domingo, 19 de janeiro de 2025

Ficção científica ou Ciência fictícia: o risco de uma brincadeira

José Roberto Goldim
Márcia Santana Fernandes

Se o Prof. Ubaldo Kanflutz, reitor da Universidade de Ciências Fictícias da Sbórnia, tivesse feito esta publicação que vamos comentar, tudo estaria adequado, pois é uma apresentação teatral que tem personagens e entidades fictícias. Mas, quando isto ocorre com uma aparência de ciência verdadeira, a questão muda.

A revista científica International Journal of Surgery Case Reports tem um fator de impacto de 0,6. É um valor considerado como baixo na área da Cirurgia, mas que indica, ainda assim, que os artigos ali publicados são citados por outros autores. O CiteScore, que representa o número médio de citações de cada artigo publicado,  é de 1,1. Esta revista é publicada por uma editora consagrada, tem um corpo editorial e todos os artigos são avaliados de forma independente por revisores. 

Em agosto de 2024, a revista publicou uma Carta ao Editor com o título Practice of neurosurgery on Saturn. Apesar de estar publicada como uma correspondência, a publicação seguiu o roteiro de uma série de três relatos de casos cirúrgicos, inclusive com um Abstract que apresenta os elementos chave do material publicado, e seis descritores, ou Keywords. Os dois autores tem suas credenciais acadêmicas apresentadas ao final do texto, incluindo a suas respectivas contribuições para a elaboração do mesmo.

Nesta Carta/Artigo constam três relatos de pacientes fictícios atendidos em um país, igualmente fictício, denominado de Illusionland, localizado no planeta Saturno. Segundo o texto, Saturno seria habitado por 60 milhões de homo sapiens sapiens, que migraram da Terra fazem 30 anos. 

Nestes três relatos cirúrgicos é descrito o uso de medicamentos reais, tais como pregabalina, gabapentina, amirtriptilina, clominpramina e carbamazepina, assim como de outro fictício: idinexazepam. Da mesma forma é citado um equipamento cirúrgico, denominado de zekaknife, que também é fictício. No artigo é dito que este insrtrumento é comparável a um equipamento real de radiocirurgia, que é a gamma knife.

Constam apenas duas referências bibliográficas na publicação. A primeira se refere ao juramento de Hipócrates, com uma citação incompleta e fora dos padrões estabelecidos pela própria revista. A outra citação é do conto Os Inimigos, de Anton Tchekhov. 

Vale lembrar que esta publicação recebeu um identificador de DOI (https://doi.org/10.1016/j.ijscr.2024.110139) e já  foi catalogada na base PUBMED, no formato de artigo, recebendo os indexadores do PMID (39153336) e PMCID (PMC11378218). No seu registro não consta qualquer indicativo de que é um texto ficcional ou de que os dados publicados não são verdadeiros.

Quando de sua publicação, vários pesquisadores divulgaram este artigo como uma curiosidade. O que nos preocupou, desde o início, foi o fato de não haver, ao longo de toda a publicação, ou na sua catalogação, menção ao fato de ser uma brincadeira.

Algum tempo após a publicação do artigo, o Editor da revista, R. David Rosin, publicou uma nota de esclarecimento a respeito desta publicação. Ele afirma que a revisão foi feita por ele mesmo e que a publicação foi feita com algumas revisões. Neste suposto esclarecimento, ele novamente não refere que o texto é de ficção. Ele ainda se coloca, como editor, a disposição para publicar outros textos semelhantes.

Logo após a publicação da nota de esclarecimento do editor a nossa preocupação se ampliou, em função do risco deste tipo de informação ficcional ser classificada como sendo real. Resolvemos encaminhar uma Carta ao Editor com algumas considerações que julgamos relevantes. A nossa carta foi publicada, igualmente com um erro de referência no encaminhamento para o texto da nota de esclarecimento do editor.

As nossas maiores preocupações, associadas ao texto publicado, foram as seguintes:

a) a publicação foi feita na seção de Cartas ao Editor, mas está formatada como um artigo.  Nas normas de publicação da revista não há previsão de publicação de artigos como Carta ao Editor. Esta confusão ficou evidente quando da catalogação da publicação na base de dados da PUBMED. Não há menção na catalogação de que a publicação é uma Carta ao Editor. Inclusive o resumo, deste suposto artigo, foi incluído no seu registro; 

b) o artigo foram incluídos seis descritores, ou palavras-chave, inclusive um para "aspectos éticos". Existe um termo padronizado que seria muito adequado a esta situação: "Obra de Ficção", ou "Fictional Work". A definição utilizada no vocabulário MeSH da base PUBMED define esta palavra-chave como: "Trabalhos sobre escrita criativa, não apresentados como baseados em fatos". A utilização deste descritor tornaria a publicação adequada;

c) no item Conformidade com padrões éticos, os autores declaram que o artigo apresenta resultados de uma pesquisa observacional que não exigiu aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa. O suposto artigo publica uma série de três casos cirúrgicos fictícios. Divulgar dados forjados  em uma revista científica, sem qualquer menção a ser uma obra de ficção, caracteriza uma fraude científica;

d) consta, neste mesmo item sobre questões éticas, que o Comitê de Ética em Pesquisa do Centre Clinical de Soyaux/França afirmou que não haveria necessidade de aprovação ética para este artigo, nem seria necessária a obtenção de consentimento informado. Este Comitê está vinculado a instituição hospitalar privada existente na cidade de Soyaux, onde um dos autores tem atuação profissional.  Esta dispensa de avaliação ética e de obtenção de consentimento seria adequada a uma publicação ficcional. Porém, vale ressaltar, que esta caracterização não consta em qualquer parte da publicação;

e) os autores afirmam, nos aspectos éticos, que foram obtidos os consentimentos de todas as pessoas incluídas nestes estudo. Isto fica contraditório com a afirmação de que o Comitê de Ética em Pesquisa já havia dispensado a sua obtenção. Por ser uma obra de ficção, não foram incluídos pacientes reais, mas sim criados dados fictícios;

f) posteriormente, logo após o item dos aspectos éticos, os autores declaram que o artigo não contém estudos envolvendo seres humanos ou animais. Esta afirmativa reitera a confusão, pois se não foram incluídos seres humanos não deveriam ter sido obtidos os consentimentos. Seria melhor se os autores tivessem afirmado que esta publicação se refere a casos fictícios;


g) um outro fator que pode gerar confusão e ambiguidade é a referência a medicamentos e equipamentos existentes e fictícios sem a devida diferenciação entre eles. Estas referências a produtos reais e fictícios, mescladas ou comparadas entre si, podem gerar uma credibilidade aos demais dados fictícios publicados;

h) as referências bibliográficas, incluídas no artigo, não utilizam os padrões preconizados pelas normas da própria revista.  A referência ao Juramento de Hipócrates é vaga e  incompleta, não permitindo a sua adequada recuperação. A outra referência, relativa ao texto de Anton Tchekhov,  está igualmente incompleta. O agravante é que esta referência contém um link associado, que direciona para uma indicação de outra publicação, diferente da citada no próprio texto dos autores. É preocupante que o Editor tenha declarado, na sua nota de esclarecimento, que ele próprio fez a revisão do material antes de ser publicado, inclusive tendo encaminhado sugestões.

O fato mais significativo associado a esta publicação é a omissão de que este texto é ficcional. Um leitor humano, minimamente esclarecido, entende que esta publicação se trata de uma obra de ficção científica, pois não existem seres humanos habitando o planeta Saturno e, muito menos, cirurgias sendo lá realizadas. No entanto, as bases de dados e os programas de inteligência artificial, não tem esta capacidade de discernir. Estas bases e plataformas assumem as informações que lhes são fornecidas ou os metadados captados pelos seus algoritmos de aprendizado de máquina. Na base do PUBMED esta publicação é considerada como válida, tanto que após o seu registro constam outras publicações similares, como quatro artigos de cirurgia e um de mecânica celeste envolvendo Saturno. Nas plataformas de inteligência artificial esta informação também poderá ser considerada como sendo válida, pois foi publicada em uma revista científica existente, vinculada a uma editora reconhecida e com avaliação por um corpo editorial. Ou seja, uma publicação com dados científicos validados. Esta é a sua maior inadequação: a publicação de dados fictícios sendo incorporada acriticamente às bases de conhecimentos tidos como cientificamente validados. 

A Ciência se baseia em observações reais, em fatos e evidências, não em dados fictícios.  Esta publicação torna difusa a fronteira entre ficção científica e ciência fictícia, pois publica dados fictícios em uma revista científica, sem qualquer menção a esta peculiaridade do artigo publicado.  

Esta é uma forma de quebra de integridade científica, que envolve autores e editores: publicar dados fictícios em uma revista científica como sendo uma informação válida. Identificar este tipo de situação é uma questão fundamental da Ética na Ciência. 


Referências 

Mostofi K, Peyravi M. Practice of neurosurgery on Saturn. Int J Surg Case Rep. 2024;122(August):3–5. 

Rosin RD. Regarding the letter to the editor: “Practice of neurosurgery on saturn.” Int J Surg Case Rep. 2024 Nov:110665. 

Goldim JR, Fernandes MS. Science fiction or fictitious science.  Int J Surg Case Rep. 2025 Jan:126:110757.


domingo, 5 de janeiro de 2025

Síndrome do Familiar Distante

 José Roberto Goldim


A relação médico-paciente, ou profissional de saúde-paciente, é habitualmente entendida na perspectiva de um relacionamento entre duas pessoas. Em algumas áreas, como Pediatria, Geriatria e Psiquiatria, a presença de outras pessoas, especialmente familiares, já era comum, devido a idade ou incapacidade do paciente em ter o entendimento necessário sobre o seu quadro de saúde ou de participar do processo de tomada de decisão. Contudo, mais recentemente, a presença dos familiares nas interações dos profissionais de saúde com os seus pacientes tem sido crescente. 

Este aumento no número de participantes nos processos de comunicação e decisão tem gerado grandes desafios às atividades dos profissionais de saúde. Da mesma forma, o crescente acesso destas pessoas ás fontes de informações, antes restritas apenas a determinados grupos, também tem gerado dificuldades, em função da falta de entendimento adequado sobre o seu significado e da qualidade das fontes utilizadas.

Estes desafios exigem dos profissionais uma crescente necessidade de atualização de formas de atualização de conhecimentos e de comunicação. É importante tornar acessível conteúdos que nem sempre são fáceis de entender sem uma série de outros conhecimentos prévios. Mas estas situações são manejáveis com cordialidade, preparação e comunicação adequadas.

É sempre importante relembrar algumas características das famílias que devem ser consideradas nestas interações, que foram propostas no texto do livro The patient in the family: an ethics of medicine and families. Um ponto fundamental é que os membros da família não são substituíveis por similaridade ou por pessoas mais qualificadas. Outro ponto é que estas pessoas estão vinculadas umas às outras, seja por vínculos naturalmente impostos, que podem ser positivos ou negativos. Isto pode ser devido aos motivos associados às relações, que sempre sempre contam muito. Por fim, é fundamental entender que as famílias são histórias em andamento.

Levar em conta todas estas características é muito importante ao lidar com processos de tomada de decisão envolvendo familiares. Nos prontuários e nas informações compartilhadas entre profissionais, a composição e outros aspectos relacionados às famílias são escassos e muitas vezes confusos.

As situações decorrentes de ter um familiar doente que necessita cuidado, atenção, acompanhamento e auxílio na tomada de decisões importantes exige empatia e compaixão. Empatia no sentido de buscar entender a situação na perspectiva do outro. Compaixão ao estabelecer a relação de ajuda com o outro que sofre.

Um outro fator que pode impactar neste processo de deliberação é a chegada de um familiar distante, que pode desde o ponto de vista geográfico e afetivo. Esta é uma situação que ocorre frequentemente. 

O paciente e os familiares, que já tinham contato com o médico assistente, ou outros membros das equipes assistenciais, já podem estar adequadamente esclarecidos. Os processos de tomada de decisão podem estar sendo encaminhadas de forma harmônica. Contudo, com a chegada de um "familiar distante" esta situação pode sofrer uma perturbação, algumas vezes de forma significativa. 

A chegada de um familiar distante pode retomar conflitos familiares, talvez, não adequadamente entendidos ou resolvidos; de falta de conhecimento da própria situação atual do paciente e da família; da falta de comunicação entre os membros da família; e de diferentes perspectivas nos sistemas de crenças e valores.

Muitos conflitos familiares não são discutidos pelas pessoas envolvidas, talvez querendo negar ou evitar desgastes e enfrentamentos. Nas situações de maior tensão, como as vivenciadas em um ambiente de saúde, estes conflitos podem emergir e podem deslocar o foco das discussões. Desentendimentos e mágoas antigas podem voltar e criar barreiras emocionais entre os membros do grupo familiar. 

É bastante frequente o paciente, ou outro familiar, confidenciar a um membro das equipes assistenciais envolvidas sobre este tipo de situação. Caso esta informação seja relevante para o entendimento e condução da situação atual, a mesma deve ser compartilhada no prontuário, com uma descrição isenta de julgamento moral. As informações compartilhadas devem ser descritas apenas em seus pontos considerados como relevantes. Os profissionais devem antecipar esta situação aos pacientes e familiares, ou seja, que as informações relevantes são compartilhadas entre os membros das equipes, mas que todos têm o dever de confidencialidade associado às mesmas.

A chegada de um "familiar distante" é um desafio em termos de atualizar informações sobre o paciente e o processo de tomada de decisão atualmente vigente. É fundamental, quando possível, consultar o paciente, ou caso tenha um representante formalmente indicado, sobre os limites de compartilhamento de informações. A privacidade pessoal deve ser sempre priorizada. Nestas interações, deve ser enfatizado dever de preservar estas informações a todos os envolvidos. Os limites da privacidade relacional também são importantes de serem delimitados. Este "familiar distante" pode chegar com a expectativa de um quadro de saúde que não mais existe. O paciente ou outros familiares podiam ter omitido informações com a finalidade de não preocupar quem estava distante, mas que agora é surpreendido com uma mudança importante entre o quadro esperado e o realmente existente. Esta  dissonância deve ser adequadamente esclarecida por meio de uma comunicação adequada. 

Outro importante fator é a falta de comunicação entre os próprios familiares. Não é incomum ter membros da família que não se comunicavam por um longo período de tempo. Pessoas que romperam relacionamentos familiares podem se deparar com uma situação de convivência forçada pela necessidade do quadro de saúde do paciente. A presença de diferentes níveis de conhecimento e compreensão é um fator dificultador na relação com os profissionais de saúde. Além de poder potencializar  conflitos entre os familiares. Os profissionais de saúde podem auxiliar na mediação ou no encaminhamento destas situações mantendo sempre a perspectiva do melhor interesse do paciente. 

Finalmente, um outro importante fator a ser considerado é o sistema de crenças e valores. Este sistema envolve não apenas valores objetivos, crenças estruturadas, mas também interesses e desejos. O importante é trazer a discussão sobre este tema na perspectiva do paciente. As famílias podem não ter mais um conjunto de crenças e valores comum entre seus membros. O próprio afastamento deste familiar pode ter sido causado por estes fatores, assim como também pode gerar mudanças de como encarar desafios de vida e viver. O importante não é discutir os sistemas de crenças e valores pessoais de cada um, mas buscar um exercício de entendimento empático na perspectiva do paciente. As famílias são histórias em andamento. 

A "Síndrome do Familiar Distante" é uma situação frequente e que deve ser enfrentada de forma adequada por todos os profissionais. Em muitas destas situações, assim como esta pessoa chegou de forma inesperada, também se vai abruptamente, após ter causado uma perturbação. É fundamental identificar quem representa os melhores interesses do paciente, que não este estiver impedido de tomar as suas próprias decisões.

Leitura recomendada

Nelson HL, Nelson JL. The patient in the family:  an ethics of medicine and families. New York: Routledge, 1995.