domingo, 5 de janeiro de 2025

Síndrome do Familiar Distante

 José Roberto Goldim

A relação médico-paciente, ou profissional de saúde-paciente, é habitualmente entendida na perspectiva de um relacionamento entre duas pessoas. Em algumas áreas, como Pediatria, Geriatria e Psiquiatria, a presença de outras pessoas, especialmente familiares, já era comum, devido a idade ou incapacidade do paciente em ter o entendimento necessário sobre o seu quadro de saúde ou de participar do processo de tomada de decisão. Contudo, mais recentemente, a presença dos familiares nas interações dos profissionais de saúde com os seus pacientes tem sido crescente. 

Este aumento no número de participantes nos processos de comunicação e decisão tem gerado grandes desafios às atividades dos profissionais de saúde. Da mesma forma, o crescente acesso destas pessoas ás fontes de informações, antes restritas apenas a determinados grupos, também tem gerado dificuldades, em função da falta de entendimento adequado sobre o seu significado e da qualidade das fontes utilizadas.

Estes desafios exigem dos profissionais uma crescente necessidade de atualização de formas de atualização de conhecimentos e de comunicação. É importante tornar acessível conteúdos que nem sempre são fáceis de entender sem uma série de outros conhecimentos prévios. Mas estas situações são manejáveis com cordialidade, preparação e comunicação adequadas.

É sempre importante relembrar algumas características das famílias que devem ser consideradas nestas interações, que foram propostas no texto do livro The patient in the family: an ethics of medicine and families. Um ponto fundamental é que os membros da família não são substituíveis por similaridade ou por pessoas mais qualificadas. Outro ponto é que estas pessoas estão vinculadas umas às outras, seja por vínculos naturalmente impostos, que podem ser positivos ou negativos. Isto pode ser devido aos motivos associados às relações, que sempre sempre contam muito. Por fim, é fundamental entender que as famílias são histórias em andamento.

Levar em conta todas estas características é muito importante ao lidar com processos de tomada de decisão envolvendo familiares. Nos prontuários e nas informações compartilhadas entre profissionais, a composição e outros aspectos relacionados às famílias são escassos e muitas vezes confusos.

As situações decorrentes de ter um familiar doente que necessita cuidado, atenção, acompanhamento e auxílio na tomada de decisões importantes exige empatia e compaixão. Empatia no sentido de buscar entender a situação na perspectiva do outro. Compaixão ao estabelecer a relação de ajuda com o outro que sofre.

Um outro fator que pode impactar neste processo de deliberação é a chegada de um familiar distante, que pode desde o ponto de vista geográfico e afetivo. Esta é uma situação que ocorre frequentemente. 

O paciente e os familiares, que já tinham contato com o médico assistente, ou outros membros das equipes assistenciais, já podem estar adequadamente esclarecidos. Os processos de tomada de decisão podem estar sendo encaminhadas de forma harmônica. Contudo, com a chegada de um "familiar distante" esta situação pode sofrer uma perturbação, algumas vezes de forma significativa. 

A chegada de um familiar distante pode retomar conflitos familiares, talvez, não adequadamente entendidos ou resolvidos; de falta de conhecimento da própria situação atual do paciente e da família; da falta de comunicação entre os membros da família; e de diferentes perspectivas nos sistemas de crenças e valores.

Muitos conflitos familiares não são discutidos pelas pessoas envolvidas, talvez querendo negar ou evitar desgastes e enfrentamentos. Nas situações de maior tensão, como as vivenciadas em um ambiente de saúde, estes conflitos podem emergir e podem deslocar o foco das discussões. Desentendimentos e mágoas antigas podem voltar e criar barreiras emocionais entre os membros do grupo familiar. 

É bastante frequente o paciente, ou outro familiar, confidenciar a um membro das equipes assistenciais envolvidas sobre este tipo de situação. Caso esta informação seja relevante para o entendimento e condução da situação atual, a mesma deve ser compartilhada no prontuário, com uma descrição isenta de julgamento moral. As informações compartilhadas devem ser descritas apenas em seus pontos considerados como relevantes. Os profissionais devem antecipar esta situação aos pacientes e familiares, ou seja, que as informações relevantes são compartilhadas entre os membros das equipes, mas que todos têm o dever de confidencialidade associado às mesmas.

A chegada de um "familiar distante" é um desafio em termos de atualizar informações sobre o paciente e o processo de tomada de decisão atualmente vigente. É fundamental, quando possível, consultar o paciente, ou caso tenha um representante formalmente indicado, sobre os limites de compartilhamento de informações. A privacidade pessoal deve ser sempre priorizada. Nestas interações, deve ser enfatizado dever de preservar estas informações a todos os envolvidos. Os limites da privacidade relacional também são importantes de serem delimitados. Este "familiar distante" pode chegar com a expectativa de um quadro de saúde que não mais existe. O paciente ou outros familiares podiam ter omitido informações com a finalidade de não preocupar quem estava distante, mas que agora é surpreendido com uma mudança importante entre o quadro esperado e o realmente existente. Esta  dissonância deve ser adequadamente esclarecida por meio de uma comunicação adequada. 

Outro importante fator é a falta de comunicação entre os próprios familiares. Não é incomum ter membros da família que não se comunicavam por um longo período de tempo. Pessoas que romperam relacionamentos familiares podem se deparar com uma situação de convivência forçada pela necessidade do quadro de saúde do paciente. A presença de diferentes níveis de conhecimento e compreensão é um fator dificultador na relação com os profissionais de saúde. Além de poder potencializar  conflitos entre os familiares. Os profissionais de saúde podem auxiliar na mediação ou no encaminhamento destas situações mantendo sempre a perspectiva do melhor interesse do paciente. 

Finalmente, um outro importante fator a ser considerado é o sistema de crenças e valores. Este sistema envolve não apenas valores objetivos, crenças estruturadas, mas também interesses e desejos. O importante é trazer a discussão sobre este tema na perspectiva do paciente. As famílias podem não ter mais um conjunto de crenças e valores comum entre seus membros. O próprio afastamento deste familiar pode ter sido causado por estes fatores, assim como também pode gerar mudanças de como encarar desafios de vida e viver. O importante não é discutir os sistemas de crenças e valores pessoais de cada um, mas buscar um exercício de entendimento empático na perspectiva do paciente. As famílias são histórias em andamento. 

A "Síndrome do Familiar Distante" é uma situação frequente e que deve ser enfrentada de forma adequada por todos os profissionais. Em muitas destas situações, assim como esta pessoa chegou de forma inesperada, também se vai abruptamente, após ter causado uma perturbação. É fundamental identificar quem representa os melhores interesses do paciente, que não este estiver impedido de tomar as suas próprias decisões.

Leitura recomendada

Nelson HL, Nelson JL. The patient in the family:  an ethics of medicine and families. New York: Routledge, 1995.