domingo, 7 de fevereiro de 2021

COVID-19 e a utilização de vacinas fora do Programa Nacional de Imunização

 

José Roberto Goldim


O Brasil tem uma longa e reconhecida atuação na área de imunização. O Programa Nacional de Imunização (PNI) existe, de forma estruturada e atuante, desde 1973. Contudo, as discussões sobre vacinas e saúde pública remontam ao início do século 20, com o enfrentamento da varíola e da febre amarela. O PNI é anterior a estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS).

A estrutura do SUS, estabelecida pela Lei 8080/1990, permite a possibilidade da participação de serviços privados de assistência à saúde (Art. 20). Estes serviços privados também deverão observar os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento (art.22).

Estas duas considerações são importantes para delimitar as articulações privadas, propostas nas duas primeiras semanas de janeiro de 2021, visando a compra, distribuição e aplicação das vacinas para COVID-19. Vale lembrar que, salvo alguma outra proposta não adequadamente divulgada, estas foram as primeiras tentativas de compra privada de vacinas durante a pandemia. 

Estas duas iniciativas, uma da Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas (ABCVAC), e outra de um grupo de empresários, que buscam complementar as ações já em andamento do PNI na área das vacinas COVID-19.

A ABCVAC afirma ter uma possibilidade de compra de cinco milhões de doses da vacina produzida pela empresa Bharat Biotech da Índia. Estas doses seriam disponibilizadas para a venda na rede de clínicas de vacinação associadas a ABCVAC.

A ABCVAC alegou que a sua proposta é adequada e dentro das propostas do SUS, no sentido de que em outras campanhas de vacinação estas mesmas clínicas também vacinavam as pessoas fora do âmbito do SUS.

A vacina da Bharat Biotech ainda não teve os resultados dos estudos fase 3 publicados, o que dificulta a liberação, ainda que em caráter emergencial, para uso assistencial. Uma outra exigência, de ter estudos clínicos realizados no Brasil, foi flexibilizada pela ANVISA em decisão recente envolvendo outra vacina.

Por sua vez, o grupo de empresários afirmou ter tido uma oferta de venda, por parte de um dos investidores da vacina da AstraZeneca, de um lote de 33 milhões de doses, com uma compra mínima de 11 milhões de doses. Os empresários fizeram uma proposta ao governo federal de que doariam metade das doses para serem aplicadas no SUS.

A oferta de uma doação de doses de vacinas, complementarmente àquelas utilizadas fora dos critérios do PNI, pode parecer atraente, mas, na realidade, é prejudicial, pois é uma "doação condicionada", ou seja, deixa de ser uma doação e  passa a ser uma troca.

Os valores da compra de cada dose, segundo esta oferta do investidor, seriam cerca de quatro vezes superiores aos pagos pelo governo federal pela mesma vacina, sem contar com a possibilidade de serem acrescidos impostos a estes valores. Uma outra dificuldade adicional seria a liberação de compra de vacinas e medicamentos por empresas que não negociam habitualmente estes produtos. Haveria a necessidade de um prévio cadastramento específico junto aos órgãos governamentais.

A AstraZeneca e o fundo, citado como sendo o investidor que iria vender a sua cota de vacinas, desmentiram publicamente a possibilidade desta transação. A AstraZeneca informou que na atual situação estaria vendendo vacinas apenas para governos ou organizações multilaterais.  Vale lembrar que, naquele mesmo período, a empresa farmacêutica estava sendo pressionada pela Europa para cumprir os prazos de entrega de compras já contratadas.

Após estas manifestações, não ficou claro quem estaria negociando esta venda aos empresários e muito menos as condições de compra divulgadas. 

Ambas as propostas visavam atender a uma demanda semelhante: vacinar trabalhadores de setores privados visando a sua imunização para garantir a continuidade das atividades econômicas. Na proposta dos empresários havia também proposta de estender esta vacinação também aos familiares.

A primeira manifestação do governo, a estas duas propostas, foi no sentido de que o PNI teria cobertura suficiente para atender a estas demandas. Houve a manifestação do governo federal no sentido de que não seriam autorizadas compras privadas de vacina de que, neste momento, o fornecimento será centralizado pelo Ministério da Saúde. Contudo, em menos de uma semana, houve uma mudança no sentido de que esta proposta, em especial a dos empresários, seria bem-vinda. E o governo federal, inclusive encaminhou uma carta à empresa AstraZeneca manifestando a sua aprovação a esta proposta de compra privada.

Alguns empresários, que haviam sido citados como membros deste grupo, desmentiram que estavam interessados em vacinar apenas seus funcionários. Afirmaram que apenas fariam uma compra privada se todas as doses fossem doadas ao SUS e que não aceitariam a quebra das prioridades estabelecidas no PNI..

A reação da população a esta proposta foi avaliada em uma pesquisa de opinião publicizada, envolvendo 2500 pessoas de todo o Brasil, divulgada em 05 de fevereiro. Apenas 33% das pessoas entrevistadas se manifestaram no sentido de achar justa a vacinação de pessoas para a COVID-19, na atual situação sanitária vigente. Nos resultados, o grupo de pessoas, com renda superior a dez salários mínimos, teve a maior aceitação, com 60% aceitando como justa a possibilidade de vacinação paralela ao SUS.

Inúmeros outros grupos de profissionais também se manifestaram no sentido de conseguirem antecipar a sua vacinação fora dos critérios estabelecidos pelo PNI. Em algumas propostas esta antecipação seria estendida também aos seus familiares. Em algumas destas propostas havia inclusive o custo por pessoa, que seria de R$800,00. Em outros grupos, houve a solicitação de liberação de vacinas do SUS por critérios não estabelecidos no PNI.

A direção do Hospital Sírio Libanês fez uma solicitação ao seu Comitê de Bioética no sentido de se manifestar sobre este tema. No dia 29 de janeiro o Comitê de Bioética do Hospital Sírio Libanês de manifestou por meio de parecer, divulgado pela própria instituição, no sentido da inadequação ética desta proposta. O parecer utiliza uma clara e adequada argumentação ética para justificar que “a compra e distribuição de doses de vacina pela iniciativa privada, gerando a vacinação de indivíduos fora dos grupos prioritários que mais se beneficiam, fere os princípios fundamentais da equidade, da integralidade, da universalidade e da justiça distributiva, ferindo não só os próprios fundamentos do SUS, mas também a própria lógica que gera o benefício de uma campanha de vacinação”.

O Comitê de Bioética Clínica do HCPA aprovou uma nota de apoio ao parecer do Comitê de Bioética do Hospital Sírio Libanês. A Rede de Comitês de Bioética, que é um grupo ainda informal, está solicitando que outras instituições também se manifestem em relação a este mesmo parecer.

Em situações de escassez de recursos, como a vigente em relação a imunização para a COVID-19, os critérios de alocação devem ser discutidos com a sociedade, como um todo, e não apenas por setores específicos. Estes critérios de alocação têm que ser eticamente defensáveis. Os critérios diferenciarão grupos, mas não podem discriminar,  por este mesmo motivo. As características utilizadas devem ser diretamente vinculadas à situação de de emergência ou catástrofe associadas à alocação destes recursos. É fundamental que haja visibilidade e clareza na apresentação dos critérios de alocação.

A abordagem de situações como esta deve envolver a avaliação da adequação aos princípios da dignidade, da liberdade, da integridade e da vulnerabilidade. 

Todas as pessoas devem ter a sua dignidade preservada. É um critério que une a todos, sem distinção.

Na vigência de uma situação de emergência sanitária mundial, tão grave quanto a que estamos enfrentando na pandemia da COVID-19, todos também estamos em uma situação de vulnerabilidade. Todas as pessoas estão necessitando de alguma forma de proteção adicional, seja em qual âmbito de necessidade física, mental ou social.

As escolhas de grupos prioritários devem ser feitas com base na preservação da integridade pessoal e coletiva. A adequada avaliação de riscos associados a cada grupo de pessoas deve ser cotejada com os correspondentes benefícios da medida de imunização. Os fatores de exposição, de continuidade de exposição ao vírus, de maior risco de manifestações graves, de maior taxa de letalidade, são exemplos de critérios que podem orientar esta avaliação envolvendo a integridade. 

A liberdade das pessoas é um bem fundamental, que deve ser considerado. O equilíbrio entre a liberdade pessoal e a segurança da vida em grupo é imprescindível. Utilizar a liberdade individual como justificativa para esta ação complementar ao SUS só se justifica no em situações onde não haja escassez de recursos. 

Na atual situação mundial de pandemia, com grande de escassez de recursos, que irá perdurar por um longo período, permitir uma ação paralela, e não complementar seria quebrar esta questão da equidade. 

O PNI estabeleceu critérios de priorização para o recebimento de vacinas. Esta deve ser a estratégia a ser seguida. O acesso a um sistema complementar deve ser um opção, uma escolha da pessoa, mas nunca uma situação de oportunidade desigual.


Para ler mais:

Bermudez J. Pandemia, solidariedade e vacinas: disputa predatória no mundo. E o Brasil? Conselho Nacional de Saúde, 01/02/2021.

Hospital Sírio Libanês - Comitê de Bioética. Parecer do Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês sobre a ética da compra privada de vacinas contra COVID19 durante situação de pandemia. 2021;(29/01). 

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