sábado, 30 de maio de 2020

COVID-19 e o Uso Compassivo ou Off Label de Medicamentos

José Roberto Goldim

Situações, como as que estamos vivendo na Pandemia de COVID-19, podem levar a utilização de drogas e medicamentos que não tenham liberação específica para este tipo de uso assistencial. É importante diferenciar as situações de Uso Compassivo de drogas e de Uso Off Label de medicamentos.

O Redensevir, produzido pelo laboratório Gilead, é um produto farmacêutico ainda não registrado em qualquer agência regulatória, como a ANVISA no Brasil, e o FDA, nos Estados Unidos. O fabricante disponibilizou uma quantidade de doses do produto para uso assistencial, mesmo antes de seu registro. Este tipo de utilização assistencial precoce caracteriza o que é denominado de Uso Compassivo, ou seja, quando uma droga, ainda experimental e sem qualquer registro, é utilizada para tratar pacientes sem dados que permitam o seu registro junto a uma agência regulatória. O "uso compassivo" se justifica, como uma excepcionalidade, para casos individuais, em função do médico julgar que possa haver um potencial benefício da droga e da ausência de uma terapia medicamentosa eficaz para um paciente acometido de uma determinada doença. Este é o raciocínio utilizado para prescrever assistencialmente o Redensevir a pacientes com COVID-19.

Por outro lado, a cloroquina é um medicamento já liberado, fazem muitos anos, para uso assistencial com indicações específicas. De acordo com a Bula do Produto, elaborada pela FIOCRUZ: "A cloroquina é indicada para profilaxia e tratamento de ataque agudo de malária    causado por Plasmodium vivaxP. ovale P. malarie. Também está indicada no tratamento de amebíase hepática e, em conjunto com outros fármacos, tem eficácia clínica na artrite reumatoide, no lúpus eritematoso sistêmico e lúpus discoide, na sarcoidose e nas doenças de fotossensibilidade como a porfiria cutânea tardia e as erupções polimórficas graves desencadeadas pela luz". O uso da Cloroquina ou de seu análogo, a Hidroxicloroquina, fora desta indicação caracteriza o que se convencionou chamar de Uso Off Label, ou seja, um uso assistencial fora da sua indicação terapêutica aprovada. O Uso Off Label é realizado por um médico assistente tendo em vista o benefício que este medicamento, fora de suas prescrições autorizadas, pode acarretar ao seu paciente assistencial. Este benefício deve ser cotejado contra os riscos associados ao seu uso, que já estão descritos na literatura médica e no próprio processo de liberação do produto. A cloroquina é um medicamento muito conhecido , quando utilizado nas suas indicações usuais, e apresenta inúmeros riscos de eventos adversos graves e esperados, já descritos na sua própria bula.

A droga Redensivir já tem publicados 61 artigos no PUBMED sobre a sua utilização. O artigo mais antigo é de 2016 e se refere ao seu uso em infecções do vírus Ebola. Esta droga já foi testada em macacos e demonstrou eficácia em alguns tipos de contaminação por vírus. No dia 10 de abril de 2020 o New England Journal of Medicine publicou o resultado de um estudo, que acompanhou 61 pacientes nos Estados Unidos, Europa e Ásia que fizeram Uso Compassivo desta droga.  Foi possível constatar, com todos os limites metodológicos deste tipo de estudo, que 68% dos pacientes tratados tiveram alguma melhora clínica. Os autores caracterizaram o estudo como sendo uma coorte, mas, a rigor, esta publicação é uma série de casos.

Em relação ao uso da cloroquina ou seu análogo hidroxicloroquina, para tratamento da COVID-19, existe uma grande controvérsia. Foi divulgado o resultado de um estudo relacionando o uso da cloroquina em pacientes com COVID-19. Eram resultados iniciais, de uma série de 100 pacientes tratados com cloroquina em hospitais da China. Posteriormente, este mesmo grupo de autores teve uma outra publicação, ainda na forma de "journal pre-proof"  de uma outra série de casos em pacientes franceses utilizando cloroquina e azitromicina no tratamento da COVID-19. 
Em um ambiente de incerteza e ansiedade pela busca de algum tratamento, a afirmativa de que a cloroquina seria um tratamento efetivo, como proposto nos dois estudos do pesquisador Didier Raouldt, foi amplamente divulgada pela imprensa e por outras pessoas não vinculadas à área da saúde. Isto gerou, em vários lugares do mundo, a compra desenfreada deste medicamento diretamente nas farmácias. Esta procura provocou um desabastecimento do medicamento, gerando situações de risco e apreensão por parte dos pacientes que já fazem uso assistencial de acordo com as indicações reconhecidas. Também em função destes artigos, estão sendo realizados inúmeros estudos por grupos de pesquisa, em diferentes países do mundo.  Em 11/04/2020, existiam 11 diferentes ensaios clínicos cadastrados no Clinical Trials, inclusive um do Brasil, e na Plataforma Brasil existiam outros doze estudos, sendo quatro multicêntricos e oito unicêntricos. Contudo,  no início de abril de 2020, a Sociedade Internacional de Quimioterapia Antimicrobiana (ISAC) divulgou um posicionamento formal considerando que este último artigo foi considerado como não tendo valor científico mínimo para ser publicado. Este posicionamento não teve uma grande repercussão na imprensa nem no meio científico.

Mesmo profissionais experientes confundem estes dois conceitos - Uso Compassivo e Uso Off Label.  O Prof. Ricardo Kalil, da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, referindo-se ao Uso Compassivo do Redensivir,  afirmou “I would never give this or any other experimental drug off-label to my patients.There is nothing compassionate about compassionate use. You are treating emotion.” 

O Conselho Federal de Medicina divulgou, em 23 de abril de 2020, o Parecer 4/2020 sobre o tratamento de pacientes portadores de COVID-19 com cloroquina e hidroxicloroquina. Neste documento, o Conselho Federal de Medicina propõe que estes medicamentos podem ser utilizados em três diferentes cenários. Os dois primeiros se referem a pacientes com sintomas leves ou com sintomas importantes compatíveis com o quadro clínico de COVID-19. Em ambas situações, o Parecer ressalta que "não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID-19". Na terceira situação, quando o cenário é descrito como sendo associado a "pacientes críticos recebendo cuidados intensivos", a utilização das drogas é caracterizada como sendo Uso Compassivo. Neste mesmo parágrafo existe a observação de que "é difícil imaginar que  (...) possam ter um efeito clinicamente importante". O Parecer continua afirmando que o médico deve "oferecer ao doente o melhor tratamento médico disponível no momento". Na conclusão do Parecer, o CFM propõe, de forma antecipada, que "não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19".

Contrariamente ao que foi divulgado na imprensa, o Parecer do CFM não é uma recomendação ou autorização para o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina. Na própria caracterização da utilização destas drogas o Parecer ressalta que não há "nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID-19". O CFM apenas estabelece que, em caso de prescrição destes medicamentos por um médico, o mesmo não poderá ser questionado desde o ponto de vista ético profissional. No mesmo documento, a caracterização como Uso Compassivo é equivocada, pois os dois medicamentos já estão liberados pela ANVISA, só que para outro tipo de indicação.Desta forma, a sua utilização é como uma prescrição Off Label. 

A Nota Informativa da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, datada de 27/03/2020, e as Orientações do Ministério da Saúde para Tratamento Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da COVID-19, posteriormente divulgada, mas sem data ou responsabilidade institucional indicada no documento, não fazem qualquer referência ao tipo de uso da Hidroxicloroquina ou da Cloroquina. Em ambos os documentos há a indicação da forma de uso individual ou combinado destas drogas fora da indicação para a qual foram liberados pela ANVISA. 

A maior diferença entre o Uso Compassivo e o Uso Off Label é o volume de conhecimento associado aos riscos com o uso da droga. O Uso Off Label, por utilizar um produto já disponível comercialmente, tem um grande volume de dados sobre segurança e tolerabilidade em outros tipos de doenças. Por sua vez, o Uso Compassivo, por ser uma droga nova,  ainda em fase de experimentação, não tem muitos estudos consolidados sobre a sua segurança e tolerabilidade. O Uso Compassivo e o Uso Off Label baseiam-se na presunção de que o paciente poderá vir a ter benefício associado. Desta forma, a relação risco-benefício é diferente entre ambos tipos de usos excepcionais terapêuticos.

Nos Estados Unidos existe a possibilidade da agência regulatória, FDA, dar uma Autorização para Uso Emergencial para uma droga ou conjunto de drogas em situações excepcionais. Esta é a melhor forma de fazer uma liberação,  caso hajam evidências que deem mínima condição de suporte à proposta. A Autorização para Uso Emergencial dá uma garantia para a prescrição adequada realizada pelos médicos e de acesso ao tratamento pelos pacientes, se considerado adequado à sua situação de saúde.. 

Para ler mais
Goldim JR. O uso de drogas ainda experimentais em assistência: extensão de pesquisa, uso compassivo e acesso expandido. Rev Panam Salud Pública / Pan Am J Public Heal. 2008;23:198–206. 

Kolata G. At the Center of a Storm: The Search for a Proven Coronavirus Treatment. New York Times [Internet]. 2020.

Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Farmanguinhos Cloroquina (Bula do profissional de saúde) [Internet]. BulasMed. 2020.

Colson P, Rolain JM, Lagier JC, Brouqui P, Raoult D. Chloroquine and hydroxychloroquine as available weapons to fight COVID-19. Int J Antimicrob Agents [Internet]. 2020;(xxxx):105932.

Gautret P, Lagier J-C, Parola P, Hoang VT, Meddeb L, Mailhe M, et al. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. Int J Antimicrob Agents [Internet]. 2020 Mar 20. 

International Society of Antimicrobial Chemotherapy (ISAC). Statement on IJAA paper Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial (Gautret P et al. PMID 32205204)[Internet]. ISAC.

Conselho Federal de Medicina. Processo-consulta CFM no 8/2020 - Parecer CFM no 4/2020. Brasilia, 23/04/2020.

Conselho Federal de Medicina. CFM condiciona uso de cloroquina e hidroxicloroquina à critério médico e consentimento do paciente. 23/04/2020.

Piller C. Former FDA leaders decry emergency authorization of malaria drugs for coronavirus. Science News 07/04/2020. 


Texto publicado originalmente em 11/04/2020, atualizado em 23/04/2020 e em 30/05/2020

domingo, 24 de maio de 2020

COVID-19 e o Processo de Consentimento na Assistência e na Pesquisa

José Roberto Goldim

A obtenção do consentimento para assistência ou para a pesquisa é fundamental. Salvo situações de atendimentos emergenciais, o consentimento é um dos fundamentos de uma relação adequada entre um profissional de saúde e um paciente ou participante de uma pesquisa. Nas situações emergenciais a premência de tempo associada à necessidade e ao benefício permitem que procedimentos sejam realizados no melhor interesse do paciente e com a finalidade de garantir a sua sobrevivência. 

O processo de consentimento tem três componentes: de capacidade do paciente; de informação e de autorização. A pandemia da COVID-19 teve repercussões em todos estes componentes.

O componente de capacidade se refere às questões psicológicas, morais e legais associadas ao ato de consentir. O paciente deve ter desenvolvimento psicológico-moral compatível com a tomada de decisão no seu melhor interesse. Este desenvolvimento não tem faixas etárias fixas. Um adolescente pode ter desenvolvimento necessário para tomar decisões enquanto que um adulto pode não ter. O fato da pessoa ser idosa, não determina que não tenha mais condições de tomar decisões por si mesma. A capacidade legal tem limites estabelecidos em lei para considerar uma pessoa capaz ou não. No Brasil a capacidade civil é atingida com 18 anos, quando a pessoa pode tomar decisões, na maioria das situações de vida relacional. 

O componente capacidade ficou comprometido quando foi proposto utilizar o critério de idade, de forma isolada, para alocar recursos escassos. Isto foi utilizado em alguns países, e chegou a ser proposto também no Brasil, para decisões tomadas durante a pandemia da COVID-19. Utilizar a idade de forma isolada é destituir a capacidade das pessoas acima deste limite estabelecido, seja ele 65 anos, ou outra idade qualquer. Esta proposta assume que estas pessoas não são capazes sequer de serem consideradas. É uma forma discriminatória que impede que elas participem, a priori, do processo de tomada de decisão, em uma situação do seu maior interesse. As pessoas maiores de idade só são destituídas de sua capacidade legal por meio de decisão judicial. Mesmo assim, a exemplo dos menores de idade, quando isto acontece, alguém assume a sua representação e responde pelos seus melhores interesses.

O componente de informação, na perspectiva do paciente, deve verificar se esta pessoa é efetivamente informável, ou seja, se tem condições de receber as informações e compreende-las. Esta característica inclui questões sensoriais, de idioma e de cognição. Na perspectiva do profissional de saúde, o componente de  informação implica em que ele deve conhecer os procedimentos, os risco e os benefícios associados à situação que envolve a tomada de decisão. Com base nestes conhecimentos, o profissional deve informar de maneira adequada ao paciente ou participante da pesquisa. 

Muitas vezes as pessoas restringem a avaliação do componente de informação apenas ao conteúdo do Termo de Consentimento. É sabido que mais importante do que o Termo de Consentimento, são as informações verbais utilizadas ao longo do processo. O Termo de Consentimentos é o documento que materializa estas informações. Para avaliar se a informação foi adequadamente disponibilizada a um paciente, é importante  verificar a legibilidade deste documento. A legibilidade, traduzida do original "readability", tem recebido várias outras traduções em língua portuguesa, tais como leiturabilidade e apreensibilidade. A legibilidade avalia a estrutura do texto, indicando a dificuldade exigida para a sua leitura. O ideal, para documentos voltados à população em geral, é que o texto tenha uma exigência média de seis anos de escolaridade. 

Em uma avaliação dos Termos de Consentimento utilizados na assistência, no Reino Unido, a exigência de escolaridade variou de 6,3 a 8 anos de escola, ou seja, foram considerados como sendo acessíveis à população à qual se destinam. As Orientações do Ministério da Saúde para Manuseio Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da COVID-19  incluíram, como anexo, um Termo de Ciência e Consentimento. Este documento foi proposto para informar o paciente e obter o seu conhecimento. A avaliação da legibilidade deste documento resultou em uma escolaridade de 27 anos. Da mesma forma, o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul, propôs um Termo de Esclarecimento e Responsabilidade - Uso compassionado de medicamento cloroquina e hidroxicloroquina, que exige 24 anos de estudo. Ou seja, os textos propostos, sem entrar no mérito de seu vocabulário ou conteúdo, mas apenas quanto as suas estruturas, exigem uma escolaridade muito acima da verificada na população brasileira. Em 2018, cerca de 6,8% da população com 15 anos ou mais era analfabeta, elevando-se para 18,6% no grupo acima de 60 anos, e 53,4% não completaram a educação em nível médio. 

O componente de consentimento propriamente dito, ou seja, aquele que obtém a autorização do paciente para a realização do procedimento proposto, deve verificar o grau de coerção associado ao processo de sua obtenção. Habitualmente, é o profissional que tem que avalia se está exercendo algum tipo de influência indevida. Na convicção de que a sua proposta, visando o bem do paciente, o profissional pode tentar convencer, mas não persuadir. O convencimento se baseia na argumentação, em dados passíveis de discussão, enquanto que a persuasão utiliza as crenças e emoções para buscar atingir o seu objetivo. A persuasão pode se transformar em coerção, quado associada a algum tipo de relacionamento hierárquico ou de submissão.

A necessidade do paciente em querer de tratar, a publicidade utilizada para divulgar os supostos benefícios associados ao uso de um medicamento ou procedimento, pode fazer com que esta relação se inverta durante o processo de obtenção do consentimento. O médico é poderá ser persuadido pelo paciente, ou seus familiares, a ter que prescrever uma medicação ou a realizar um procedimento. Mais do que atender a uma necessidade, o médico estará atendendo a um desejo, com base em informações com as quais não concorda, devido a inúmeros riscos associados ou pelos benefícios serem duvidosos ou não comprovados. 

Outra questão importante, é a forma de documentar a autorização do paciente ou de seus representantes, que é o resultado do processo de consentimento. A impossibilidade da presença física de familiares responsáveis para autorizar procedimentos diagnósticos ou tratamentos, fez com que fossem utilizados outros meios, na área assistencial, para informar e obter o consentimento de familiares de pacientes impossibilitados de autorizar. A utilização de chamadas de vídeo, de uso de meios de comunicação por texto, como o WhatsApp, permitiu que este processo se mantivesse adequado, mesmo com estas restrições impostas pela pandemia da COVID-19. Esta utilização de novos meios de relação entre os profissionais e os fmailaires é adequada eticamente em função das circunstâncias decorrentes desta situação excepcional. Na área da pesquisa envolvendo seres humanos, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), por meio das Orientações Para Condução De Pesquisas E Atividade Dos Ceps Durante a Pandemia Provocada Pelo Coronavírus Sars-Cov-2, no item 6.4, também se manifestou a este respeito. Foi dada a autorização para a utilização destes mesmos recursos, já utilizados na assistência. Estes procedimentos, além de documentar a autorização também reduzem os riscos de exposição para pacientes e membros de equipes de pesquisa.

O processo de consentimento, quando bem conduzido, é um dos elementos que garante a adequação da relação entre o profissional de saúde e pacientes ou participantes de uma pesquisa. É um processo de decisão que se compartilha com todos os envolvidos. O consentimento não pode ser reduzido apenas à assinatura do Termo de Consentimento. Este processo é parte das garantias do respeito ao direito de dignidade das pessoas, da sua liberdade e de integridade,  fundamentais nas decisões assistenciais e de pesquisa. Situações excepcionais, como as impostas pela Pandemia da COVID-19, apenas reforçam a necessidade de preservar a adequação destas características, nunca de suprimir as emsmas. 

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sábado, 16 de maio de 2020

COVID-19 e a Ética da Vontade

José Roberto Goldim

O referencial teórico da Ética baseada na Vontade, proposto Pedro Abelardo, no século 12, pode ser associado à reflexão de várias ações de assistência e pesquisa realizadas na vigência da pandemia da COVID-19. 

Pedro Abelardo buscou ter o entendimento do mundo que cercava por meio da razão. Um dos resultados de suas reflexões foi que o valor moral de uma ação depende tanto da intenção quanto do consentimento associados à mesma. São as manifestações da vontade das pessoas que devem ser levadas em conta: a intenção de quem faz a ação e o consentimento de quem sofre a ação. É, talvez, a base de toda a justificativa para a teoria do processo de consentimento, tão discutido na Bioética atual.

Pedro Abelardo, ao analisar o valor moral associado a uma ação realizada por uma pessoa, deslocou  o foco da ação em si para a intenção associada. Isto fica evidente na sua proposta de que "mesmo quando uma ação pode ser entendida como errada, o que vale é a intenção associada". 

É com base em propostas como esta, que foi possível, posteriormente, avaliar a questão da responsabilidade associada à ação em seus aspectos subjetivos e objetivos. A intenção associada à ação é um dos aspectos subjetivos, enquanto que as consequências decorrentes da ação são objetivas. Segundo Thadeu Weber, " a importância da intenção, por exemplo, está claramente expressa na distinção jurídica entre ato doloso e ato culposo, ato com ou sem intenção".

Por outro lado, para garantir o valor moral associado a ação, não basta a intenção ser adequada, a pessoa que sofre a ação deve consentir para que isto ocorra. Pedro Abelardo estabeleceu dois componentes para avaliar a validade de um consentimento: a informação e a liberdade. Ele afirmou que "não comete erro quem é forçado a fazer algo ou o fez por ignorância". Ou seja, para que um consentimento seja válido ele deve basear-se em informações corretas e acessíveis, assim como na liberdade para escolher dentre as alternativas existentes. Paul Ricouer, que retomou a Filosofia da Vontade, enfatizou que "consentir é se entregar, se render ao outro", que "consentir é tomar sobre si, assumir, fazer seu". 

Tanto na perspectiva de quem faz como de quem sofre a ação, é importante caracterizar a diferença entre um ato voluntário e um ato por necessidade. A ação voluntária está aberta às alternativas, é ter a liberdade de escolher uma dentre tantas possibilidades. Por outro lado, a ação por necessidade é premida pelas circunstâncias. Muito depois de Abelardo, já no século 20, a lógica modal estabeleceu claramente a diferença entre necessidade e possibilidade, a primeira como sendo um operador forte e a segunda um operador fraco. 

Pedro Abelardo afirmou que a beneficência, entendida como fazer o bem e evitar o mal, "é dar suporte às necessidades das pessoas". 

Nas atividades assistenciais, o paciente apresenta uma necessidade, que o profissional de saúde busca atender por meio ações. O paciente, em contrapartida, tem que consentir com a realização das mesmas, quando possível. O profissional de saúde deve basear a realização de suas ações no atendimento destas necessidades: esta deve ser a sua intenção primeira. É a intenção de fazer o bem que justifica as ações realizadas por um profissional de saúde em situações de emergência, ainda que sem o seu consentimento. É justamente a beneficência associada a situação de extrema necessidade do paciente, que garante o valor moral associado à ação do profissional. A ausência do consentimento amplia a necessidade de avaliar a adequação da intenção associada à ação.  Estas situações podem ocorrer no atendimento de pacientes em Serviços de Emergência e em Unidades de Tratamento Intensivo.

Quando a intenção não é no sentido de atender aos melhores interesses do paciente, mas sim de buscar outros objetivos, sejam eles quais forem, é que permite caracterizar a possibilidade de um conflito de interesses por parte do agente da ação. Estes interesses secundários podem ser associados, dentre outros, a aspectos econômicos, políticos ou de outras crenças associadas. 

Por outro lado, desde o ponto de vista do consentimento, também podem haver inadequações associadas a restrições de liberdade ou de informações.  A pressão de oferecer pagamento associado à participação em uma pesquisa pode reduzir a liberdade de escolha de pessoas, especialmente nas que já têm vulnerabilidade econômica. Isto está ocorrendo em vários projetos de pesquisa de fase 1 para testar a segurança de vacinas para o SARSCoV-2. Esta possibilidade é permitida no marco regulatório de vários paises para as pesquisas envolvendo seres humanos. Da mesma forma, a falta de informações ou a distorção de dados, também comprometem a validade da obtenção do consentimento. Apresentar benefícios não comprovados, ou ocultar riscos já verificados, fazem com que o consentimento seja baseado em informações inadequadas. 

O pensamento de Pedro Abelardo parte da intenção de quem faz a ação para após incluir o consentimento de quem a sofre. Esta ênfase na intenção associada à ação é que fez com que alguns outros autores denominassem este referencial teórico como Intencionalismo. Esta denominação acabou distorcendo a perspectiva original que aliava à intenção ao consentimento na avaliação do valor moral de uma determinada ação. 

Caracterizar o consentimento como um ato de "entrega", por parte de quem sofre a ação,  permite verificar que o valor deste consentimento depende inerentemente da intenção de quem irá realizar a ação. Este ato de "entrega" é baseado no entendimento, por parte de quem sofre a ação, de que a intenção, de quem a faz, é boa, que visa atender a uma necessidade de quem irá consentir. Se a intenção não for esta, o consentimento, mesmo tendo sido dado, fica prejudicado. O consentimento não isenta a responsabilidade de quem faz a ação. Ao contrário, ressalta a importância associada à realização da ação ao ter que demonstrar, mesmo antes da mesma ser realizada, que a sua intenção é adequada. 

O pensamento de Pedro Abelardo merece ser relembrado pela sua atualidade e pela sua importância associada ao viver, ou seja, às relações estabelecidas entre todos nós. 

Para saber mais



Weber T.. Ética e Filosofia do Direito - Autonomia e Dignidade da pessoa humana. Petrópolis: Vozes; 2013.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

COVID-19, Saúde Global e Saúde Planetária

José  Roberto Goldim



A situação vivida pela Pandemia da COVID-19 permite múltiplas discussões de acordo com o nível de complexidade envolvido: Saúde Individual, Saúde Comunitária; Saúde Pública; Saúde Global e Saúde Planetária.  





Nas discussões sobre o impacto da COVID-19, as questões que envolvem pessoas, comunidades e populações têm sido bastante discutidas. Porém, a  Saúde Global e a Saúde Planetária têm sido mantidas à margem.. 

A Saúde Global não se limita às fronteiras nacionais, busca integrar diferentes áreas de saber relacionadas à saúde e combina o enfoque preventivo da saúde pública, no sentido de abranger populações, com a perspectiva de cuidado individual de pacientes.  Ela foi definida como um campo multi e interdisciplinar cujo foco é melhorar e buscar a equidade em saúde para todas as pessoas. É uma proposta de uma perspectiva "guarda-chuva" para os temas da saúde humana. A Saúde Global é uma perspectiva antropocêntrica, ou seja, é uma proposta especiesista para as questões de saúde, pois aborda este tema apenas na perspectiva humana. O limite de ação da Saúde Global é a Antroposfera. Já existem inúmeras revistas científicas dedicadas exclusivamente às questões de Saúde Global, que já existe como palavra-chave na base PUBMED, desde 2015. A palavra-chave Saúde Global substituiu a anteriormente utilizada: Saúde Mundial.


A Saúde Planetária, por outro lado,  foi definida como sendo a saúde da civilização humana e dos sistemas naturais dos quais depende. Esta definição foi proposta, igualmente no ano de 2015, pela Rockfeller Foundation-Lancet Comission on planetary health.Saúde Planetária tem uma perspectiva biocêntrica, ou seja, amplia a fronteira e alarga a perspectiva de características e elementos envolvidos. É uma proposta que tem a abrangência da Biosfera como u todo. A Saúde Planetária introduz a noção da interdependência humano-ambiental na perspectiva das questões de saúde. Em abril de 2017, foi lançada uma revista específica para este tema: Lancet Planetary Health. Ela se soma às já existentes Lancet Public Health e Lancet Global Health. Outras revistas científicas abriram seções específicas para este tema

Saúde Global
Algumas da políticas utilizadas no enfrentamento da COVID-19 tentaram ter a perspectiva da Saúde Global, mas muitas foram impedidas pelas fronteiras, legislações nacionais e falta de uma perspectiva efetivamente abrangente, em nível transnacional. Na pressão de uma situação de enorme incerteza e pressão social, muitas nações optaram por respostas antigas para problemas novos, ou seja, voltaram a pensar apenas no território dentro de suas fronteiras, como se isto fosse capaz de impedir a propagação do vírus.

Faltaram propostas de Saúde Global efetivas, ou seja, que fossem tomadas em conjunto, por grupos coesos de várias nações. Mesmo a Europa viu ressurgir fronteiras nacionais, antes tidas apenas como uma questão meramente geográfica. Faltou uma política transnacional de alocação de recursos escassos, como respiradores e equipamentos de proteção individual (EPIs), testes diagnósticos. Isto ocorreu em todos os níveis, desde uma simples pessoa até goversno nacionais. A população foi aos supermercados estocar álcool e outros produtos, tidos como estratégicos. Por outro lado, os governos municipais, estaduais e nacionais foram igualmente às compras de forma desarticulada, contribuindo para o esgotamento dos estoques. Muitas vezes, grupos mais necessitados ficaram sem acesso aos produtos, que outros apenas compraram para estocar. Poucas manifestações de efetiva solidariedade foram postas em prática. Ocorreram quebras de contratos de compras já acordadas em função de propostas economicamente mais agressivas e individualistas por parte de compradores e mais lucrativas para os fornecedores. Inclusive ocorreram propostas de investir no desenvolvimento de produtos estratégicos, como vacinas, desde que o produto ficasse disponível apenas para uma população específica de outro país. Várias vacinas, ainda fases iniciais de desenvolvimento, já tem contratos de compra-e-venda fechados com países, de forma a garantir privilégios de acesso. Infleizmente, houve todo um discurso de solidariedade, mas uma prática claramente egoísta.

Saúde Planetária
A proposta da Saúde Planetária têm a possibilidade de auxiliar na identificação das causas da atual pandemia e com isso auxiliar no encaminhamento de alternativas que possam minorar, no futuro, novas situações como esta que estamos todos vivendo.

O Relatório da Comissão de Saúde Planetária da Fundação Rockfeller em conjunto com a Revista Lancet, afirmou que os sistemas naturais da Terra representam uma ameaça crescente à saúde humana. A perspectiva de que os recursos naturais são inesgotáveis e de que estão aí para serem usados e abusados pela espécie humana é que tem gerado este desequilíbrio que agora assusta a todos. 

A partir de Charles Darwin, no final dos anos 1800, a perspectiva de que a espécie humana teve um criação especial e diferente dos demais seres vivos, foi possível entender a interrelação e a interdependência existente na natureza. Na perspectiva ambiental, esta situação de devastação causada pelo uso abusivo de recursos naturais foi denunciada por vários autores, como John Muir, ao criar os parques nacionais dos Estados Unidos, em 1890; Rachel Carlson, ao publicar o seu livro Primavera Silenciosa, em 1963; Aurélio Peccei, ao criar o Clube de Roma, em 1968 ; Arne Naess ao criar o conceito de Ecologia Profunda, em 1973 e José Lutzenberger, ao propor o Manifesto Ecológico Brasileiro, em 1980.

A Bioética também tem feito esta reflexão ao longo da sua história. Desde a sua proposta inicial com Fritz Jahr, em 1926, a Bioética ampliava a reflexão bioética para além dos humanos, ao incluir os animais e as plantas como objeto de consideração. Um pouco antes, em 1923, Albert Schweitzer, ao propôr que a reverência à vida é uma ética universal, refletia sobre a necessidade de ter uma visão de solidariedade para todos os níveis de vida. Com Aldo Leopold, na sua Ética da terra, a ampliação atingiu a todos os recursos naturais. Quando Van Rensselaer Potter propôs a sua perspectiva do que seria Bioética, a sua reflexão abarcava a todos os elementos da natureza. 

A proposta de discutir a questão da saúde em uma perspectiva planetária se insere nesta linha de pensamento. O Relatório da Comissão de Saúde Planetária afirmou que "ao explorar de maneira insustentável os recursos da natureza, a civilização humana floresceu, mas agora corre o risco de efeitos substanciais à saúde decorrentes da degradação dos sistemas de suporte de vida da natureza no futuro".

É inquestionável que ocorreram significativos avanços em termos de saúde individual, coletiva, pública e global nestes últimos anos. A expectativa de vida aumentou, inúmeras situações de risco foram minoradas, novas terapêuticas permitiram o tratamento de antigas e novas doenças. Contudo, as mudanças ambientais também têm reflexos na saúde. As mudanças climáticas, a acidificação dos oceanos, a devastação das florestas e a perda de biodiversidade, por exemplo, têm gerado novos e preocupantes problemas à saúde humana.

Um exemplo disto, são as epidemias que têm ocorrido nestas últimas décadas. Muitas delas podem ser associadas à redução das florestas, que acarreta uma ampliação das interações entre diferentes espécies, antes isoladas. Este aumento de interações rompe com o equilíbrio existente entre seres vivos que convivem, agora em uma mesmo espaço restrito . Esta nova situação gera a possibilidade de que haja transmissão de novos vírus e outros parasitas entre diferentes espécies, inclusive a humana. Este é um dos cenários de ação e reflexão da Saúde Planetária.

Com a pandemia da COVID-19, mais do que nunca, a humanidade está se deparando com a situação universal de vulnerabilidade. Todos passaram a ser vulneráveis! Todos necessitam de proteção adicional. Não há possibilidade de fugir para um lugar seguro.  É esta situação, associada à incerteza, que tem gerado a ansiedade vivida pelas pessoas.

Paradoxalmente, as condições ambientais melhoraram na vigência da pandemia com a redução das atividades econômicas e da própria utilização de autom[óveis e aviões.  

Ecologia Profunda, de Arne Naess, já propunha que toda a natureza tem valor intrínseco, que existe uma igualdade entre as diferentes espécies, que devemos ter uma perspectiva ampliada para além de fronteiras nacionais e, principalmente, alterar a perspectiva de domínio da natureza para uma convivência harmoniosa.  A Saúde Planetária propõe que a Justiça, entendida como não discriminação, seja a base de uma nova proposta de convivência entre todos os elementos presentes na Biosfera, inclusive os humanos. 

A definição dada pela Profa. Eve-Marie Engel, de que a "Bioética é uma reflexão ética sobre os seres vivos, incluído o ser humano, tais como esses seres vivos se apresentam nas relações cotidianas do mundo vivido e nos contextos teóricos bem como práticos da ciência e da pesquisa", se enquadra bem nesta proposta de aboradegm planetária.
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Nesta mesma perspectiva que Richard Horton, que é editor da revista LANCET, se pronunciou em um editorial, citando David Hume, de que, sem Justiça a sociedade se dissolve, perde a solidariedade, que é substituída pela solidão. 

É sempre bom lembrar a proposta feita por Lutzemberger, em 1986:

Só uma visão sistêmica, unitária e sinfônica poderá nos aproximar de uma compreensão do que é nosso maravilhoso planeta vivo.



Para ler mais

Whitmee S, Haines A, Beyrer C, Boltz F, Capon AG, De Souza Dias BF, et al. Safeguarding human health in the Anthropocene epoch: Report of the Rockefeller Foundation-Lancet Commission on planetary health. Lancet [Internet]. 2015;386(10007):1973–2028.

WONCA. Declaration Calling for Family Doctors of the World To Act on Planetary Health Declaration Calling for Family Doctors of the World [Internet]. Bangkok: WONCA; 2019.  

Horton R. Planetary health—worth everything. Lancet [Internet]. 2018 Jun;391(10137):2307. 



Engel EM. O desafio das biotécnicas para a ética e a Antropologia. Veritas 2004;50(2):221.


sexta-feira, 1 de maio de 2020

COVID-19 e Alteridade na prática

José Roberto Goldim

É sempre importante retomar o tema da Alteridade. Duas situações merecem ser melhor discutidas: a importância da possibilidade de reconhecer a face do outro e a necessidade de proteção recíproca gerada pelas relações interpessoais.

Os profissionais de saúde ao terem que utilizar os equipamentos de proteção individual necessários à sua proteção, dos demais profissionais e dos pacientes, vestem roupas que não permitem diferenciar características pessoais e profissionais, além de ter o seu rosto, a sua face, pelo menos em parte, encoberta. Tudo isto leva, pelo menos parcialmente, a uma despersonalização.  

È especialmente a face que me dá a possibilidade de reconhecer e ser reconhecido. Ocultar o rosto com máscaras e protetores faciais, é impedir que isto ocorra. É apenas mais alguém que está alí presente, mas que não é passível de ser reconhecido. Em muitas fotos e relatos aparecem profissionais com o seu nome e profissão identificados no próprio avental de proteção, em letras grandes escritas pelos próprios profissionais. 

A idéia de propor a utilização de crachás de grande tamanho possibilita reverter, pelo menos parcialmente, esta situação, desde que mantidas as condições de garantir a segurança dos pacientes e dos profissionais. Ter a possibilidade de escolher pessoalmente uma foto para o crachá é um início de uma relação: é escolher como quer ser reconhecido. Ao fazer documentos, em muitas situações é imposta a utilização de uma foto que a pessoa não se sente representada, que a própria pessoa não se sente adequadamente representada, Poder utilizar fotos pessoais anteriores é resgatar boas memórias, é introduzir no ambiente conturbado da assistência, a possibilidade de compartilhar momentos felizes já vividos. Ser reconhecido pelo nome e pela profissão é permitir que cada um seja identificado na sua singularidade. Esta possibilidade de ter o seu rosto visto novamente, de seu nome ser divulgado e a sua profissão identificada é que estabelece a possibilidade de ser reconhecido e de reconhecer.  É romper com a relação com qualquer um, para se tornar um conjunto de relações com pessoas que identifico. É a presença da biografia de cada um em meio a um cenário que dificulta estas relações.

Alteridade é também se responsabilizar pelo outro e por si mesmo. É desta interação responsável entre o eu e o tu, que surge a possibilidade de ultrapassar o plano indivídual, para surgir o nós, o coletivo inclusivo e compartilhado. É baseado nesta relação de corresponsabilidade que surge a justificativa de uma ação tão simples quanto utilizar máscaras faciais em todos os locais públicos. As máscaras usuais não protegem o indivíduo adequadamente, mas impedem, de forma bem efetiva a contaminação dos outros. Desta forma, ao proteger o outro, eu estou me protegendo. Esta rede de proteção recíproca, compartilhada, é que permitirá o convívio social por um bom tempo. Quanto mais pessoas utilizarem máscaras, mais pessoas estarão sendo protegidas: é o oposto da contaminação. Ser egoísta não vai ser efetivo, ser apenas altruísta, também não. Ser corresponsável é a melhor resposta: uns protegendo os outros e assim se protegendo a si mesmo.  

A não neutralidade perante o outro, expressa pela identificação, pelo reconhecimento, pela proteção recíproca é a resposta mais adequada, é a efetivação da Alteridade na prática diária de cada um de nós. A vulnerabilidade que atingiu a todos, tornou ainda mais atual as palavras do poeta John Donne, em 1624, de que nenhum ser humano é uma ilha, todos somos parte de um continente, reconhecendo que cada morte de alguém, me diminui como pessoa, por isso, não adianta perguntar por quem os sinos estão tocando, pois eles tocam por cada um de nós. 

domingo, 12 de abril de 2020

COVID-19 e a Alocação de pacientes em projetos de pesquisa

José Roberto Goldim


A atual pandemia da COVID-19 trouxe consigo inúmeros desafios para a reflexão, um deles é a realização simultânea de projetos de pesquisa envolvendo pacientes com os mesmos critérios de inclusão, ou seja, projetos que competem entre si para alocar pacientes. Isto nos leva a refletir sobre as interações da assistência e da pesquisa existentes na pesquisa clínica, especialmente entre a relação de risco-benefício individual e coletivo. 

Na pesquisa clínica existe uma sobreposição das atividades de assistência com as de pesquisa. Na assistência o paciente procura um serviço de saúde em função de uma necessidade, enquanto que na pesquisa o pesquisador oferece a possibilidade de uma pessoa participar ou não de um determinado projeto de interesse do próprio pesquisador. A necessidade é um operador modal forte, enquanto que a possibilidade é um operador fraco. É da associação da necessidade com a possibilidade que surge um terceiro operador: a contingência.

A necessidade associada à assistência caracteriza que é necessário fazer o tratamento, se e somente se não for possível fazer o tratamento. Idealmente, apenas a impossibilidade de atender pode impedir a realização do tratamento. Isto pode ocorrer por múltiplas causas, como, por exemplo, o esgotamento de recursos do próprio sistema de saúde, por meio da falta de leitos, de equipamentos, de medicamentos.

A possibilidade associada à pesquisa não-clínica estabelece que é possível participar da pesquisa, se e somente se não é necessário participar da própria pesquisa. Se houver necessidade envolvida, a liberdade de escolha fica tolhida, negando a própria noção de possibilidade. 

A pesquisa clínica, ao associar estas duas características de necessidade e possibilidade, estabelece um novo cenário, que o de contingência. É a contingência  que deve nortear as atividades de pesquisa clínica. A contingência estabelece que é possível participar da pesquisa para fazer tratamento, mas não necessariamente tem que participar da pesquisa para se tratar.

Na atual Pandemia da COVID-19 esta característica está muito presente nos projetos de pesquisa envolvendo atividades assistenciais em pacientes, com alguns outros componentes potencialmente complicadores. Um deles é a realização simultânea de vários projetos de pesquisa propondo diferentes tipos de intervenções em um mesmo grupo de pacientes.

O processo de recrutamento destes pacientes para participação em diferentes projetos de pesquisa caracteriza um problema de alocação de recursos, neste caso referindo-se aos pacientes Habitualmente, podem ser utilizados os critérios de necessidade, merecimento e de prognóstico para realizar este processo de alocação.

O critério da necessidade pode ser referir tanto ao paciente quanto ao profissional. O paciente pode estar necessitando acesso a drogas ainda experimentais, a novas terapias e procedimentos para encaminhar a sua assistência. Da mesma forma, o pesquisador tem a necessidade de incluir pacientes como participantes de seu estudo para poder gerar novos conhecimentos. Esta conjugação de necessidade é que pode gerar a perda de liberdade de escolha. O critério da necessidade é sempre utilizado com base no presente. Ou seja, o cenário de necessidades é permanentemente mutável, de acordo com as condições dos pacientes, que podem ou não preencher os critérios de inclusão, assim como o projeto pode ou não ter completado o tamanho de amostra esperado.

O critério de merecimento pode se referir tanto ao paciente, quanto a equipe de pesquisa. Este critério sempre remete a situações passadas. Um exemplo disto pode ser a utilização de um sistema que priorize o projeto que foi aprovado em primeiro lugar. Mesmo tendo outros projetos concorrentes, o mais antigo teria prioridade sobre os demais, pelo simples fato de ter sido aprovado primeiro. Por outro lado, poderá ser realizada uma busca ativa competitiva dos pacientes elegíveis, por parte das equipes de pesquisa. Com este método, os pacientes seriam incluídos na medida em que as equipes de pesquisa os localizam. Estas duas situações utilizam o critério de merecimento denominado first come, first serve. Ou seja, o pesquisador que chegar primeiro recruta o paciente para o seu projeto. O critério de merecimento também pode utilizar méritos pessoais, como posições hierárquicas, reconhecimento científico ou social ou relações de poder para estabelecer a alocação. É sempre bom ressaltar que o critério de merecimento, quando adotado de forma isolada, pode gerar um importante viés de seleção no processo de alocação de recursos. Basta lembrar o que ocorreu, anteriormente, com a utilização isolada do critério "tempo de fila de espera" para alocação de órgãos em transplantes.

O critério de prognóstico também é uma alternativa, sendo principalmente utilizado para exclusão de possíveis participantes, isto é, para não selecionar pacientes, mais do que para incluí-los em um estudo. O critério baseado no prognóstico tem um importante viés de aferição associado, principalmente associados à dinâmica do quadro de saúde dos pacientes. Os prognósticos na área da saúde tem sempre um grande componente de incerteza. O critério de prognóstico se baseia no referencial utilitarista, que avalia a adequação em função da perspectiva coletiva e não individual. Ao lidar com pacientes com necessidades assistenciais, a perspectiva individual é sempre central. Se os pesquisadores têm, pelo menos a dúvida, de que a intervenção de seu projeto de pesquisa clínica possa vir a beneficiar os pacientes, esta oferta de participação deve ser feita de maneira justa, evitando discriminação e competições desnecessárias entre equipes. E o contrário também é verdadeiro, ou seja, a discussão dos riscos e incertezas associados é fundamental.

Um importante fator a ser utilizado nas avaliações entre incluir ou não um paciente em uma pesquisa é a equipolência. Este conceito não implica em reconhecer que exista uma equivalência entre os diferentes projetos de pesquisa que estão competindo para serem realizados em um mesmo grupo de pacientes. A equipolência estabelece que existe indiferença entre as opções. Se existir alguma evidência de que uma das alternativas é melhor para aquele paciente determinado, é ela que deve ser oferecida a todos os participantes.

Havendo vários projetos que competem na alocação de pacientes simultaneamente, o mais indicado é que a instituição, onde os mesmos irão ocorrer, assuma um papel ativo na seleção dos pacientes. Pode ser constituído um grupo específico para realizar esta atividade. Esta decisão não pode ficar a cargo de apenas uma única pessoa ou de um grupo que tenham interesses específicos. Esta decisão, realizada por um grupo independente, visa proteger os pacientes de situações constrangedoras de múltiplas propostas de participação em diferentes projetos. Da mesma forma, a realização de pesquisas não pode comprometer o dever de prestar assistência qualificada aos pacientes, além de proteger os profissionais de saúde, que atuam junto a estes pacientes, de uma  sobrecarga adicional de trabalho.

O grupo encarregado de estabelecer a alocação dos pacientes aos diferentes projetos com inclusão simultânea deverá adotar algumas diretrizes para o seu funcionamento. Algumas considerações éticas, já utilizadas na reflexão sobre a adequação dos profissionais assistenciais, também podem ser utilizadas neste processo de alocação de pacientes aos diferentes projetos de pesquisa competidores. Estas diretrizes podem utilizar quatro fatores, como a Visibilidade, a Inclusividade, a Razoabilidade e a Prontidão. 

A Visibilidade deve garantir que o processo de tomada de decisão, realizado pelo grupo, seja fundamentado e possa ser discutido por todos que estiverem envolvidos. A Visibilidade é que permite uma adequada prestação de contas das ações e decisões tomadas pelo grupo responsável pelas decisões de alocação. É a Visibilidade que garante a transparência.

A Inclusividade deve garantir que todos os setores participantes possam ter alguma participação no processo de decisão. É a Inclusividade que deve também orientar a própria seleção dos membros do grupo encarregado por alocar pacientes aos diferentes projetos de pesquisa aprovados. Deverão participar membros experientes das equipes assistenciais que terão seus pacientes incluídos nos projetos de pesquisa. Da mesma forma, o grupo deve incluir pesquisadores que possam auxiliar no entendimento das demandas que os diferentes projetos irão aportar à assistência. Outro segmento fundamental de ter representação neste grupo de tomada de decisão são profissionais acostumados a lidar com avaliações de risco, como os membros de Comissões de Segurança e Qualidade assistencial. Além destes membros, representantes das áreas administrativas também podem ser incluídos para avaliar o impacto da realização dos projetos.

A Razoabilidade estabelece que as decisões devem se basear em evidências, princípios e valores que permitam adequação às necessidades assistenciais dos possíveis participantes das pesquisas. A Razoabilidade deve garantir a efetividade por meio da reciprocidade e da proporcionalidade. A reciprocidade deve refletir a possibilidade de trocas mútuas e de cooperação entre os envolvidos, especialmente entre as equipes de pesquisa e de assistência. A proporcionalidade deve realizar as avaliações dos efeitos relativos a cada uma das intervenções propostas pelos diferentes estudos competidores. É a Razoabilidade que deve garantir que as diferenças possam ser levadas em consideração no processo de tomada de decisão. As diferenças não podem ser transformadas em desigualdades, em uma forma de discriminação. Uma proposta feita pelo Prof. Robert Veatch, para enfrentar problemas de inclusão de pacientes em projetos de pesquisa seria uma estratégia de pseudo-aleatorização. De acordo com esta proposta, somente seriam incluidos pacientes que fossem indiferentes frente aos diferentes projetos. Ou seja, caso o paciente manifestasse alguma preferência dentre as alternativas, esta seria a escolha. O grupo encarregado pela alocação poderia utilizar esta abordagem ao selecionar pacientes, mesmo com critérios de inclusão semelhantes, de acordo com outras características assistenciais. Estas características poderiam estar vinculadas à própria capacidade de absorção destas atividades na rotina assistencial.

A Prontidão é uma característica fundamental. As decisões podem e devem ser revistas, se necessário, e de acordo com as características mutáveis das condições de atendimento assistencial e de novos estudos que sejam aprovados. É a Prontidão que também permite dar respostas em tempo real às disputas e demandas das equipes assistenciais e de pesquisa envolvidas, assim como da própria instituição e da sociedade.

É fundamental ao adequado funcionamento do grupo encarregado pela alocação de pacientes aos diferentes projetos de pesquisa competidores manter a perspectiva de considerar a contingência associada à realização das pesquisas clínicas; avaliar a coerência entre os Princípios Éticos da Dignidade, da Autonomia, da Integridade e da Vulnerabilidade; e a preservação dos fatores de Visibilidade, Inclusividade, Razoabilidade e Prontidão, 

Em suma, este é mais um desafio gerado pela pandemia da COVID-19 que terá que ser enfrentado por todas as instituições.

Para ler mais

Agamben G. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Stanford: Stanford University; 1998. 

Goldim JR. Equipolência. Porto Alegre, Site de Bioética, 2001.

Veatch RM. The irrelevance of equipoise. J Med Philos. 2007;32(2):167–83. 

Royal College of Physicians. Ethical dimensions of COVID-19 for frontline staff [Internet]. London: Royal College of Physicians; 2020. 

Organización Panamericana de la Salud (OPAS) - Programa Regional de Bioética. Orientación ética sobre cuestiones planteadas por la pandemia del nuevo coronavirus (COVID-19). Washington DC: OPAS; 2020.

Goldim JR. Bioética Complexa. Referenciais Teóricos: Princípios. You Tube, 2020.


COVID-19 e as confusões entre Atestado, Declaração e Certidão de Óbito

José Roberto Goldim



O Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Saúde, em função da excepcionalidade da situação gerada pela pandemia da COVID-19, publicaram uma portaria conjunta, com a finalidade de permitir o sepultamento de pacientes que forem a óbito neste período, sem a necessidade de ter a sua Certidão de Óbito. 

Isto gerou um grande mal entendido na imprensa, pois alguns meios de comunicação divulgaram que os pacientes poderiam ser sepultados sem Atestado de Óbito. No próprio título desta reportagem havia uma outra informação equivocada de que " quando não se souber ao certo a causa, morte poderá ser registrada como "provável para Covid-19".




Mesmo entre profissionais de saúde existe uma confusão entre os usos de três expressões: Atestado de Óbito, Declaração de Óbito e Certidão de Óbito. 

O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina usam de forma indistinta as denominações Atestado de Óbito e Declaração de Óbito. Em várias resoluções, pareceres e publicações estas duas denominações são utilizadas. No Código de Ética Médica é utilizada apenas a expressão Declaração de Óbito, mas é dito que o médico deve atestar o óbito do paciente. Atestado de Óbito era a denominação utilizada antes da década de 1970. O documento era formalmente denominado de Atestado Médico de Causa de Morte. Este nome foi alterado para Declaração de Óbito em 1976, mas a utilização da expressão Atestado de Óbito permanece até os dias de hoje.

A denominação correta para o documento que o médico deve fornecer com a finalidade de documentar a morte de um paciente é Declaração de Óbito.  É um documento padronizado, único e com fornecimento restrito e controlado. A Declaração de Óbito é um documento que pode ser fornecido exclusivamente por médicos. A Declaração de Óbito tem, no mínimo, duas funções: uma epidemiológica e outra legal. 

A Declaração de Óbito é o documento básico do Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM do Ministério da Saúde, que é utilizado por todas as instâncias do sistema de saúde. As ações de vigilância sanitária em muito se baseiam nas informações fornecidas pelos médicos nos diferentes campos da Declaração de Óbito. A Declaração de Óbito documenta o fim da vida de um indivíduo, estabelecendo os aspectos biológicos que caracterizaram esta situação

Este mesmo documento, segundo a Lei dos Registros Públicos – Lei 6.015/1973, serve para que os Cartórios de Registro Civil possam fornecer a Certidão de Óbito, que é indispensável para as formalidades legais do sepultamento. A Certidão de Óbito encerra o viver de uma pessoa, isto é, a sua biografia. 

Fazendo uma analogia entre o início e o final de vida, é prerrogativa do médico fornecer a Declaração de Nascido Vivo e a Declaração de Óbito. Com base nestes documentos, o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais pode então fornecer, respectivamente, as Certidões de Nascimento e de Óbito. Reiterando a diferença: o documento médico é a Declaração e o legal é a Certidão.

A Portaria conjunta do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério da Saúde apenas dispensou a necessidade da Certidão de Óbito para facilitar a realização de sepultamentos, evitando que ocorra um longo período entre o óbito em si e o seu registro em cartório. A justificativa para encurtar este período é sanitária. A própria Portaria garante que todos os direitos ficam preservados e que os familiares terão um prazo de até 60 dias para efetivar o registro em cartório e terem acesso à Certidão de Óbito.

Outra confusão que ocorreu com a interpretação superficial do texto da Portaria foi a questão do diagnóstico da causa do óbito. O Parágrafo Único do Artigo 3o da Portaria estabeleceu que "havendo morte por doença respiratória suspeita para Covid-19, não
confirmada por exames ao tempo do óbito, deverá ser consignado na Declaração de Óbito a descrição da causa mortis ou como“provável para Covid-19” ou “suspeito para Covid-19”. Esta recomendação tem como objetivo evitar que a ausência de um resultado de um teste diagnóstico confirmatório para a COVID-19 não tivesse, pelo menos a sua caracterização como uma suspeita diagnóstica. Este dado é de grande importância para o monitoramento epidemiológico da Pandemia.

Para ler mais

Brasil. Conselho Nacional de Justiça e Ministério da Saúde. Portaria conjunta no 1, de 30 de março de 2020. [Internet]. Brasilia: CNJ; 2020.  

Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul. Atestado de óbito [Internet]. Porto Alegre: CREMERS; 2018.