domingo, 20 de agosto de 2023

As múltiplas perspectivas da Saúde

José Roberto Goldim

A Bioética, quando entendida em sua perspectiva complexa, permite reflexões sobre vários temas. A saúde é um destes temas preferenciais para a reflexão bioética.  A perspectiva complexa associada às ações na área da Saúde permite envolver um conjunto amplo de argumentos que servem para verificar a sua adequação. 

A saúde têm múltiplos significados de acordo com o entendimento, com o paradigma utilizado e da abrangência estabelecida para as suas ações. a ter uma abordagem baseada no paradigma das evidências epidemiológicas ou das evidências narrativas. Quanto a abrangência, podem ser identificadas a  saúde individual, a saúde pública, a saúde coletiva, a saúde única, a saúde global e a saúde planetária.

Os diferentes entendimentos da saúde

Desde a antiguidade, a saúde é entendida como ausência de doença. É uma perspectiva baseada no paciente individualmente, com ênfase nos aspectos biológicos visando enfrentar situações específicas identificadas pelo médico. O local de saúde passou a ser identificado como sendo o hospital. Os médicos, a partir da metade do século XIX, passaram a contar, de forma sistemática e profissional, com a colaboração das Enfermeiras na realização de suas atividades.

No início do século XX, a saúde também passou a ser entendida como sendo um direito humano coletivo. A Revolução Mexicana, de 1913, a Revolução Russa, de 1917, e a Constituição de Weimar da Alemanha, de 1919, consagraram este entendimento. Este direito coletivo garante o acesso aos cuidados de saúde para todos os cidadãos, sendo a que saúde se realiza no âmbito de toda a sociedade. O Art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, consagrou este entendimento ao propor que a "saúde é um direito de todos e um dever do Estado". A saúde passou a ser considerada como um critério de cidadania.

Com a criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, foi dado um outro entendimento do que é saúde. O modelo de abordagem biopsicossocial passou a ser incorporado e a saúde foi definida como o estado de pleno bem-estar físico, mental e social. Os aspectos biológicos foram acrescidos dos aspectos biográficos do individuo. Esta nova perspectiva também teve uma alteração de quem realiza saúde e onde que ela ocorre. Aos médicos e enfermeiros foram acrescidos todas as demais profissões da área da saúde. No Brasil, de acordo com a Resolução CNS 218/1997, são considerados profissionais de saúde:  Assistentes Sociais, Biólogos, Profissionais de Educação Física, Enfermeiros, Farmacêuticos, Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos, Médicos, Médicos Veterinários, Nutricionistas, Odontólogos, Psicólogos e Terapeutas Ocupacionais. A partir da Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978, o local onde a saúde ocorre passou a ser a rede de saúde, incluindo, além dos hospitais, os postos de diferentes níveis de complexidade. Novos profissionais e novos locais foram sendo incorporados às ações de saúde, entendida de forma mais abrangente.

Os paradigmas em saúde

Dois paradigmas são mais utilizados, o da Saúde baseada em Evidências Epidemiológicas e da Saúde baseada em Evidências Narrativas. Habitualmente, estes termos são utilizados de forma mais restrita, como Medicina baseada em Evidências e Medicina baseada em Narrativas. A opção de utilizar a expressão Saúde, ao invés de Medicina, tem como objetivo ampliar para além de um único enfoque profissional, envolvendo todos os demais participantes nas ações. 

Saúde baseada em Evidências Epidemiológicas é uma abordagem quantitativa que tende a ter  uma perspectiva de totalidade dos fenómenos estudados, ou seja, de buscar explicações que abarquem o conjunto de indivíduos, sem levar em conta as suas peculiaridades. Esta perspectiva baseada em evidências científicas, especialmente as epidemiológicas. 

Segundo Guyatt (1992), Saúde baseada em Evidências é uma abordagem que 

"retira a ênfase da intuição, da experiência clínica assistemática e de uma lógica patofisiológica como base suficiente para a tomada de decisões clínicas e enfatiza o exame das evidências da pesquisa clínica". 

Segundo este mesmo autor, esta abordagem exige novas habilidades dos profissionais e dos pacientes. Os profissionais têm que aprender a realizar buscas continuadas na literatura científica e a utilizar regras formais de avaliação destas evidências contidas nas produções científicas. 

HG Wells (1903), de forma antecipatória já havia dito que: 

"o pensamento estatístico será, um dia, tão necessário para a cidadania eficiente, quanto a habilidade de ler e escrever!"

A conjugação do pensamento estatístico com as buscas continuadas de dados publicados levou à possibilidade de estabelecer uma classificação das evidências de acordo com a confiança e validade associadas. A maneira mais comum de expressar esta classificação foi por meio da Pirâmide de Evidências Epidemiológicas. A opinião de especialistas é a evidência que tem a menor confiança e validade. No topo da pirâmide, ao contrário, estão  as revisões sistemáticas e os estudos de metanálise.

Esta é a mesma linha de pensamento da citação atribuída a W. Edwards Deming, porém não localizada em qualquer dos seus textos:

"sem dados, você é apenas uma pessoa com uma opinião". 

Porém, não basta ter apenas informações, se elas não estiverem associadas a uma perspectiva sobre o mundo, ou seja, a um paradigma. Matt Coyle (2021), fez um contraponto a proposta de Deming, ao afirmar que:

"sem uma opinião para guia-lo, você é apenas mais uma pessoa com dados".

A Saúde baseada em Evidências Narrativas valoriza o individual, a singularidade, as múltiplas possibilidades de entender uma mesma situação de acordo com o paciente ou situação envolvida. É a recuperação da possibilidade de contar a histórica individual de cada pessoa, de cada paciente.  É, de acordo com Goyal e colaboradores (2008), lembrar que os pacientes tem nome e endereço, ou seja, são pessoas únicas e localizadas. A proposta destes autores é de que os profissionais de saúde devem sair dos relatos impessoais dos pacientes. 

Infelizmente, o conceito de narrativa tem sido confundido com o de versão. Narrativa, segundo Alberti (2012) é:

"é o estabelecimento de uma organização temporal, através de que o diverso, irregular e acidental entram em uma ordem, que não é anterior ao ato do relato, mas coincidente com ele; que é pois constitutiva de seu objeto."

Versão, por outro lado, são os "diferentes modos de contar ou interpretar o mesmo ponto, fato, história etc.", segundo esta mesma autora. Ou seja, a narrativa organiza um relato, informações antes dispersas que passam a fazer sentido., enquanto que a versão pode ser fantasiosa e infundada.

Zaharias (2018) ao questionar o que é Medicina baseada em Narrativa responde que é uma habilidade de contar histórias. Contar histórias é reconhecer a singularidade de cada paciente, é estabelecer e aproximar as conexões entre o profissional e o próprio paciente, é, finalmente, reconhecer que podem existir diferentes perspectivas para entender a mesma situação. Fazer a narrativa é organizar estas informações de uma maneira que permita o seu melhor entendimento por parte de todos.

Isto já havia sido descrito por Hipócrates, no seu livro Prognóstico. Neste texto, a palavra prognóstico, não se refere apenas a predizer o futuro, mas sim dar esta continuidade de informações ao longo do tempo, é estabelecer uma trajetória, uma hipótese, um modelo explicativo para a situação que busca descrever. O texto de Hipócrates estabelece que:


"Parece-me que é excelente que o médico estabeleça hipóteses. Pois, se ele investiga e relata aos seus pacientes, o presente, o passado e o futuro, antes mesmo que ocorram, preenchendo as lacunas nos relatos dados pelos doentes, ele terá mais condições de compreender os casos. Desta forma, os pacientes se entregarão a ele, com confiança, para tratamento."  


Muitas vezes estes paradigmas epidemiológico e narrativo são entendidos como sendo antagônicos, quando, na realidade, são complementares. Subbiah (2023) reenquadrou a Pirâmide de Evidências na perspectiva de um Iceberg de Evidências. A antiga Pirâmide é apenas a parte visível desta gigantesca estrutura de conhecimentos. Na parte "submersa", que aprofunda estas questões, estão incluídas as novas contribuições geradas pela tecnologia da informação, como a internet das coisas e o aprendizado de máquinas, assim como o paradigma narrativo. Os dados da História Natural, incluindo aspectos ambientais e sociais, e da história pessoal passam  a ser parte de mesmo conjunto de informações. O Modelo da Inferência para a Melhor Explicação, proposto é uma possibilidade de integração entre diferentes paradigmas dedutivos e indutivos, que permite utilizar o que há de melhor em cada um destes modelos.


Esta é a grande contribuição da teoria da complexidade: permitir esta visão integrada de paradigmas antes isolados. Não é uma fusão, uma perda de fronteiras, nem mesmo uma apropriação: é a possibilidade de diálogo, de troca de saberes entre duas diferentes perspectivas - epidemiológica e narrativa - de descrever a mesma realidade.

A abrangência da saúde

Existem múltiplas abrangências para a saúde. Os enfoques podem variar do nível individual, de uma única pessoa, até a saúde planetária, quando as questões mais amplas são abarcadas.

A perspectiva da saúde ser entendida apenas como um enfrentamento às doenças, tinha uma  perspectiva individual e biológica, baseada na pessoa doente. Saúde era o contrário da doença. O foco desta abrangência era manter e salvar a vida desta pessoa. A inclusão do bem-estar na definição de saúde proposta na criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, incluiu, além das questões biológicas, as relacionadas à saúde mental e social. Ou seja, as questões biográficas passaram a ser também consideradas. Cada ser humanos não era mais considerado apenas como um ser vivo, mas também como uma pessoa. A perspectiva da Saúde não era mais apenas preservar a vida, garantir a sobrevivência, mas também ter uma atenção ao viver, ao bem-viver, de dada um. Desta forma, os aspectos relacionais entre pessoas, antes vistos apenas na perspectiva de doenças infectocontagiosas, passaram a ter um novo olhar. 

A abrangência das questões envolvendo a saúde foi sendo progressivamente ampliada para abarcar as questões de Saúde Pública e de Saúde Coletiva. Esta mudança da perspectiva individual para coletiva surgiu no final do século 19 e no início do século 20. A Saúde Pública se utilizou  dos conhecimentos gerados pela Epidemiologia, para estabelecer políticas públicas de alocação de recursos na área da saúde. Por outro lado, com a evolução do pensamento dos Direitos Humanos, alguns Estados começaram a garantir o direito à saúde, entendido como um direito coletivo e não individual. Esta inclusão da saúde como um critério de cidadania, é que permitiu o surgimento da Saúde Coletiva. A saúde pública assumiu uma proposta mais quantitativa, enquanto que a saúde coletiva passou a abordar estas mesmas questões de uma forma mais qualitativa, mais crítica e articulada. 

No final do século 20 foram incorporadas as reflexões sobre as questões ambientais. Houve a proposta de que o ambiente saudável é um direito fundamental transpessoal, ou seja, que ultrapassa inclusive a perspectiva humana. Isto acarretou também uma nova ampliação do entendimento do que é saúde, com a introdução da saúde única, da saúde global e da saúde planetária.

Ampliando ainda mais esta visão, surgem a Saúde Global e a Saúde Planetária.  A saúde global abarcando, de forma mais abrangente, o conjunto de todos os elementos anteriormente citados. É a saúde não mais na perspectiva de um país ou região, mas do conjunto dinâmico das ações sanitárias em nível supranacional. É uma abrangência que leva em conta as biorregiões. A saúde global propõe uma perspectiva abrangente para as políticas públicas. Por sua vez, a saúde planetária vai ainda mais além. O seu objeto de preocupação é o planeta como um todo, é o entendimento sistêmico e integrado da Terra como Gaia. A saúde planetária passa a incluir na saúde, as questões climáticas, o uso de recursos naturais, as diferentes formas de produção e uso de energia, as alterações de paisagens e de ecossistemas, a mineração e a emissão de gases. Estas questões mais abrangentes, que antes não eram abordadas na perspectiva da área da saúde, passaram a assumir crescente importância devido às suas repercussões.

A perspectiva de Uma Só Saúde (One Health) surgiu de uma proposta de integração mais efetiva entre os aspectos de saúde envolvendo diferentes seres vivos, não só considerando os humanos. Nesta perspectiva a saúde humana e a saúde animal deveriam ter uma convergência e não uma atuação em paralelo. A Medicina Humana e a Medicina Veterinária devem ter uma maior proximidade, em termos de entendimento e de atuação. Inúmeras questões podem ser levantadas nesta nova visão. A pressão de sobrevivência das espécies animais selvagens que vivem em ecossistemas ameaçados ou em transformação, e que passam a ter maior interação com populações humanas é um destes temas. As diferentes formas de produção de animais para servirem de alimento é outro tema relevante. Da mesma forma, o aumento da quantidade e do tipo de interação  entre humanos e animais de estimação é outra questão importante desde o ponto de vista da saúde. Os animais de estimação passaram a fazer parte da vida diária e familiar, com maior interação e convívio, inclusive tendo estas relações reconhecidas como pertencentes a "famílias multiespécies". Os animais de estimação, assim como os animais de produção, começaram a receber medicamentos semelhantes aos utilizados por humanos, com repercussões ambientais e sanitárias importantes. A própria relação com microorganismos também mudou, ao invés de um enfrentamento, a nova perspectiva é de adaptação, de convivência segura e não de eliminação. A relação menos estudada, mas que é uma importante fronteira a ser ainda devidamente entendida, é da interação dos humanos com as plantas. As questões de saúde decorrentes do uso de alimentos vegetais, suas transformações e modos de produção, incluindo nutrição vegetal e controles de produção. Como fica evidente, a perspectiva da proposta de Uma Só Saúde exige uma perspectiva relacional e dinâmica de todos os fatores envolvidos, seja em âmbito individual, populacional, comunitário ou ambiental.

Em uma perspectiva linear de pensamento, cada um destes diferentes níveis de saúde - saúde individual, saúde pública, saúde coletiva,  saúde global, saúde planetária e uma só saúde - cada um seria apenas uma ultrapassagem da anterior. Porém, quando estas múltiplas perspectivas são abordadas de forma complexa,  elas não são excludentes, mas se complementam, permitindo uma visão abrangente do todo, sem perder a peculiaridade de cada uma das partes.  Todas as perspectivas são importantes de acordo com a sua adequação e relação às demais.  A abordagem complexa da Saúde permite uma visão integrada da unidade na multipliidade.

Bioética, Saúde e Complexidade

A Bioética e a Saúde, quando entendidas de forma complexa, expressam esta perspectiva integradora de competências científicas e humanísticas. A saúde deve ter este novo olhar integrado, que permita construir argumentos que possam servir para explicar melhor a atual situação que estamos enfrentando. Não é uma visão de escolha, de exclusão, mas sim de inclusão de múltiplas perspectivas de entendimento. A contribuição da Bioética é a de permitir uma reflexão sobre a adequação das ações envolvidas na área da saúde, em todos os seus múltiplos significados e usos.

Referências

Guyatt G. Evidence-Based Medicine. JAMA. 1992 Nov 4;268(17):2420. 

Wells HG. Manking in the making. New York: Chapman & Hall; 1903.

Coyle M. Without an opinion you’re just another person with data. Medium Apr 23, 2021.

Subbiah V. The next generation of evidence-based medicine. Nat Med. 2023;29(January):49–58. 


Goyal RK, Charon R, Lekas H-M, Fullilove MT, Devlin MJ, Falzon L, et al. “A local habitation and a name”: how narrative evidence-based medicine transforms the translational research paradigm. J Eval Clin Pract. 2008 Oct;14(5):732–41. 


Alberti V. De “versão” a “narrativa” no Manual de história oral. História Oral. 2012;15(2).


Charon R, Montello M. Stories matter: the role of narrative in medical ethics. New York: Routledge; 2002.


Zaharias G. What is narrative-based medicine? Narrative-based medicine 1. Canadian Family Physician March 2018, 64 (3):176-180.


Hippocrates. Prognostic. Vol. II. Cambridge: Harvard, 1959:7.


Lutzenberger J. Gaia: o planeta vivo (por um caminho suave). Porto Alegre: L± 1990.