quinta-feira, 5 de junho de 2025

Bioética, Saúde, Pesquisa e Pesquisa Clínica

José Roberto Goldim


A convergência nas atividades de Pesquisa Clínica de aspectos de Saúde, de Pesquisa e de  Bioética representa uma nova compreensão e uma nova abordagem aos desafios enfrentados nesta área tão importante. 

Bioética e Complexidade 

A Bioética tem como objetivo avaliar adequação das ações que envolvem a vida e o viver. A sua reflexão é abrangente e incorpora os princípios da teoria da complexidade. Esta evolução reflete o reconhecimento de que os dilemas éticos em saúde não podem ser resolvidos através de abordagens lineares ou reducionistas. 

A Bioética Complexa utiliza o conceito de "unidade na multiplicidade", onde elementos próprios mantêm sua independência, os elementos externos geram dependência e a interação de ambos se dá por relações de interdependência. A abordagem sistêmica permite compreender como diferentes níveis de complexidade - desde partículas subatômicas até biosfera - têm influências recíprocas nas decisões em saúde, na perspectiva das questões bioéticas . 

A Bioética Complexa reconhece que os sistemas sociais e biológicos operam em diferentes graus de concordância e incerteza. As situações simples são aquelas onde há grande concordância e baixa incerteza. Por outro lado, quando existe uma baixa concordância e alta incerteza é possível identificar situações caóticas. Nas variações entre estes extremos é que é possível caracterizar as situações complexas. É fundamental para uma reflexão de qualidade reconhecer estas relações. 

Expandindo os Horizontes da Saúde 

O conceito de saúde sofreu uma evolução significativa desde a metade do século XX. Desde então, a saúde deixou de ser considerada apenas como ausência de doença e passou a ter  diferentes perspectivas, tais como: 
  • Saúde Individual, com o foco no bem-estar do indivíduo; 
  • Saúde Pública, como uma proposta de políticas e intervenções com foco nas populações; 
  • Saúde Coletiva, é uma abordagem ampliada que considera a importância dos determinantes sociais; 
  • Saúde Global, é uma perspectiva que integra as questões de saúde sem considerar fronteiras e territórios de países;
  • Saúde Planetária, é um  visão ampliada para a permitir o entendimento da interdependência da saúde humana com as questões ambientais;
  • One Health, ou Uma Só Saúde, é visão integrada das dimensões humana, animal, vegetal, e dos demais seres vivos, e ambiental. 
Não existe um claro entendimento desta progressiva complexidade. Alguns autores colocam a Saúde Planetária como o nível máximo de complexidade associado à saúde, enquanto que outros entendem que One Health, entendida como Uma Só Saúde, é a proposta mais abrangente. Independentemente desta questão, o que importa é que a saúde deve ser entendida em suas múltiplas perspectivas. 

O adequado entendimento da Saúde parte do reconhecimento de que o bem-estar não se limita à ausência de doença, mas engloba as múltiplas dimensões que incluem aspectos físicos, mentais, sociais, espirituais e ambientais, na perspectiva da interação entre diferentes níveis de complexidade. Esta abordagem abrangente da Saúde gera a demanda de uma reconfiguração nas próprias práticas de pesquisa e de intervenção em saúde. É importante avaliar o impacto das novas tecnologia na saúde das pessoas, nas populações e no ambiente. Assim poderemos ter um panorama mais abrangente das intervenções e suas repercussões.

Peculiaridades da Pesquisa Clínica

A pesquisa científica se caracteriza por gerar conhecimento com rigor científico e adequação ética. O pesquisador  convida um potencial participante de um projeto de pesquisa para que aceite ou não este convite. Esta é a lógica do processo de consentimento adequado: a participação em um projeto de pesquisa não clínica é apenas uma possibilidade. 

Nas atividades de assistência o processo de consentimento para procedimentos e tratamentos se baseia na necessidade trazida ou identificada no paciente. O profissional de saúde, após verificar esta necessidade e as alternativas de tratamento, apresenta estas opções. O operador presente neste processo é a necessidade do paciente.

Na pesquisa clínica, na maioria dos projetos, o potencial participante é também um paciente. É uma conjugação da possibilidade de participar com a necessidade de tratar. O processo de consentimento, nestas situações, tem como operador a contingência, que associa a possibilidade com a necessidade.

A pesquisa clínica passou por transformações significativas desde a formalização da medicina baseada em evidências por Guyatt em 1992. A proposta de uma "próxima geração" da medicina baseada em evidências epidemiológicas reflete a necessidade de incorporar novas metodologias e perspectivas mais amplas. Novos delineamentos, como estudos de vida real, ensaios clínicos adaptativos, apresentam novos e importantes desafios para a área metodológica, da ética aplicada à pesquisa e da própria Bioética.

Muitas pesquisas clínicas ainda são realizadas na perspectiva reducionista, ou seja, geram dados baseados em amostras muito selecionadas, gerando dificuldades de generalização. A utilização adequada de delineamentos de pesquisa e de ferramentas estatísticas permitiu um avanço significativo na geração de conhecimentos aplicados à saúde. 

O reconhecimento de que existem diferentes níveis de complexidade e abrangência do próprio conceito de saúde, faz com que a pesquisa clínica contemporânea também tenha a necessidade de transcender aos seus limites tradicionais. Desta forma, existe a necessidade de incorporar:
  • coletar, avaliar e comparar dados de múltiplas espécies de seres vivos e em diferentes ecossistemas; 
  • desenvolver abordagens metodológicas que permitam captar situações e avaliações mais abrangentes e adequadas;
  • utilizar métodos mistos de avaliação, em uma perspectiva interdisciplinar; 
  • assumir a necessidade de ter abordagens mais participativas, que incluam comunidades onde estes dados foram coletados ou onde serão utilizados; 
  • necessidade de realizar reflexões éticas complexas que incluam esta interconexão entre os múltiplos elementos dos sistemas considerados. 
Existe um entendimento inadequado de que as novas ferramentas de inteligência artificial substituirão a pesquisa clínica tradicional.  A incorporação deste novas ferramentas de busca, análise, consolidação e decisão baseadas em informações já geradas por pesquisas anteriores não substitui a investigação criativa. A inteligência artificial é um novo olhar de dados já existentes. Caso a pesquisa passe a basear-se apenas nas novas aplicações de inteligência artificial teremos somente uma reiteração de conhecimentos já existentes. A pesquisa clínica que gera novos conhecimentos deve ser mantida e aprimorada. 

Síntese e Perspectivas Futuras 

Pesquisa Clínica, ao integrar as perspectivas da Bioética Complexa, da Saúde e da Pesquisa em seus múltiplos entendimentos, não é apenas uma sobreposição de áreas, mas sim uma busca de uma síntese genuína que: 
  • Reconheça a interdependência entre a saúde, a ética e a geração de conhecimentos; 
  • Utilize o referencial da complexidade, que permita uma abordagem sistêmica e integrada; 
  • Promova a integração interdisciplinar de saberes; 
  • Valorize a multiplicidade de perspectivas considerando as  diferentes formas de geração e utilização do conhecimento. 
Esta abordagem complexa e integrada apresenta alguns desafios importantes, tais como: 
  • Metodológicos: Desenvolvimento de ferramentas de pesquisa que permitam abordar a complexidade envolvida; 
  • Éticos, com a criação e utilização de referenciais éticos adequados para problemas multidimensionais; 
  • Práticos com a implementação de intervenções que considerem, simultaneamente, os múltiplos níveis envolvidos na pesquisa 
  • Educacionais com a formação baseada em pensamento crítico, que permita ter esta compreensão nas atividades profissionais.
Conclusão 

A convergência entre Bioética Complexa, da Saúde, na perspectiva de One Health e a Pesquisa Clínica representa mais que uma tendência acadêmica - é uma necessidade para enfrentar os desafios de saúde do século XXI. Desde a ocorrência de pandemias até as consequências da emergência climática, os problemas de saúde contemporâneos demandam abordagens que reconheçam a interdependência fundamental entre sistemas humanos, animais e ambientais. 

Esta visão integrada não apenas amplia a nossa compreensão teórica, mas busca oferecer ferramentas práticas e adequadas ao desenvolvimento de projetos de pesquisa com maior efetividade e com adequação ética. Este é o desafio que se apresenta. O futuro da pesquisa em saúde, e da pesquisa clínica em particular, depende da nossa capacidade de reconhecer a complexidade presente em todos os níveis de abordagem da saúde, da pesquisa e da própria avaliação dos aspectos bioéticos envolvidos. 

Referências 





Material de Apoio - Apresentação 



Texto postado originalmente em 05/06/2025 e editado em 08/06/2025.

sábado, 31 de maio de 2025

Empatia, Simpatia e Compaixão: do sentir ao estar e o fazer

 José Roberto Goldim

As palavras Empatia, Simpatia e Compaixão têm sido utilizadas de forma pouco precisa quando se aplicam à área da saúde. Muitas confusões e ambiguidades estão presentes. Estes conceitos não foram adequadamente utilizados por múltiplos autores ao longo da história da Filosofia. Muitos problemas também surgiram em função de traduções equivocadas de um idioma a outro, sem levar em conta o contexto cultural e o uso de sinônimos.

Empatia

Na Grécia antiga, existia a palavra Empatheia (ἐμπάθεια), com um sentido relacionado à intensidade emocional ou à paixão. Aristóteles utilizou o termo em-pathein, na Retórica, como a explicação para a “animação do inanimado”. Ele associava este conceito à forma pela qual os oradores despertavam emoções no público, era uma forma de persuadir com eficácia [1].

Quando Herder criou a palavra Einfülung, em 1774, o significado a ela atribuído foi de união ou fusão emocional com outros seres ou objetos. Esta palavra se referia a situação de quando nos colocamos no estado emotivo da pessoa a quem estas manifestações pertencem [2]. Para explicar coloquialmente o significado de Empatia, muitas vezes é utilizada a expressão: "se colocar nos sapatos do outro".

Robert Vischer, em conjunto com seu pai Friedrich Theodor Vicher, em 1873, propôs que Einfühlung seria a “continuação imediata de uma observação externa em um sentimento interno”. De certa forma, é uma interpretação que retoma a definição de Aristóteles, pois assume um prazer estético a partir de uma obra inanimada, mas plena de conteúdo. Foi uma proposta para explicar questões estéticas associadas à experiência artística [2].

Theodor Lipps, em 1897, propôs que a Empatia é um sentimento unidirecional em relação ao mundo privado do outro. Ele estabeleceu uma série de questões relacionadas ao entendimento da palavra Einfühlung na área da Estética [2].

Edmond Husserl, em 1913, também refletiu sobre a Empatia alterando o enfoque. Ele entendeu que a Empatia é a constituição do outro, desde uma perspectiva fenomenológica. Foi esta proposta que permitiu caracterizar a relação entre Empatia e intersubjetividade [3]. O pensamento de Husserl foi a base para que outros dois autores, Edith Stein e Alfred Schütz, refletissem mais profundamente sobre a Empatia.

Edith Stein publicou, em 1917, a sua tese de doutorado, orientada por Husserl, cujo título era “Sobre o Problema da Empatia”. Nesta tese ela estabelece que a Empatia é um ato pessoal, é um elemento fundante para a convivência. O “outro” é uma pessoa com vivências próprias, que podem ser acessadas por meio da Empatia [4].

Posteriormente, Max Scheller, ampliou este conceito, em 1923, ao entender a Empatia como a percepção do outro. Na sua perspectiva, da experiência de reconhecer o sofrimento alheio, surge a percepção do outro que sofre. É a possibilidade do sentimento presente na vida emocional. Em uma situação extrema de uma vivência pessoal mais intensa. Assim, "o sofrimento não será mais do outro, mas meu, e eu acredito poder subtrair-me a ele evitando o quadro ou o aspecto do sofrimento em geral" [5].

Alfred Schütz, também influenciado por Husserl, em seu único livro publicado em vida, em 1932, assumiu uma posição mais dialógica, propôs que a Empatia é um processo interpretativo, mais do que uma simples percepção, era, na realidade, a compreensão do outro. Ele introduziu a questão da intersubjetividade na compreensão da Empatia [6].

Schütz retoma o pensamento de Edmond Husserl, afirmando que, embora não possamos vivenciar diretamente a consciência do outro, temos vivências do “outro”, mediadas por meio da Empatia. É esta experiência que atribui sentido às ações alheias, que permite manter a distinção entre o “eu” e o “outro”. É a Empatia que permite estabelecer uma comunicação intersubjetiva, que é a base do mundo social em que se vive (Lebenswelt) [7].

Em 2024, um estudo experimental demonstrou que a Empatia pode ser desenvolvida e aprimorada mediante modelagem social. Exemplos de outras pessoas em situações que demonstram empatia influenciam outras pessoas a terem comportamentos semelhantes [8].

Simpatia

Aristóteles utilizou a palavra oikeion (οἰκεῖον) para descrever a natural atração para o que é afim, antecipando o uso da palavra Simpatia [9]. Uma das primeiras utilizações da palavra Sympátheia (συμπάθεια) foi feita por Crísipo de Soles, ao caracterizar a interconexão de todos os elementos do universo.

Em 1736, David Hume utilizou a palavra Simpatia para afirmar que ninguém é completamente indiferente à felicidade ou ao sofrimento dos outros[10].

Em 1767, Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais utilizou a mesma palavra Simpatia para definir a “reação emocional espontânea através da qual fazemos deste acontecimento nosso, um sentimento que nos coloca no lugar do sofredor, no meio da sua situação”. Na sua concepção, o teatro tem um efeito transformador, na medida em que provoca reações de identificação no espectador [11].

Simpatia é sentir com o outro, é ter uma afinidade para com o outro. A pessoa pode ter uma simpatia positiva que a identifica com o outro ou negativa que a afasta do outro. A rigor, a simpatia tem pouco envolvimento prático. Compaixão

Outra palavra que tem sido utilizada com múltiplos sentidos é Compaixão, que pode ser entendida apenas como uma resposta emocional, natural e instintiva, diante do sofrimento do outro. A compaixão pode ser entendida como uma resposta emocional diante do sofrimento do outro, mas que não necessariamente leva a ação. A compaixão pode existir em quem sofre junto, mesmo sem querer ou poder intervir no sofrimento alheio.

Os gregos tinham a palavra Oiktirmos (οἰκτιρμός) que significa ser uma pessoa compassiva, ou compadecer-se. Esta mesma palavra foi utilizada por Lucas, em seu Evangelho (Lc 1:78), se referindo à Misericórdia de Deus, como uma Misericórdia profunda, utilizando a expressão “entranhas de Misericórdia”. Em outras partes do seu evangelho, Lucas volta a utilizar esta mesma palavra para expressar a Compaixão humana. Segundo ele, os personagens descritos nas parábolas do Bom Samaritano (Lc 10:25-37) e do Filho Pródigo (Lc 15:11-32) foram movidos pela Compaixão [12].

Outros autores também refletiram sobre esta questão. São João Crisóstomo, no século III, caracterizou a Compaixão como uma virtude fundamental [13].

Compaixão também pode ser uma atitude diante do outro que sofre. Anselm Grün, caracterizou a Compaixão não como uma virtude, mas sim como uma atitude diante de uma situação de sofrimento [14]. As atitudes são um gesto, uma disposição interna, uma maneira de agir.

A Compaixão, entendida como uma virtude, como um agir, se apresenta como uma disposição firme e constante para aliviar o sofrimento. A Compaixão, sendo uma virtude, é ordenada pela razão, mas é sustentada pelo amor. A compaixão é estável, é racionalmente guiada, é orientada a fazer o bem e é reconhecida como socialmente adequada. A Compaixão percebe o outro que sofre como alguém que mantém a sua autonomia, mas que merece esta relação de ajuda, derivada do sofrer reconhecido.

Em 1985, Edmund Pellegrino, caracterizou a Compaixão como uma característica fundamental do Médico Virtuoso. Uma pessoa virtuosa é alguém em quem podemos confiar por agir, habitualmente, de uma maneira boa. Nesta perspectiva, a Compaixão é uma relação genuína de ajuda ao outro que sofre [15].

Compaixão, Clemência, Piedade e Misericórdia são, muitas vezes, utilizadas como sinônimos. Por exemplo, Tomás de Aquino, ao redor do ano de 1269, no final da reflexão da questão 30 da Suma Teológica, denominou a virtude da Compaixão como sendo Misericórdia [16]. Porém, é importante caracterizar algumas diferenças entre os seus significados, que podem estar associados, além dos aspectos éticos e sociais, a contextos religiosos. Clemência foi utilizada por Sêneca, na Carta a Lucíolo, para criticar a misericórdia. Sêneca afirmava que "o sábio ajuda o outro, não porque sofre com ele, mas porque é justo fazê-lo" (17).

Piedade pode ter dois significados distintos: ser piedoso e ter Piedade. Em ambos os casos, são relações verticais entre pessoas. Ter Piedade "do outro" pode ser entendida como uma relação vertical que não valoriza a autonomia da pessoa que sofre, podendo inclusive destituir o seu próprio sofrimento. As pessoas, em geral, não gostam de ser objeto da Piedade dos outros, pois isto as diminui e pode, até mesmo, invalidar o seu próprio sofrimento, ao ter a sua autonomia desconsiderada. Nesta perspectiva, a Piedade é percebida apenas como uma relação que diminui o outro que sofre, que se apropria do seu sofrimento [18]. Ser piedoso "com o outro" pode ser uma resposta a um pedido de ajuda. Ser piedoso também é uma relação vertical com a pessoa que sofre, que está fragilizada, reconhecendo a sua vulnerabilidade decorrente do sofrimento. Até mesmo quando existe a impossibilidade de agir diretamente sobre o sofrimento em si. Ser piedoso se manifesta por meio de um gesto, por uma atitude de acolhimento. A expressão artística mais conhecida da Piedade, neste sentido, são aquelas denominadas como Pietàs.

A Piedade também pode ser uma expressão de reverência ou devoção religiosa. Neste sentido, a Piedade é a devoção ou o respeito a Deus, ou aos pais e ancestrais. Desta relação vertical surge a possibilidade do acolhimento horizontal às demais pessoas com as quais nos relacionamos. Desta forma, a Piedade se refere à virtude da Justiça. É uma virtude que se abre ao outro, que busca a não discriminação, a igualdade e a equidade [9].

A Misericórdia também é uma relação vertical, habitualmente relacionada a uma manifestação divina. A Misericórdia acolhe, sem destituir o outro que sofre. A própria palavra latina Misericordia, composta por duas outras palavras: miseratio, entendida como sofrimento, e cordis, como sendo “do coração”, ou seja, se refere a um sentimento que expressa uma perspectiva de acolhimento [13].

Após ter realizado esta diferenciação, é importante entender a Compaixão como sendo uma virtude inerente ao profissional de saúde. É importante reconhecer a necessidade do profissional ser uma presença compassiva junto ao paciente, que não invade ou domina a dor do outro. A compaixão é uma presença não invasiva diante do sofrimento do outro. A verdadeira compaixão valida o sofrimento do outro e exige reverência e uma presença silenciosa, não tem soluções fáceis, mas é sempre a expressão de uma genuína relação de ajuda.

Considerações Finais

Empatia, Simpatia e Compaixão são palavras que se confundem no uso diário das pessoas. É importante compreender cada um dos significados associados a cada uma delas visando permitir o seu uso adequado.

Empatia é um sentimento que nos dá acesso às vivências alheias, que nos coloca no lugar das outras pessoas. Empatia é o nome da “nossa experiência das vivências do outro”, é o que permite compreender e sentir como o “outro” (Einfühlung). A Empatia, é importante ressaltar, mantém a diferenciação do “si mesmo” e do “outro”.

A Simpatia, por outro lado, é um sentimento de afinidade emocional, frequentemente associada a uma identificação pessoal. A Simpatia envolve um afeto compartilhado, seja no sentido de se congratular com a alegria do outro ou se associar ao seu sofrimento. É a Simpatia que estabelece o compromisso afetivo de "estar com o outro” (Mitfühlung).

A Compaixão, finalmente, é uma virtude, é uma ação, e não um sentimento, como a Empatia ou a Simpatia. Na Compaixão, além do reconhecimento do sofrimento alheio, existe um dever de estabelecer uma relação de ajuda “de mim” para com “outro” que sofre [19]. É a Compaixão que permite efetivar o direito à solidariedade [9].

Empatia, Simpatia e Compaixão são características fundantes e fundamentais da adequada relação dos profissionais de saúde ao permitir sentir, estar e ajudar pacientes, familiares, colegas e a sociedade como um todo.

Hipócrates já havia proposto no primeiro livro da Epidemia, estabeleceu as primeiras regras para uma boa relação médico-paciente: "Tenha, em relação às doenças, duas coisas em vista: ajuda ou, ao menos, não prejudica" (20).

Referências

1)  Aristóteles. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda; 2005. 

2)  Hunsdahl JB. Concerning Einfühlung (empathy): A concept analysis of its origin and early development. J Hist Behav Sci. 1967 Apr;3(2):180–91.

3)  Husserl E. Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica – Ideen I. São Paulo: Ideias e Letras; 2012. 

4) Stein E. Sobre el problema de la empatía. Madrid: Trotta; 2004. 

5) Scheler M. Wesen und Formen der Symphatie. Bremen: Salzwasser-Verlag; 2015. 

6)  Schütz, Alfred, Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1981(1932):29.

7)  Gros AE. El debate de Alfred Schütz con Max Scheler en torno a la empatía. Tópicos [online]. 2012;(2):

8)  Zhou Y, Han S, Kang P, Tobler PN, Hein G. The social transmission of empathy relies on observational reinforcement learning. Proc Natl Acad Sci [Internet]. 2024 Feb 27;121(9):2017. 

9)  Aristóteles. Ética a Nicômacos. 2nd ed. Brasília: Universidade de Brasília; 1992. 

10)  Hume D. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. São Paulo: Unesp; 2001.

11) Beaumarchais P-AC de. Essai sur le genre dramatique sérieux. In: Euvres complètes. Paris: Laplace, Sanches et Cie; 1876:1–8.

12)  Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero: nova tradução na linguagem de hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil; 2016.

13)  Schaff P. Nicene and Post-Nicene Fathers. Peabody: Hendrikson; 1995. 

14)  Grün A. Atitudes que transformam. Petrópolis: Vozes; 2017. 

15)  Pellegrino ED. Virtuous Physician, and the Ethics of Medicine. In: Shelp EE, editor. Virtue and Medicine. D. Reidel Publishing Company; 1985:237–55.

16)  Aquino T de. Suma Teológica Vol.I-XI. 2ed. Porto Alegre: EST/Sulina/UCS; 1980. 

17) Séneca LA. Cartas morales a Lucilio - tomo segundo. Barcelona: Iberia; 1955. 

18) Callan E. The moral status of pity. Can J Philos. 1988;18:1–12. 

19) Zahavi, Dan, Phänomenologie für Einsteiger, W. Fink, Paderborn, 2007:71.

20) Hippocrate. Oevres completes d’Hippocrate. Vol. II Épidémies premier livre. Paris: Bailliéré, 1840:635.


Texto publicado em 31/05/2025 e editado em 15/06/2025


terça-feira, 8 de abril de 2025

Saúde e Medicina: tecnologia e sensibilidade

 José Roberto Goldim


Saúde e Medicina são temas que acompanham a história da humanidade. A Saúde e a  Medicina sempre lidaram com a vida e o viver das pessoas. Porém, progressivamente, tiveram uma trajetória que privilegiou os fatos, a incorporação da ciência e da tecnologia.

A Saúde e a Medicina se depararam com a morte continuamente. É corriqueiro o uso da metáfora do enfrentamento, da luta, ou do combate às doenças. Nesta mesma perspectiva, a morte é, muitas vezes, entendida como um fracasso, como uma falha das ações de saúde. As doenças são enigmas que desafiam na busca de sua explicação. O que era algo inexplicável, um enigma, poderia ter uma explicação racional. Foi assim que o conhecimento na área da Saúde se desenvolveu: resolvendo enigmas associados a vida e reconhecendo o mistério da morte (1). Mistério por que é inexplicável, que está além do inteligível. Talvez, justamente por isso, que é tão difícil de conviver com a perspectiva da morte. Transcender está além da saúde e da Medicina, é outra dimensão do humano.. 

Vale lembrar que a Medicina, mesmo quando não tinha tratamentos efetivos a oferecer, sempre cuidava do paciente. O médico era reconhecido como alguém que cuidava. Heidegger já destacava que “o cuidado é o permanente companheiro do ser humano” (2).

Com a progressiva entrada da Ciência na área da Medicina, na segunda metade dos anos 1800, a Medicina se afasta do cuidado e passa a ter ferramentas de tratamentos (3). A formação do médico se deslocou dos aspectos humanistas para os científicos no início dos anos 1900 (4). De cuidador, o médico passa a ser um terapeuta, alguém que prescreve tratamentos com base em fatos científicos. São tratamentos que cada vez mais incorporam novas e complexas tecnologias.

O espaço do cuidado foi sendo progressivamente ocupado pela tecnologia, gerando um distanciamento entre o médico e seu paciente. É neste contexto que o paciente cede lugar ao cliente. Não é mais o atendimento de alguém que sofre, mas sim uma nova relação de prestação de serviços.

A tecnologia tem um apelo tão grande, que alguns autores chegam a pensar em uma Medicina sem médicos, mediada apenas por equipamentos, pela chamada inteligência artificial. Esta é uma projeção equivocada. A alta tecnologia não substitui o cuidado. Ao contrário, a alta tecnologia deve ser acompanhada pela alta sensibilidade aos aspectos humanos do paciente (5). 

A relação entre um médico, ou outro profissional de saúde, e seu paciente e familiares é, por definição, uma relação assimétrica. É uma relação entre um profissional que se capacitou para atender outra pessoa que sofre, que necessita de atendimento (6). 

Quando a relação passa do cuidado ao paciente à prestação de serviços a uma cliente, o foco da necessidade de alguém que sofre é substituído pela busca de atender apenas aos desejos de uma pessoa. A relação médico-paciente é baseada em uma garantia de meios, a relação com um cliente tem a garantia de fim. Na área da saúde nunca se tem a possibilidade de dar uma certeza de resultado. Por isto, a relação médico-paciente é muito mais do simplesmente uma prestação de serviços. 

Desde muitos séculos, a relação médico-paciente é entendida como baseada na confiança, na busca do paciente em sentir-se protegido frente a estas situações que está exposto (7). Os interesses, desejos, afetos e vínculos do paciente são elementos importantes a serem considerados São os elementos que compõem a enfermidade que movem o paciente, enquanto que o profissional tem a identificação de um conjunto de questões relacionadas especificamente à doença. A relação ideal é aquela que conjuga a enfermidade do paciente com a doença observada pelo profissional (8).

A nova área da Saúde, não substitui, mas sim incorpora e desenvolve uma alta qualificação científica e tecnológica associada a uma alta sensibilidade voltada ao relacionamento interpessoal. A Saúde deve ser integrada na sua perspectiva biológica, enquanto associada à vida, com a perspectiva biográfica do viver, que dá a dimensão biográfica da pessoa. É estabelecer uma relação com o paciente como pessoa, que sempre tem uma história singular. O desafio é reconhecer a interdependência dos aspectos biológicos com os biográficos, que dão suporte e sentido à existência de cada um de nós. Não é simplesmente tratar uma doença, nem apenas atender a uma enfermidade, mas sim entender as necessidades de alguém que se reconhece que está sofrendo, que é vulnerável e necessita, portanto, de uma ajuda qualificada. Este é o nosso desafio na construção de uma nova Saúde: incluir estas novas habilidades de relacionamento humano com a preservação da qualificação técnica e científica.


Referências
1. Silva V da. Victórias. Porto Alegre: Livraria do Globo; 1924.

Esfinge  
No delta acocorada, entre as verdes lianas,  
Surge num mudo assombro a Esfinge de granito,  
E atenta, o olhar parado, espreita as caravanas,  
Que cruzam na extensão das áreas do Egito.  
Tal num sonho de pedra, imoto, o horrendo mito,  
Lembrando as tradições das raças soberanas,  
Parece ouvir com espanto a rolar no infinito  
Os séculos que vão com as gerações humanas.  
Impérios colossais, Potestades divinas,  
Patriarcas e reis de infinda majestade,  
Tudo desfez-se em pó e esboroou-se em ruínas...  
Só a esfinge não morre, e erguendo o estranho porte,
Guarda, eterna, do caos das origens e da idade  
O enigma da vida e o mistério da morte.









Texto básico da apresentação realizada no TEDx Unisinos Salon 2025 em 07/04/2025

terça-feira, 25 de março de 2025

Direitos dos Pacientes: Autonomia e seus limites

 José Roberto Goldim

1) Autonomia e relação médico paciente

A autonomia dos pacientes nem sempre foi um assunto importante na relação médico-paciente. Somente a partir da década de 1960 é que começaram a ser publicados livros e artigos buscando dar vez e voz aos pacientes. O livro de Paul Ramsey, O Paciente como Pessoa (Patient as a person), publicado em 1969, foi um importante alerta para a necessidade de serem rediscutidas as bases desta relação.


Em 1978 foi publicado o Relatório Belmont, proposto pelo governo dos EUA, estabeleceu os Princípios éticos e Diretrizes para a Proteção de Participantes Humanos em Pesquisas. Neste documento, a  Autonomia era um dos elementos do princípio do Respeito às Pessoas.


Neste mesmo ano de 1978, Tom Beauchamp e James Childress publicaram o livro  Princípios de Ética Biomédica. Estes autores que propuseram o modelo principialista, incluíram a Autonomia como um dos seus quatro princípios fundantes.


No Brasil esta questão teve alguns marcos importantes na caracterização da autonomia dos pacientes ao final da década de 1980. Especialmente a Constituição da República Federativa do Brasil, publicada em 1988, colocou esta questão da autonomia como um balizador importante da cidadania.

Em 1988, o Conselho Federal de Medicina na  Resolução CFM 1246/1988 estabeleceu a nova versão 1988 do  Código de Ética Médica. Este documento introduziu o respeito à autonomia do paciente como um elemento fundamental da prática médica adequada.


Por fim, no mesmo ano de 1988, o Conselho Nacional de Saúde publicou a  Resolução CNS 01/1988 estabelecendo as primeiras  Normas de Pesquisa em Saúde no Brasil. Neste documento foram introduzidas as questões envolvendo a obtenção do consentimento na pesquisa em saúde.


2) Troca de denominação de Paciente para Cliente


Muitos autores e profissionais têm proposto que a palavra paciente seja substituída por cliente, como forma de dar maior protagonismo às pessoas em atendimento na área da saúde.

Paciente vem do Latim, patiens, aquele que padece, que sofre, quando utilizado como substantivo. Como adjetivo, é aquele que sabe esperar, que é perseverante, persistente. Pode ser resignado ou conformado, mas não passivo, como associam indevidamente.


Cliente vem do Latim, cliens que era alguém protegido por um patrono. Com o passar do tempo, cliente passou a ser utilizado como alguém que é representado por um advogado ou procurador, como aquele a quem é prestado um serviço ou que realiza uma relação de compra comercial.


Substitui a denominação de paciente por cliente é alterar profundamente a relação entre os profissionais e as pessoas que buscam atendimento. A mesma pessoa ao ter um problema de saúde ao se relacionar com um profissional de saúde que a atenda é considerada como um paciente. Porém, se ela tiver um plano de saúde privado, a sua relação com a empresa que presta este tipo de serviços é de cliente. É fundamental diferenciar estes dos contextos de relações. Nos atendimentos de saúde temos pessoas com sofrimentos e necessidades, ou seja, pacientes.


3) Autonomia e Autodeterminação


Autonomia e Autodeterminação têm sido utilizadas de forma indistinta, porém são conceitos diferentes. Autonomia deve ser entendida como a capacidade para tomar decisões no seu melhor interesse. A Autodeterminação é o exercício desta capacidade visando realizar escolhas livremente.


Uma pessoa com autonomia tem a capacidade para decidir inclusive sobre abrir mão de sua autodeterminação de forma voluntária. Isto ocorre quando uma pessoa delega a decisão a uma outra pessoa. Ela não perde a sua autonomia, mas não exercita a sua autodeterminação.


A autonomia e a autodeterminação tem dois componentes importantes a manifestação da vontade e o discernimento. A Autonomia, entendida como capacidade de decidir, tem por base o discernimento, que permite diferenciar as alternativas apresentadas e a possibilidade de realizar a opção por uma delas de forma racional, que permita verificar a sua validade argumentativa. A manifestação de vontade é a base da Autodeterminação, mas que pode ser autônoma ou heterônoma. É considerada autônoma quando reflete a manifestação do próprio indivíduo e heterônoma quando sofre uma influência externa.


Desta forma, é fundamental incluir estes dois conceitos - Autonomia e Autodeterminação - quando se avaliam situações de tomada de decisão em saúde, para garantir minimamente que os direitos do paciente sejam efetivamente resguardados.

4) Paternalismo médico e Absolutismo do paciente.


A Autonomia foi utilizada como um dos princípios da Bioética. Na visão norte-americana, o Respeito à Autonomia das Pessoas é um dever prima facie. Ou seja, quando a Autonomia entra em colisão com outros princípios, como a Preservação da Vida, deve ser feita uma ponderação entre os deveres conflitantes, e um deles pode ser descumprido em favor do outro princípio considerado como mais importante, neste conjunto de circunstâncias,


Na perspectiva principialista européia, proposta por Peter Kemp, que serviu de base para a Declaração de Bioética e Direitos Humanos, a autonomia é entendida como liberdade de escolha, como poder decidir livre de pressões externas. Caso esta liberdade esteja abalada, entra em discussão o princípio da vulnerabilidade. Reconhecer a vulnerabilidade implica em dar uma proteção adicional a esta pessoa. A coerção retira a autodeterminação sem afetar a autonomia.


A autonomia e a autodeterminação são sempre relacionais, sempre devem reconhecer os outros que se vinculam à pessoa que está fazendo as suas escolhas. 


A apologia da autonomia absoluta acaba gerando uma interpretação equivocada de

 liberdade como possibilidade de fazer o que quiser, sem se preocupar com as repercussões para terceiros. A rigor, é uma justificativa para o exercício do egoísmo, de negação do outro pela afirmação da minha única e exclusiva vontade. A autonomia absoluta entendida como autossuficiência, é uma falácia, pois sempre existe interdependência entre a pessoa e o seu entorno. Nesta perspectiva, o exercício desta autonomia absoluta é a subjugação do outro aos interesses exclusivos da pessoa que está tomando decisões. 


Do paternalismo médico forte, quando a vontade de médico se sobrepunha às vontades dos pacientes houve uma mudança para a nova perspectiva do absolutismo do pacientes. Ambas propostas são autocentradas, desconsideram o papel e a importância do outro na tomada de decisão. A decisão compartilhada, que não implica obrigatoriamente na obtenção de um consenso, implica em reconhecer o outro como tendo capacidade e como protagonista. A marca deste modelo integrado de relação médico-paciente é a da interdependência.


5) Projetos de Lei sobre Direitos de Pacientes em Tramitação


Projeto de Lei  2242/2022 (ex PL 5559/2016)

Estatuto dos Direitos do Paciente


Senado Federal - Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa aguardando relator (Cadastrado como Direito do Consumidor, Política Social


Problemas conceituais

  1. Autodeterminação confundida como autonomia (capacidade) (Item I Art. 2)

  2. Vulnerabilidade estática, por citação de grupos vulneráveis e não de indivíduos em estado de vulnerabilidade (Item VI Art. 2)


Caracterização adequada de Diretivas Antecipadas de Vontade, Representante do paciente, de Cuidados Paliativos e de Consentimento Informado


Projeto de Lei 883/2020

Regulamenta a prática de cuidados paliativos nos serviços de saúde, no território nacional


Senado Federal  - Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa - aguardando relator


Problemas conceituais

  1. Considera cuidados paliativos apenas para pacientes terminais (Art. 1, Art. 2 e Item I Art. 4)

  2. Definição de procedimentos e tratamentos extraordinários não adequada (Item VI Art.4)

  3. Permite a outros profissionais da saúde fazer limitação de acesso ou suspender terapêuticas, desde que submetidas à “revisão médica” (Par. 3 Art. 5)

  4. Obter o consentimento com a presença de duas testemunhas (Par. 4 Art. 5)


Projeto de Lei 4175/2024

Direitos das pessoas em estágio de doença avançada e dos familiares de tais pessoas.


Câmara dos Deputados - Tramitando em várias comissões


Problemas conceituais

  1. Válido para pacientes com prognóstico vital estimado em semanas ou dias. Esta denominação seria para pacientes terminais e não com doenças avançadas. (parágrafo único Art.1)

  2. Fala em obstinação terapêutica paliativa, que é um contrassenso, pois os cuidados paliativos vieram para evitar a obstinação terapêutica (Item 4 Art. 2)

  3. Estabelece um consentimento por escrito, por parte do paciente que pode ser contemporâneo ou antecipado, com a necessidade de duas testemunhas (Item V Art. 2)

  4. Foi utilizado “cuidado vital” como se fosse Testamento Vital, que é a denominação equivocada de Diretrizes Antecipadas de Vontade (Item VIII Art. 2)

  5. Permite ao paciente dispor do destino do corpo e dos órgãos apos a morte, o que não é permitido pela Lei de Transplantes (Item IX Art.2)

  6. Direito dos cuidadores informais do paciente a receber formação adequada e apoio estrutura (Art.5)

  7. O cuidador informal deve ter descanso requerido pelos profissionais de saúde (Art. 6)


Pontos importantes

  1. Ressalta que o paciente é o único titular do direito à informação clínica relativa à sua situação de doença, já resguardado pela privacidade e LGPD (Item IX Art. 2). 


6) Situações limite de Autonomia


Uso obrigatório de equipamentos (cintos de segurança e capacetes)
Justificativa em função de risco de eventos fatais. Os benefícios do uso destes equipamentos em termos de redução de mortes é altamente comprovado e justifica a medida legal coercitiva de obrigar a sua utilização. É uma medida de segurança e de saúde pública.

 Restrições de consumo (tabaco e bebidas alcoólicas) 

O uso destas substâncias é proibido em determinadas situações ou locais. A restrição social ao uso de tabaco e derivados é considerada um dos mais importantes fatores para o abandono do tabagismo. A restrição ao uso de álcool se associa ao critério da idade mínima para consumo, habitualmente a maioridade legal, e da proibição de dirigir tendo consumido bebidas alcoólicas. Não há uma proibição ao consumo, mas sim de dirigir após ter consumido estas substâncias.

Atendimentos em emergência com risco de vida
Existem situações nas situações nas quais o risco de vida justifica ações assistenciais sem consentimento. Os atendimentos realizados em serviços de emergência é um exemplo disto. O profissional de saúde é considerado como garantidor, e tem o dever de agir no melhor interesse do paciente.

Processo de consentimento para assistência
As pessoas buscam atendimento na área da saúde principalmente pelo desconforto de uma situação que estão vivenciando, por uma enfermidade que estão identificando. Esta motivação é uma necessidade que faz com que a pessoa procure por auxílio. O atendimento assistencial pode identificar uma doença que necessite de exames e procedimentos. Nestas situações, fora dos ambientes de atendimentos emergenciais, o processo de consentimento é fundamental. A necessidade do atendimento pode influenciar na voluntariedade do paciente em decidir, mas o benefício associado deve ser ponderado. O importante é valorizar o processo de consentimento e não apenas a assinatura do Termo de Consentimento. O registro do processo, com as informações e esclarecimentos, deve constar como evolução no prontuário do paciente.

Nas situações envolvendo pacientes Testemunhas de Jeová o consentimento também deve ser obtido da mesma maneira. Na avaliação dos recursos extraordinários 979742 e 1212272, ambos em 25 de setembro de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) se pronunciou sobre a necessidade do consentimento dos pacientes Testemunhas de Jeová considerados como sendo maiores e capazes. Estes pacientes têm o direito de recusar o tratamento de saúde por motivos religiosos. Ficaram estabelecidas as seguintes condições:  avaliação da viabilidade técnico-científica de sucesso do procedimento; anuência da equipe médica para a sua realização; e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente. Este posicionamento protege os pacientes de solicitações de autorização judicial para realizar uso de sangue ou hemoderivados contrariamente a manifestação destas pessoas. 

Processo de consentimento para pesquisas
Na área da pesquisa, o interesse de realizar a pesquisa é do pesquisador e da sociedade, e não obrigatoriamente do potencial participante. Neste processo de consentimento deve ser sempre considerado que a participação na pesquisa é apenas uma possibilidade. Deve ser dada a garantia à pessoa convidada de que tem liberdade para aceitar ou não o convite.

A nova legislação brasileira para a pesquisa em seres humanos, Lei 14874/2024, estabelece as regaras e procedimentos para a obtenção do consentimento para a pesquisa, que se materializa com a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, mas não se limita apenas a este documento. Existe a possibilidade de realizar uma pesquisa, em ambiente de emergência sem a obtenção do consentimento prévio. Assim que for possível, a equipe de pesquisa deve obter o consentimento do participante ou dos seus familiares. Esta situação deve ser previamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa.


Diretivas Antecipadas de Vontade
Em muitas situações assistenciais, os pacientes podem ter incapacidades temporárias ou permanentes. Nestas ocasiões podem ocorrer dúvidas sobre os desejos e valores do paciente frente a estas novas decisões. As Diretivas Antecipadas de Vontade são uma forma de permitir que a pessoa antecipe as suas decisões. A Resolução CFM 1995/2012 estabeleceu as normas adequadas de obtenção este documento. Um delas estabelece que a vontade manifestada anteriormente pelo paciente prevalece sobre a vontade e a decisão dos familiares. É a garantia de que o paciente, mesmo incapacitado de se manifestar, terá a sua vontade considerada na tomada de decisão. É fundamental registrar adequadamente as Diretivas Antecipadas de Vontade no prontuário do paciente em local que permita o seu conhecimento para todos os profissionais que possam vir a ter contato assistencial com o paciente. O paciente também pode conversar com os seus familiares sobre estas decisões relativas a situações futuras.

Indicação de Representante para fins de saúde
Quando paciente estabelece Diretivas Antecipadas de Vontade, ou ainda sem elas, é importa que ele indique a equipe assistencial quem melhor o representa em decisões que venham a ocorrer em situações em que ele esteja impedido de manifestar a sua vontade. A indicação de um representante, por parte do paciente, reduz a complexidade da tomada de decisão com a participação dos familiares. Além disto, é uma garantia para o paciente de que as suas vontades e os seus valores serão preservados. Esta indicação deve ser registrada em prontuário pela equipe assistencial. Este registro pode ser validado por um outro profissional assistencial, ou por um consultor de Bioética Clínica, com a finalidade de verificar a adequação deste registro em prontuário. Quando possível, o próprio paciente deve informar os seus familiares sobre a sua designação de um representante para fins de tomada de decisão em saúde. Esta situação também é respaldada pela Resolução CFM 1995/2012.

Tratamento preventivo obrigatório com o uso de vacinas
A obrigatoriedade de uso de vacinas em políticas de saúde pública tem como finalidade a proteção de cada pessoa e da comunidade. O Brasil tem uma política de uso de vacinas que é reconhecida internacionalmente. Com a abrangência do uso de vacinas que foi possível controlar doenças antes muito prevalentes e graves. Porém, o uso de vacinas não pode ser relaxado por ter uma prevalência baixa, pois este é o seu objetivo. Ao reduzir a cobertura vacinal, o risco de ressurgimento de casos aumenta significativamente. A terapia com vacinas é um ato de solidariedade.
 
O Supremo Tribunal Federal, no tema 1103, proposto em agosto de 2020, estabeleceu os requisitos para a vacinação infantil obrigatória em pelo menos um dos três cenários:
  • a inclusão da vacina no Programa Nacional de Imunizações (PNI);
  • a obrigatoriedade prevista em lei;
  • determinação de autoridades sanitárias da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios fundada em consenso médico e científico.

Em 2025 o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela multa aos pais de crianças que se recusaram a vacinar seus filhos, utilizando como base o Estatuto da Criança e do Adolescente.

 
Tratamento involuntário em casos de pacientes com tentativa de suicídio
As situações de autoagressão, quando o próprio paciente se coloca em risco para a sua própria vida, são consideradas como uma emergência psiquiátrica. Desta forma, os profissionais de saúde podem tomar medidas que permitam garantir a sobrevivência do paciente. É importante tratar o paciente de maneira a reduzir os riscos e buscar um melhor entendimento do que ocorreu e justificam uma internação compulsória como forma de proteção.
 
O Código Penal estabelece uma exceção ao constrangimento ilegal, no Art. 146, Parágrafo 3o Item I, em intervenções realizadas em função de iminente perigo de vida. A Lei 10216/2001, em seu Art. 8o Parágrafo 1o, estabelece que a internação involuntária deve ser comunicada ao Ministério Público Estadual em um prazo de 72 horas, pelo responsável técnico da instituição. A alta do paciente também deverá ser comunicada da mesma forma. 

Tratamento compulsório gestantes
Situações de risco para terceiros vulneráveis têm sido utilizadas como justificativa para solicitar tratamento compulsório de gestantes que utilizam substâncias ou que não aderem a tratamento de doenças que podem prejudicar também o bebe em desenvolvimento.

Esta possibilidade estava prevista no Art. 5o da Resolução CFM 2232/2019, que a considera como um "abuso de direito" a mãe não aceitar realizar um tratamento que possa beneficiar bebe que está sendo gestado. Isto pode ocorrer quando uma gestante se nega a tratar situações envolvendo diabetes, aids, hipertensão, etc. A dificuldade é operacional, pois como manter uma gestante internada para tratamento que não concorda. Posteriormente, a justiça suspendeu os efeitos deste artigo.

Desistência de tratamento contrariamente a indicação da equipe médica
O paciente, avaliado como sendo capaz de tomar decisões no seu melhor interesse, pode solicitar a desistência de tratamento médico que está sendo utilizado, inclusive a própria permanência em ambiente hospitalar.
O respaldo legal para esta decisão é o Art. 15 do Código Civil - Lei 19496/2002, que ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico. A Portaria MS 1820/2009 também estabelece esta possibilidade de recusar tratamento proposto.

Avaliação da capacidade e registro adequado são fundamentais para garantir a adequação desta situação. Nestas situações, médico deve fornecer uma Nota de Alta contendo as informações sobre a decisão unilateral do paciente de não querer continuar a se tratar, o histórico do atendimento, as recomendações para a continuidade dos cuidados após a alta e as prescrições adequadas. Este fornecimento de informações adequadas, mesmo em situações de desistência, está estabelecido no Art. 86 do Código de Ética Médica - Resolução CFM 2217/2018. Um paciente que desiste ao tratamento não deve ser punido, mas sim compreendido pelas equipes assistenciais. Caso esteja com algum dispositivo, tal como um acesso venoso, o mesmo deverá ser removido antes da sua saída da instituição.

Nas instituições, que já contam com um documento específico, como um Termo de Desistência de Tratamento a Pedido e Contra a Indicação Médica, o mesmo deverá ser obtido e arquivado junto ao prontuário do paciente. Um registro adequado deste processo de informação e decisão deve ser realizado no prontuário. 

Fuga ou evasão de paciente
O paciente pode fugir ou evadir de ambientes de atendimento de saúde. Isto pode ser entendido como uma forma extrema de manifestar a sua negativa em continuar os tratamentos aos quais está sendo submetido. Esta situação é delicada e pode ser entendida como uma negligência do cuidado para com o paciente que esta na instituição. Muitos profissionais não diferenciam a alta por desistência, devidamente documentada, da alta por fuga ou evasão. São situações muito diferentes, pois na desistência o paciente recebe as orientações para os cuidados pós-alta, porém na fuga o paciente fica desassistido, justamente pela sua evasão do ambiente assistencial. Esta situação deve ser claramente descrita nas evoluções em prontuário e a nota de alta deve conter os elementos necessários à compreensão do que ocorreu. É importante relatar os esforços dos profissionais para que o paciente permanecesse no ambiente hospitalar, mesmo reconhecendo a sua autonomia. A instituição deve ser notificada formalmente pelas equipes assistenciais por esta ocorrência.

Caso a evasão envolva um paciente menor de idade, o Ministério Público da Infância e da Juventude deverá ser comunicado para poder tomar as devidas ações. 

Doação de órgãos post-mortem
É uma restrição à autonomia da pessoa impedir que a sua manifestação em vida por ser doador de órgãos e tecidos tenha validade em um processo de doação post-mortem. Esta restrição é imposta pela Lei 9434/1997, que estabelece as regras de transplantes de órgãos no Brasil. Neste documento que foi inúmeras vezes modificado, consta que a decisão da família suplanta a manifestação de vontade da pessoa falecida. Desta forma, todas as manifestações em vida do paciente são meramente sugestivas, cabendo aos familiares a decisão final sobre o destino dos órgãos.

Paradoxalmente, a doação do corpo para atividades educacionais e de pesquisa, realizada de forma voluntária e individual, é prevista no Art. 14 do Código Civil - Lei 10406/2002.


Estas foram as anotações utilizadas para a aula sobre Direitos dos Pacientes: Autonomia e Seus Limites, dada no dia 26/03/2025, no Curso de Atualização para Magistrados da AJURIS. São pontos que devem merecer uma atenção especial por parte dos profissionais da área da Saúde e do Direito para permitir um melhor cuidados aos pacientes.

Link para a Apresentação utilizada na aula do dia 26/03/2025.

Texto atualizado em 30/03/2025