto publicado originalmente em 11/04/2020, atualizado em 23/04/2020 e em 30/05/2020

domingo, 24 de maio de 2020

COVID-19 e o Processo de Consentimento na Assistência e na Pesquisa

José Roberto Goldim

A obtenção do consentimento para assistência ou para a pesquisa é fundamental. Salvo situações de atendimentos emergenciais, o consentimento é um dos fundamentos de uma relação adequada entre um profissional de saúde e um paciente ou participante de uma pesquisa. Nas situações emergenciais a premência de tempo associada à necessidade e ao benefício permitem que procedimentos sejam realizados no melhor interesse do paciente e com a finalidade de garantir a sua sobrevivência. 

O processo de consentimento tem três componentes: de capacidade do paciente; de informação e de autorização. A pandemia da COVID-19 teve repercussões em todos estes componentes.

O componente de capacidade se refere às questões psicológicas, morais e legais associadas ao ato de consentir. O paciente deve ter desenvolvimento psicológico-moral compatível com a tomada de decisão no seu melhor interesse. Este desenvolvimento não tem faixas etárias fixas. Um adolescente pode ter desenvolvimento necessário para tomar decisões enquanto que um adulto pode não ter. O fato da pessoa ser idosa, não determina que não tenha mais condições de tomar decisões por si mesma. A capacidade legal tem limites estabelecidos em lei para considerar uma pessoa capaz ou não. No Brasil a capacidade civil é atingida com 18 anos, quando a pessoa pode tomar decisões, na maioria das situações de vida relacional. 

O componente capacidade ficou comprometido quando foi proposto utilizar o critério de idade, de forma isolada, para alocar recursos escassos. Isto foi utilizado em alguns países, e chegou a ser proposto também no Brasil, para decisões tomadas durante a pandemia da COVID-19. Utilizar a idade de forma isolada é destituir a capacidade das pessoas acima deste limite estabelecido, seja ele 65 anos, ou outra idade qualquer. Esta proposta assume que estas pessoas não são capazes sequer de serem consideradas. É uma forma discriminatória que impede que elas participem, a priori, do processo de tomada de decisão, em uma situação do seu maior interesse. As pessoas maiores de idade só são destituídas de sua capacidade legal por meio de decisão judicial. Mesmo assim, a exemplo dos menores de idade, quando isto acontece, alguém assume a sua representação e responde pelos seus melhores interesses.

O componente de informação, na perspectiva do paciente, deve verificar se esta pessoa é efetivamente informável, ou seja, se tem condições de receber as informações e compreende-las. Esta característica inclui questões sensoriais, de idioma e de cognição. Na perspectiva do profissional de saúde, o componente de  informação implica em que ele deve conhecer os procedimentos, os risco e os benefícios associados à situação que envolve a tomada de decisão. Com base nestes conhecimentos, o profissional deve informar de maneira adequada ao paciente ou participante da pesquisa. 

Muitas vezes as pessoas restringem a avaliação do componente de informação apenas ao conteúdo do Termo de Consentimento. É sabido que mais importante do que o Termo de Consentimento, são as informações verbais utilizadas ao longo do processo. O Termo de Consentimentos é o documento que materializa estas informações. Para avaliar se a informação foi adequadamente disponibilizada a um paciente, é importante  verificar a legibilidade deste documento. A legibilidade, traduzida do original "readability", tem recebido várias outras traduções em língua portuguesa, tais como leiturabilidade e apreensibilidade. A legibilidade avalia a estrutura do texto, indicando a dificuldade exigida para a sua leitura. O ideal, para documentos voltados à população em geral, é que o texto tenha uma exigência média de seis anos de escolaridade. 

Em uma avaliação dos Termos de Consentimento utilizados na assistência, no Reino Unido, a exigência de escolaridade variou de 6,3 a 8 anos de escola, ou seja, foram considerados como sendo acessíveis à população à qual se destinam. As Orientações do Ministério da Saúde para Manuseio Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da COVID-19  incluíram, como anexo, um Termo de Ciência e Consentimento. Este documento foi proposto para informar o paciente e obter o seu conhecimento. A avaliação da legibilidade deste documento resultou em uma escolaridade de 27 anos. Da mesma forma, o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul, propôs um Termo de Esclarecimento e Responsabilidade - Uso compassionado de medicamento cloroquina e hidroxicloroquina, que exige 24 anos de estudo. Ou seja, os textos propostos, sem entrar no mérito de seu vocabulário ou conteúdo, mas apenas quanto as suas estruturas, exigem uma escolaridade muito acima da verificada na população brasileira. Em 2018, cerca de 6,8% da população com 15 anos ou mais era analfabeta, elevando-se para 18,6% no grupo acima de 60 anos, e 53,4% não completaram a educação em nível médio. 

O componente de consentimento propriamente dito, ou seja, aquele que obtém a autorização do paciente para a realização do procedimento proposto, deve verificar o grau de coerção associado ao processo de sua obtenção. Habitualmente, é o profissional que tem que avalia se está exercendo algum tipo de influência indevida. Na convicção de que a sua proposta, visando o bem do paciente, o profissional pode tentar convencer, mas não persuadir. O convencimento se baseia na argumentação, em dados passíveis de discussão, enquanto que a persuasão utiliza as crenças e emoções para buscar atingir o seu objetivo. A persuasão pode se transformar em coerção, quado associada a algum tipo de relacionamento hierárquico ou de submissão.

A necessidade do paciente em querer de tratar, a publicidade utilizada para divulgar os supostos benefícios associados ao uso de um medicamento ou procedimento, pode fazer com que esta relação se inverta durante o processo de obtenção do consentimento. O médico é poderá ser persuadido pelo paciente, ou seus familiares, a ter que prescrever uma medicação ou a realizar um procedimento. Mais do que atender a uma necessidade, o médico estará atendendo a um desejo, com base em informações com as quais não concorda, devido a inúmeros riscos associados ou pelos benefícios serem duvidosos ou não comprovados. 

Outra questão importante, é a forma de documentar a autorização do paciente ou de seus representantes, que é o resultado do processo de consentimento. A impossibilidade da presença física de familiares responsáveis para autorizar procedimentos diagnósticos ou tratamentos, fez com que fossem utilizados outros meios, na área assistencial, para informar e obter o consentimento de familiares de pacientes impossibilitados de autorizar. A utilização de chamadas de vídeo, de uso de meios de comunicação por texto, como o WhatsApp, permitiu que este processo se mantivesse adequado, mesmo com estas restrições impostas pela pandemia da COVID-19. Esta utilização de novos meios de relação entre os profissionais e os fmailaires é adequada eticamente em função das circunstâncias decorrentes desta situação excepcional. Na área da pesquisa envolvendo seres humanos, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), por meio das Orientações Para Condução De Pesquisas E Atividade Dos Ceps Durante a Pandemia Provocada Pelo Coronavírus Sars-Cov-2, no item 6.4, também se manifestou a este respeito. Foi dada a autorização para a utilização destes mesmos recursos, já utilizados na assistência. Estes procedimentos, além de documentar a autorização também reduzem os riscos de exposição para pacientes e membros de equipes de pesquisa.

O processo de consentimento, quando bem conduzido, é um dos elementos que garante a adequação da relação entre o profissional de saúde e pacientes ou participantes de uma pesquisa. É um processo de decisão que se compartilha com todos os envolvidos. O consentimento não pode ser reduzido apenas à assinatura do Termo de Consentimento. Este processo é parte das garantias do respeito ao direito de dignidade das pessoas, da sua liberdade e de integridade,  fundamentais nas decisões assistenciais e de pesquisa. Situações excepcionais, como as impostas pela Pandemia da COVID-19, apenas reforçam a necessidade de preservar a adequação destas características, nunca de suprimir as emsmas. 

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sábado, 16 de maio de 2020

COVID-19 e a Ética da Vontade

José Roberto Goldim

O referencial teórico da Ética baseada na Vontade, proposto Pedro Abelardo, no século 12, pode ser associado à reflexão de várias ações de assistência e pesquisa realizadas na vigência da pandemia da COVID-19. 

Pedro Abelardo buscou ter o entendimento do mundo que cercava por meio da razão. Um dos resultados de suas reflexões foi que o valor moral de uma ação depende tanto da intenção quanto do consentimento associados à mesma. São as manifestações da vontade das pessoas que devem ser levadas em conta: a intenção de quem faz a ação e o consentimento de quem sofre a ação. É, talvez, a base de toda a justificativa para a teoria do processo de consentimento, tão discutido na Bioética atual.

Pedro Abelardo, ao analisar o valor moral associado a uma ação realizada por uma pessoa, deslocou  o foco da ação em si para a intenção associada. Isto fica evidente na sua proposta de que "mesmo quando uma ação pode ser entendida como errada, o que vale é a intenção associada". 

É com base em propostas como esta, que foi possível, posteriormente, avaliar a questão da responsabilidade associada à ação em seus aspectos subjetivos e objetivos. A intenção associada à ação é um dos aspectos subjetivos, enquanto que as consequências decorrentes da ação são objetivas. Segundo Thadeu Weber, " a importância da intenção, por exemplo, está claramente expressa na distinção jurídica entre ato doloso e ato culposo, ato com ou sem intenção".

Por outro lado, para garantir o valor moral associado a ação, não basta a intenção ser adequada, a pessoa que sofre a ação deve consentir para que isto ocorra. Pedro Abelardo estabeleceu dois componentes para avaliar a validade de um consentimento: a informação e a liberdade. Ele afirmou que "não comete erro quem é forçado a fazer algo ou o fez por ignorância". Ou seja, para que um consentimento seja válido ele deve basear-se em informações corretas e acessíveis, assim como na liberdade para escolher dentre as alternativas existentes. Paul Ricouer, que retomou a Filosofia da Vontade, enfatizou que "consentir é se entregar, se render ao outro", que "consentir é tomar sobre si, assumir, fazer seu". 

Tanto na perspectiva de quem faz como de quem sofre a ação, é importante caracterizar a diferença entre um ato voluntário e um ato por necessidade. A ação voluntária está aberta às alternativas, é ter a liberdade de escolher uma dentre tantas possibilidades. Por outro lado, a ação por necessidade é premida pelas circunstâncias. Muito depois de Abelardo, já no século 20, a lógica modal estabeleceu claramente a diferença entre necessidade e possibilidade, a primeira como sendo um operador forte e a segunda um operador fraco. 

Pedro Abelardo afirmou que a beneficência, entendida como fazer o bem e evitar o mal, "é dar suporte às necessidades das pessoas". 

Nas atividades assistenciais, o paciente apresenta uma necessidade, que o profissional de saúde busca atender por meio ações. O paciente, em contrapartida, tem que consentir com a realização das mesmas, quando possível. O profissional de saúde deve basear a realização de suas ações no atendimento destas necessidades: esta deve ser a sua intenção primeira. É a intenção de fazer o bem que justifica as ações realizadas por um profissional de saúde em situações de emergência, ainda que sem o seu consentimento. É justamente a beneficência associada a situação de extrema necessidade do paciente, que garante o valor moral associado à ação do profissional. A ausência do consentimento amplia a necessidade de avaliar a adequação da intenção associada à ação.  Estas situações podem ocorrer no atendimento de pacientes em Serviços de Emergência e em Unidades de Tratamento Intensivo.

Quando a intenção não é no sentido de atender aos melhores interesses do paciente, mas sim de buscar outros objetivos, sejam eles quais forem, é que permite caracterizar a possibilidade de um conflito de interesses por parte do agente da ação. Estes interesses secundários podem ser associados, dentre outros, a aspectos econômicos, políticos ou de outras crenças associadas. 

Por outro lado, desde o ponto de vista do consentimento, também podem haver inadequações associadas a restrições de liberdade ou de informações.  A pressão de oferecer pagamento associado à participação em uma pesquisa pode reduzir a liberdade de escolha de pessoas, especialmente nas que já têm vulnerabilidade econômica. Isto está ocorrendo em vários projetos de pesquisa de fase 1 para testar a segurança de vacinas para o SARSCoV-2. Esta possibilidade é permitida no marco regulatório de vários paises para as pesquisas envolvendo seres humanos. Da mesma forma, a falta de informações ou a distorção de dados, também comprometem a validade da obtenção do consentimento. Apresentar benefícios não comprovados, ou ocultar riscos já verificados, fazem com que o consentimento seja baseado em informações inadequadas. 

O pensamento de Pedro Abelardo parte da intenção de quem faz a ação para após incluir o consentimento de quem a sofre. Esta ênfase na intenção associada à ação é que fez com que alguns outros autores denominassem este referencial teórico como Intencionalismo. Esta denominação acabou distorcendo a perspectiva original que aliava à intenção ao consentimento na avaliação do valor moral de uma determinada ação. 

Caracterizar o consentimento como um ato de "entrega", por parte de quem sofre a ação,  permite verificar que o valor deste consentimento depende inerentemente da intenção de quem irá realizar a ação. Este ato de "entrega" é baseado no entendimento, por parte de quem sofre a ação, de que a intenção, de quem a faz, é boa, que visa atender a uma necessidade de quem irá consentir. Se a intenção não for esta, o consentimento, mesmo tendo sido dado, fica prejudicado. O consentimento não isenta a responsabilidade de quem faz a ação. Ao contrário, ressalta a importância associada à realização da ação ao ter que demonstrar, mesmo antes da mesma ser realizada, que a sua intenção é adequada. 

O pensamento de Pedro Abelardo merece ser relembrado pela sua atualidade e pela sua importância associada ao viver, ou seja, às relações estabelecidas entre todos nós. 

Para saber mais



Weber T.. Ética e Filosofia do Direito - Autonomia e Dignidade da pessoa humana. Petrópolis: Vozes; 2013.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

COVID-19, Saúde Global e Saúde Planetária

José  Roberto Goldim



A situação vivida pela Pandemia da COVID-19 permite múltiplas discussões de acordo com o nível de complexidade envolvido: Saúde Individual, Saúde Comunitária; Saúde Pública; Saúde Global e Saúde Planetária.  





Nas discussões sobre o impacto da COVID-19, as questões que envolvem pessoas, comunidades e populações têm sido bastante discutidas. Porém, a  Saúde Global e a Saúde Planetária têm sido mantidas à margem.. 

A Saúde Global não se limita às fronteiras nacionais, busca integrar diferentes áreas de saber relacionadas à saúde e combina o enfoque preventivo da saúde pública, no sentido de abranger populações, com a perspectiva de cuidado individual de pacientes.  Ela foi definida como um campo multi e interdisciplinar cujo foco é melhorar e buscar a equidade em saúde para todas as pessoas. É uma proposta de uma perspectiva "guarda-chuva" para os temas da saúde humana. A Saúde Global é uma perspectiva antropocêntrica, ou seja, é uma proposta especiesista para as questões de saúde, pois aborda este tema apenas na perspectiva humana. O limite de ação da Saúde Global é a Antroposfera. Já existem inúmeras revistas científicas dedicadas exclusivamente às questões de Saúde Global, que já existe como palavra-chave na base PUBMED, desde 2015. A palavra-chave Saúde Global substituiu a anteriormente utilizada: Saúde Mundial.


A Saúde Planetária, por outro lado,  foi definida como sendo a saúde da civilização humana e dos sistemas naturais dos quais depende. Esta definição foi proposta, igualmente no ano de 2015, pela Rockfeller Foundation-Lancet Comission on planetary health.Saúde Planetária tem uma perspectiva biocêntrica, ou seja, amplia a fronteira e alarga a perspectiva de características e elementos envolvidos. É uma proposta que tem a abrangência da Biosfera como u todo. A Saúde Planetária introduz a noção da interdependência humano-ambiental na perspectiva das questões de saúde. Em abril de 2017, foi lançada uma revista específica para este tema: Lancet Planetary Health. Ela se soma às já existentes Lancet Public Health e Lancet Global Health. Outras revistas científicas abriram seções específicas para este tema

Saúde Global
Algumas da políticas utilizadas no enfrentamento da COVID-19 tentaram ter a perspectiva da Saúde Global, mas muitas foram impedidas pelas fronteiras, legislações nacionais e falta de uma perspectiva efetivamente abrangente, em nível transnacional. Na pressão de uma situação de enorme incerteza e pressão social, muitas nações optaram por respostas antigas para problemas novos, ou seja, voltaram a pensar apenas no território dentro de suas fronteiras, como se isto fosse capaz de impedir a propagação do vírus.

Faltaram propostas de Saúde Global efetivas, ou seja, que fossem tomadas em conjunto, por grupos coesos de várias nações. Mesmo a Europa viu ressurgir fronteiras nacionais, antes tidas apenas como uma questão meramente geográfica. Faltou uma política transnacional de alocação de recursos escassos, como respiradores e equipamentos de proteção individual (EPIs), testes diagnósticos. Isto ocorreu em todos os níveis, desde uma simples pessoa até goversno nacionais. A população foi aos supermercados estocar álcool e outros produtos, tidos como estratégicos. Por outro lado, os governos municipais, estaduais e nacionais foram igualmente às compras de forma desarticulada, contribuindo para o esgotamento dos estoques. Muitas vezes, grupos mais necessitados ficaram sem acesso aos produtos, que outros apenas compraram para estocar. Poucas manifestações de efetiva solidariedade foram postas em prática. Ocorreram quebras de contratos de compras já acordadas em função de propostas economicamente mais agressivas e individualistas por parte de compradores e mais lucrativas para os fornecedores. Inclusive ocorreram propostas de investir no desenvolvimento de produtos estratégicos, como vacinas, desde que o produto ficasse disponível apenas para uma população específica de outro país. Várias vacinas, ainda fases iniciais de desenvolvimento, já tem contratos de compra-e-venda fechados com países, de forma a garantir privilégios de acesso. Infelizmente, houve todo um discurso de solidariedade, mas uma prática claramente egoísta.

Saúde Planetária
A proposta da Saúde Planetária têm a possibilidade de auxiliar na identificação das causas da atual pandemia e com isso auxiliar no encaminhamento de alternativas que possam minorar, no futuro, novas situações como esta que estamos todos vivendo.

O Relatório da Comissão de Saúde Planetária da Fundação Rockfeller em conjunto com a Revista Lancet, afirmou que os sistemas naturais da Terra representam uma ameaça crescente à saúde humana. A perspectiva de que os recursos naturais são inesgotáveis e de que estão aí para serem usados e abusados pela espécie humana é que tem gerado este desequilíbrio que agora assusta a todos. 

A partir de Charles Darwin, no final dos anos 1800, a perspectiva de que a espécie humana teve um criação especial e diferente dos demais seres vivos, foi possível entender a interrelação e a interdependência existente na natureza. Na perspectiva ambiental, esta situação de devastação causada pelo uso abusivo de recursos naturais foi denunciada por vários autores, como John Muir, ao criar os parques nacionais dos Estados Unidos, em 1890; Rachel Carlson, ao publicar o seu livro Primavera Silenciosa, em 1963; Aurélio Peccei, ao criar o Clube de Roma, em 1968 ; Arne Naess ao criar o conceito de Ecologia Profunda, em 1973 e José Lutzenberger, ao propor o Manifesto Ecológico Brasileiro, em 1980.

A Bioética também tem feito esta reflexão ao longo da sua história. Desde a sua proposta inicial com Fritz Jahr, em 1926, a Bioética ampliava a reflexão bioética para além dos humanos, ao incluir os animais e as plantas como objeto de consideração. Um pouco antes, em 1923, Albert Schweitzer, ao propor que a reverência à vida é uma ética universal, refletia sobre a necessidade de ter uma visão de solidariedade para todos os níveis de vida. Com Aldo Leopold, na sua Ética da terra, a ampliação atingiu a todos os recursos naturais. Quando Van Rensselaer Potter propôs a sua perspectiva do que seria Bioética, a sua reflexão abarcava a todos os elementos da natureza. 

A proposta de discutir a questão da saúde em uma perspectiva planetária se insere nesta linha de pensamento. O Relatório da Comissão de Saúde Planetária afirmou que "ao explorar de maneira insustentável os recursos da natureza, a civilização humana floresceu, mas agora corre o risco de efeitos substanciais à saúde decorrentes da degradação dos sistemas de suporte de vida da natureza no futuro".

É inquestionável que ocorreram significativos avanços em termos de saúde individual, coletiva, pública e global nestes últimos anos. A expectativa de vida aumentou, inúmeras situações de risco foram minoradas, novas terapêuticas permitiram o tratamento de antigas e novas doenças. Contudo, as mudanças ambientais também têm reflexos na saúde. As mudanças climáticas, a acidificação dos oceanos, a devastação das florestas e a perda de biodiversidade, por exemplo, têm gerado novos e preocupantes problemas à saúde humana.

Um exemplo disto, são as epidemias que têm ocorrido nestas últimas décadas. Muitas delas podem ser associadas à redução das florestas, que acarreta uma ampliação das interações entre diferentes espécies, antes isoladas. Este aumento de interações rompe com o equilíbrio existente entre seres vivos que convivem, agora em uma mesmo espaço restrito . Esta nova situação gera a possibilidade de que haja transmissão de novos vírus e outros parasitas entre diferentes espécies, inclusive a humana. Este é um dos cenários de ação e reflexão da Saúde Planetária.

Com a pandemia da COVID-19, mais do que nunca, a humanidade está se deparando com a situação universal de vulnerabilidade. Todos passaram a ser vulneráveis! Todos necessitam de proteção adicional. Não há possibilidade de fugir para um lugar seguro.  É esta situação, associada à incerteza, que tem gerado a ansiedade vivida pelas pessoas.

Paradoxalmente, as condições ambientais melhoraram na vigência da pandemia com a redução das atividades econômicas e da própria utilização de automóveis e aviões.  

Ecologia Profunda, de Arne Naess, já propunha que toda a natureza tem valor intrínseco, que existe uma igualdade entre as diferentes espécies, que devemos ter uma perspectiva ampliada para além de fronteiras nacionais e, principalmente, alterar a perspectiva de domínio da natureza para uma convivência harmoniosa.  A Saúde Planetária propõe que a Justiça, entendida como não discriminação, seja a base de uma nova proposta de convivência entre todos os elementos presentes na Biosfera, inclusive os humanos. 

A definição dada pela Profa. Eve-Marie Engel, de que a "Bioética é uma reflexão ética sobre os seres vivos, incluído o ser humano, tais como esses seres vivos se apresentam nas relações cotidianas do mundo vivido e nos contextos teóricos bem como práticos da ciência e da pesquisa", se enquadra bem nesta proposta de abordagem planetária.
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Nesta mesma perspectiva que Richard Horton, que é editor da revista LANCET, se pronunciou em um editorial, citando David Hume, de que, 

"sem Justiça a sociedade se dissolve, perde a solidariedade, que é substituída pela solidão". 

É sempre bom lembrar a proposta feita por Lutzemberger, em 1986:

"Só uma visão sistêmica, unitária e sinfônica poderá nos aproximar de uma compreensão do que é nosso maravilhoso planeta vivo".



Para ler mais

Whitmee S, Haines A, Beyrer C, Boltz F, Capon AG, De Souza Dias BF, et al. Safeguarding human health in the Anthropocene epoch: Report of the Rockefeller Foundation-Lancet Commission on planetary health. Lancet [Internet]. 2015;386(10007):1973–2028.

WONCA. Declaration Calling for Family Doctors of the World To Act on Planetary Health Declaration Calling for Family Doctors of the World [Internet]. Bangkok: WONCA; 2019.  

Horton R. Planetary health—worth everything. Lancet [Internet]. 2018 Jun;391(10137):2307. 



Engel EM. O desafio das biotécnicas para a ética e a Antropologia. Veritas 2004;50(2):221.