quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

COVID-19, incerteza, ambiguidade e ansiedade

 José Roberto Goldim


Na década de 1970, Tversky e Kahneman realizaram pesquisas sobre a questão de fazer julgamentos em cenários de incerteza. Eles propuseram que a ambiguidade surge da falta de qualidade, de quantidade e da coerência entre as informações disponíveis sobre um determinado assunto.

O cenário que estamos vivendo durante a pandemia tem como características: um excesso na quantidade de informações, com uma qualidade duvidosa e com muita incoerência entre as mesmas. 

Quanto a qualidade da informação, a pandemia tem gerado uma produção científica impressionante. O volume de artigos publicados é gigantesco. Em menos de um ano, foram indexados na base PUBMED, mais de 104 mil artigos. Isto significa um artigo novo a cada cinco minutos. O desenvolvimento de inúmeras vacinas e a realização de pesquisas sobre a sua segurança, tolerabilidade e eficácia em um curto espaço de tempo, é a prova da capacidade de geração de conhecimentos pela comunidade científica mundial. Muitos trabalhos científicos publicados já foram retratados, ou seja, foram avaliados como não tendo valor científico. Por outro lado, a facilidade com que as informações podem ser divulgadas e disseminadas nas redes sociais e meios de comunicação também gerou uma proliferação de notícias sem qualquer base de conhecimentos. Esta geração de notícias, no mínimo, duvidosas, não é por simples desconhecimento, mas também é realizada como produção de ignorância intencional. Com um grande volume de informações, é muito difícil fazer uma triagem do que é, ou não, válido.

Em 2003, quando houve a epidemia de SARS, foi criada a palavra Infodemia para caracterizar o grande volume de informações  associadas àquela situação. Esta palavra foi uma conjugação dos termos Informação Epidemia. Foi uma forma descrever as dificuldades decorrentes da desinformação associada ao volume de informações veiculadas.

A grande quantidade de informações, disponibilizadas diariamente, tem o efeito de reduzir o impacto destas mesmas informações, pelo simples fato de serem reiteradamente divulgadas. Isto já foi caracterizado pela Lei de Shannon, proposta na década de 1940. Esta Lei estabeleceu que o impacto de uma informação é inversamente proporcional à sua frequência.  Ou seja, de tanto um assunto ser veiculado, o seu impacto acaba por ser reduzido: é a banalização da informação. Um exemplo disto, é a divulgação das mortes causadas pela COVID-19. As primeiras mortes causaram grande comoção e apreensão na população. Porém, com a evolução da pandemia, este efeito foi sendo progressivamente atenuado. Por exemplo, nos Estados Unidos, apenas no dia 30 de dezembro de 2020, foram comunicadas 3808 mortes. Qual foi o impacto desta informação sobre a população norte-americana e mundial? Apenas para fazer um comparativo, o atentado de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas de Nova Iorque, causou 2977 mortes. Este episódio gerou um gigantesco impacto mundial, acarretando mudanças em vários aspectos da sociedade norte-americana e mundial. Ou outra comparação possível, seria de que este mesmo número de mortes corresponderia à queda, com todas as vítimas fatais, de mais de 20 aviões Boeing 737-800.

Shannon, 1948

A coerência das informações é um fator muito importante na redução da ambiguidade associada a uma decisão em situações de incerteza associada. A comunidade científica, especialmente na área da saúde, frequentemente realiza encontros que visam a elaboração de consensos sobre determinados assuntos ainda não devidamente consolidados na literatura científica. 

Uma pessoa leiga pode ficar confusa quando um especialista faz uma recomendação, com base em informações científicas, e uma outra pessoa, com grande visibilidade social, como uma liderança política, por exemplo, dá outras informações contrárias, ou age de forma exatamente inversa ao preconizado. A falta de coerência gera desconforto e desconfiança. Existe um outro risco, que é o decorrente da disseminação de informações sobre aspectos científicos e de saúde, realizada por pessoas sem qualificação científica ou profissional para isto. A repercussão destas opiniões pode ser muito grande, especialmente quando emitidas por pessoas tidas como "celebridades". 

Esta repercussão pode ser explicada, pelo menos em parte, pelo Efeito Dunning-Kruger. Em 1999, estes dois pesquisadores, a partir de dados obtidos em quatro diferentes experimentos, conseguiram estabelecer uma associação entre o grau de conhecimento, ou competência para lidar com uma determinada situação, e a confiança associada às suas afirmativas. Os autores esperavam que houvesse uma relação direta entre conhecimento/competência com a confiança. Isto realmente foi verificado nos grupos de pessoas com competência média e alta onde foi verificada uma crescente autoconfiança associada. Paradoxalmente, o grupo das pessoas com baixa competência para lidar com a mesma situação, apresentou uma alta autoconfiança ao dar as suas opiniões. Autoconfiança sem base em conhecimentos. É esta autoonfiança infundada que dá credibilidade a uma simples opinião, sem uma base de conhecimentos que a sustente. Um bom exemplo disto é a divulgação de "informações" sobre os efeitos genéticos das vacinas. Muitas postagens são tão enfáticas que parecem ter alguma razão. Muitas pessoas se assustam e acabam se posicionando contra o uso das vacinas. É um exemplo bem típico do que Kruger e Dunning denominaram de "montanha da estupidez".


Kruger & Dunning, 1999

Um cientista sempre vai reconhecer que existe uma possibilidade de erro, de incerteza associada aos seus argumentos. Porém, uma pessoa, que tem baixa competência científica, gera uma opinião convicta, com base em uma aparente certeza. Este confronto de argumentos científicos com opiniões leigas enfáticas, tem sido muito frequentemente ao longo da pandemia.  

Lidar com incerteza sempre gera ansiedade. Por sua vez, a ambiguidade, gerada pela falta de qualidade, pelo excesso de quantidade e pela falta de coerência, pode interferir  na avaliação dos riscos associados a uma dada situação. A ambiguidade pode gerar avaliações de riscos podem ser minimizados ou maximizados. Esta mistura de ansiedade, incerteza e ambiguidade é muito delicada, pois pode gerar escolhas com efeitos catastróficos para si e para os outros. Esta talvez seja uma das explicações possíveis para os fenômenos sociais que estão ocorrendo em vários países. 

Para ler mais


Shannon CE. A Mathematical Theory of Communication. Bell Syst Tech J. 1948;27:379–423, 623–656. 




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