sexta-feira, 1 de maio de 2020

COVID-19 e Alteridade na prática

José Roberto Goldim

É sempre importante retomar o tema da Alteridade. Duas situações merecem ser melhor discutidas: a importância da possibilidade de reconhecer a face do outro e a necessidade de proteção recíproca gerada pelas relações interpessoais.

Os profissionais de saúde ao terem que utilizar os equipamentos de proteção individual necessários à sua proteção, dos demais profissionais e dos pacientes, vestem roupas que não permitem diferenciar características pessoais e profissionais, além de ter o seu rosto, a sua face, pelo menos em parte, encoberta. Tudo isto leva, pelo menos parcialmente, a uma despersonalização.  

È especialmente a face que me dá a possibilidade de reconhecer e ser reconhecido. Ocultar o rosto com máscaras e protetores faciais, é impedir que isto ocorra. É apenas mais alguém que está alí presente, mas que não é passível de ser reconhecido. Em muitas fotos e relatos aparecem profissionais com o seu nome e profissão identificados no próprio avental de proteção, em letras grandes escritas pelos próprios profissionais. 

A idéia de propor a utilização de crachás de grande tamanho possibilita reverter, pelo menos parcialmente, esta situação, desde que mantidas as condições de garantir a segurança dos pacientes e dos profissionais. Ter a possibilidade de escolher pessoalmente uma foto para o crachá é um início de uma relação: é escolher como quer ser reconhecido. Ao fazer documentos, em muitas situações é imposta a utilização de uma foto que a pessoa não se sente representada, que a própria pessoa não se sente adequadamente representada, Poder utilizar fotos pessoais anteriores é resgatar boas memórias, é introduzir no ambiente conturbado da assistência, a possibilidade de compartilhar momentos felizes já vividos. Ser reconhecido pelo nome e pela profissão é permitir que cada um seja identificado na sua singularidade. Esta possibilidade de ter o seu rosto visto novamente, de seu nome ser divulgado e a sua profissão identificada é que estabelece a possibilidade de ser reconhecido e de reconhecer.  É romper com a relação com qualquer um, para se tornar um conjunto de relações com pessoas que identifico. É a presença da biografia de cada um em meio a um cenário que dificulta estas relações.

Alteridade é também se responsabilizar pelo outro e por si mesmo. É desta interação responsável entre o eu e o tu, que surge a possibilidade de ultrapassar o plano indivídual, para surgir o nós, o coletivo inclusivo e compartilhado. É baseado nesta relação de corresponsabilidade que surge a justificativa de uma ação tão simples quanto utilizar máscaras faciais em todos os locais públicos. As máscaras usuais não protegem o indivíduo adequadamente, mas impedem, de forma bem efetiva a contaminação dos outros. Desta forma, ao proteger o outro, eu estou me protegendo. Esta rede de proteção recíproca, compartilhada, é que permitirá o convívio social por um bom tempo. Quanto mais pessoas utilizarem máscaras, mais pessoas estarão sendo protegidas: é o oposto da contaminação. Ser egoísta não vai ser efetivo, ser apenas altruísta, também não. Ser corresponsável é a melhor resposta: uns protegendo os outros e assim se protegendo a si mesmo.  

A não neutralidade perante o outro, expressa pela identificação, pelo reconhecimento, pela proteção recíproca é a resposta mais adequada, é a efetivação da Alteridade na prática diária de cada um de nós. A vulnerabilidade que atingiu a todos, tornou ainda mais atual as palavras do poeta John Donne, em 1624, de que nenhum ser humano é uma ilha, todos somos parte de um continente, reconhecendo que cada morte de alguém, me diminui como pessoa, por isso, não adianta perguntar por quem os sinos estão tocando, pois eles tocam por cada um de nós. 

domingo, 12 de abril de 2020

COVID-19 e a Alocação de pacientes em projetos de pesquisa

José Roberto Goldim


A atual pandemia da COVID-19 trouxe consigo inúmeros desafios para a reflexão, um deles é a realização simultânea de projetos de pesquisa envolvendo pacientes com os mesmos critérios de inclusão, ou seja, projetos que competem entre si para alocar pacientes. Isto nos leva a refletir sobre as interações da assistência e da pesquisa existentes na pesquisa clínica, especialmente entre a relação de risco-benefício individual e coletivo. 

Na pesquisa clínica existe uma sobreposição das atividades de assistência com as de pesquisa. Na assistência o paciente procura um serviço de saúde em função de uma necessidade, enquanto que na pesquisa o pesquisador oferece a possibilidade de uma pessoa participar ou não de um determinado projeto de interesse do próprio pesquisador. A necessidade é um operador modal forte, enquanto que a possibilidade é um operador fraco. É da associação da necessidade com a possibilidade que surge um terceiro operador: a contingência.

A necessidade associada à assistência caracteriza que é necessário fazer o tratamento, se e somente se não for possível fazer o tratamento. Idealmente, apenas a impossibilidade de atender pode impedir a realização do tratamento. Isto pode ocorrer por múltiplas causas, como, por exemplo, o esgotamento de recursos do próprio sistema de saúde, por meio da falta de leitos, de equipamentos, de medicamentos.

A possibilidade associada à pesquisa não-clínica estabelece que é possível participar da pesquisa, se e somente se não é necessário participar da própria pesquisa. Se houver necessidade envolvida, a liberdade de escolha fica tolhida, negando a própria noção de possibilidade. 

A pesquisa clínica, ao associar estas duas características de necessidade e possibilidade, estabelece um novo cenário, que o de contingência. É a contingência  que deve nortear as atividades de pesquisa clínica. A contingência estabelece que é possível participar da pesquisa para fazer tratamento, mas não necessariamente tem que participar da pesquisa para se tratar.

Na atual Pandemia da COVID-19 esta característica está muito presente nos projetos de pesquisa envolvendo atividades assistenciais em pacientes, com alguns outros componentes potencialmente complicadores. Um deles é a realização simultânea de vários projetos de pesquisa propondo diferentes tipos de intervenções em um mesmo grupo de pacientes.

O processo de recrutamento destes pacientes para participação em diferentes projetos de pesquisa caracteriza um problema de alocação de recursos, neste caso referindo-se aos pacientes Habitualmente, podem ser utilizados os critérios de necessidade, merecimento e de prognóstico para realizar este processo de alocação.

O critério da necessidade pode ser referir tanto ao paciente quanto ao profissional. O paciente pode estar necessitando acesso a drogas ainda experimentais, a novas terapias e procedimentos para encaminhar a sua assistência. Da mesma forma, o pesquisador tem a necessidade de incluir pacientes como participantes de seu estudo para poder gerar novos conhecimentos. Esta conjugação de necessidade é que pode gerar a perda de liberdade de escolha. O critério da necessidade é sempre utilizado com base no presente. Ou seja, o cenário de necessidades é permanentemente mutável, de acordo com as condições dos pacientes, que podem ou não preencher os critérios de inclusão, assim como o projeto pode ou não ter completado o tamanho de amostra esperado.

O critério de merecimento pode se referir tanto ao paciente, quanto a equipe de pesquisa. Este critério sempre remete a situações passadas. Um exemplo disto pode ser a utilização de um sistema que priorize o projeto que foi aprovado em primeiro lugar. Mesmo tendo outros projetos concorrentes, o mais antigo teria prioridade sobre os demais, pelo simples fato de ter sido aprovado primeiro. Por outro lado, poderá ser realizada uma busca ativa competitiva dos pacientes elegíveis, por parte das equipes de pesquisa. Com este método, os pacientes seriam incluídos na medida em que as equipes de pesquisa os localizam. Estas duas situações utilizam o critério de merecimento denominado first come, first serve. Ou seja, o pesquisador que chegar primeiro recruta o paciente para o seu projeto. O critério de merecimento também pode utilizar méritos pessoais, como posições hierárquicas, reconhecimento científico ou social ou relações de poder para estabelecer a alocação. É sempre bom ressaltar que o critério de merecimento, quando adotado de forma isolada, pode gerar um importante viés de seleção no processo de alocação de recursos. Basta lembrar o que ocorreu, anteriormente, com a utilização isolada do critério "tempo de fila de espera" para alocação de órgãos em transplantes.

O critério de prognóstico também é uma alternativa, sendo principalmente utilizado para exclusão de possíveis participantes, isto é, para não selecionar pacientes, mais do que para incluí-los em um estudo. O critério baseado no prognóstico tem um importante viés de aferição associado, principalmente associados à dinâmica do quadro de saúde dos pacientes. Os prognósticos na área da saúde tem sempre um grande componente de incerteza. O critério de prognóstico se baseia no referencial utilitarista, que avalia a adequação em função da perspectiva coletiva e não individual. Ao lidar com pacientes com necessidades assistenciais, a perspectiva individual é sempre central. Se os pesquisadores têm, pelo menos a dúvida, de que a intervenção de seu projeto de pesquisa clínica possa vir a beneficiar os pacientes, esta oferta de participação deve ser feita de maneira justa, evitando discriminação e competições desnecessárias entre equipes. E o contrário também é verdadeiro, ou seja, a discussão dos riscos e incertezas associados é fundamental.

Um importante fator a ser utilizado nas avaliações entre incluir ou não um paciente em uma pesquisa é a equipolência. Este conceito não implica em reconhecer que exista uma equivalência entre os diferentes projetos de pesquisa que estão competindo para serem realizados em um mesmo grupo de pacientes. A equipolência estabelece que existe indiferença entre as opções. Se existir alguma evidência de que uma das alternativas é melhor para aquele paciente determinado, é ela que deve ser oferecida a todos os participantes.

Havendo vários projetos que competem na alocação de pacientes simultaneamente, o mais indicado é que a instituição, onde os mesmos irão ocorrer, assuma um papel ativo na seleção dos pacientes. Pode ser constituído um grupo específico para realizar esta atividade. Esta decisão não pode ficar a cargo de apenas uma única pessoa ou de um grupo que tenham interesses específicos. Esta decisão, realizada por um grupo independente, visa proteger os pacientes de situações constrangedoras de múltiplas propostas de participação em diferentes projetos. Da mesma forma, a realização de pesquisas não pode comprometer o dever de prestar assistência qualificada aos pacientes, além de proteger os profissionais de saúde, que atuam junto a estes pacientes, de uma  sobrecarga adicional de trabalho.

O grupo encarregado de estabelecer a alocação dos pacientes aos diferentes projetos com inclusão simultânea deverá adotar algumas diretrizes para o seu funcionamento. Algumas considerações éticas, já utilizadas na reflexão sobre a adequação dos profissionais assistenciais, também podem ser utilizadas neste processo de alocação de pacientes aos diferentes projetos de pesquisa competidores. Estas diretrizes podem utilizar quatro fatores, como a Visibilidade, a Inclusividade, a Razoabilidade e a Prontidão. 

A Visibilidade deve garantir que o processo de tomada de decisão, realizado pelo grupo, seja fundamentado e possa ser discutido por todos que estiverem envolvidos. A Visibilidade é que permite uma adequada prestação de contas das ações e decisões tomadas pelo grupo responsável pelas decisões de alocação. É a Visibilidade que garante a transparência.

A Inclusividade deve garantir que todos os setores participantes possam ter alguma participação no processo de decisão. É a Inclusividade que deve também orientar a própria seleção dos membros do grupo encarregado por alocar pacientes aos diferentes projetos de pesquisa aprovados. Deverão participar membros experientes das equipes assistenciais que terão seus pacientes incluídos nos projetos de pesquisa. Da mesma forma, o grupo deve incluir pesquisadores que possam auxiliar no entendimento das demandas que os diferentes projetos irão aportar à assistência. Outro segmento fundamental de ter representação neste grupo de tomada de decisão são profissionais acostumados a lidar com avaliações de risco, como os membros de Comissões de Segurança e Qualidade assistencial. Além destes membros, representantes das áreas administrativas também podem ser incluídos para avaliar o impacto da realização dos projetos.

A Razoabilidade estabelece que as decisões devem se basear em evidências, princípios e valores que permitam adequação às necessidades assistenciais dos possíveis participantes das pesquisas. A Razoabilidade deve garantir a efetividade por meio da reciprocidade e da proporcionalidade. A reciprocidade deve refletir a possibilidade de trocas mútuas e de cooperação entre os envolvidos, especialmente entre as equipes de pesquisa e de assistência. A proporcionalidade deve realizar as avaliações dos efeitos relativos a cada uma das intervenções propostas pelos diferentes estudos competidores. É a Razoabilidade que deve garantir que as diferenças possam ser levadas em consideração no processo de tomada de decisão. As diferenças não podem ser transformadas em desigualdades, em uma forma de discriminação. Uma proposta feita pelo Prof. Robert Veatch, para enfrentar problemas de inclusão de pacientes em projetos de pesquisa seria uma estratégia de pseudo-aleatorização. De acordo com esta proposta, somente seriam incluidos pacientes que fossem indiferentes frente aos diferentes projetos. Ou seja, caso o paciente manifestasse alguma preferência dentre as alternativas, esta seria a escolha. O grupo encarregado pela alocação poderia utilizar esta abordagem ao selecionar pacientes, mesmo com critérios de inclusão semelhantes, de acordo com outras características assistenciais. Estas características poderiam estar vinculadas à própria capacidade de absorção destas atividades na rotina assistencial.

A Prontidão é uma característica fundamental. As decisões podem e devem ser revistas, se necessário, e de acordo com as características mutáveis das condições de atendimento assistencial e de novos estudos que sejam aprovados. É a Prontidão que também permite dar respostas em tempo real às disputas e demandas das equipes assistenciais e de pesquisa envolvidas, assim como da própria instituição e da sociedade.

É fundamental ao adequado funcionamento do grupo encarregado pela alocação de pacientes aos diferentes projetos de pesquisa competidores manter a perspectiva de considerar a contingência associada à realização das pesquisas clínicas; avaliar a coerência entre os Princípios Éticos da Dignidade, da Autonomia, da Integridade e da Vulnerabilidade; e a preservação dos fatores de Visibilidade, Inclusividade, Razoabilidade e Prontidão, 

Em suma, este é mais um desafio gerado pela pandemia da COVID-19 que terá que ser enfrentado por todas as instituições.

Para ler mais

Agamben G. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Stanford: Stanford University; 1998. 

Goldim JR. Equipolência. Porto Alegre, Site de Bioética, 2001.

Veatch RM. The irrelevance of equipoise. J Med Philos. 2007;32(2):167–83. 

Royal College of Physicians. Ethical dimensions of COVID-19 for frontline staff [Internet]. London: Royal College of Physicians; 2020. 

Organización Panamericana de la Salud (OPAS) - Programa Regional de Bioética. Orientación ética sobre cuestiones planteadas por la pandemia del nuevo coronavirus (COVID-19). Washington DC: OPAS; 2020.

Goldim JR. Bioética Complexa. Referenciais Teóricos: Princípios. You Tube, 2020.


COVID-19 e as confusões entre Atestado, Declaração e Certidão de Óbito

José Roberto Goldim



O Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Saúde, em função da excepcionalidade da situação gerada pela pandemia da COVID-19, publicaram uma portaria conjunta, com a finalidade de permitir o sepultamento de pacientes que forem a óbito neste período, sem a necessidade de ter a sua Certidão de Óbito. 

Isto gerou um grande mal entendido na imprensa, pois alguns meios de comunicação divulgaram que os pacientes poderiam ser sepultados sem Atestado de Óbito. No próprio título desta reportagem havia uma outra informação equivocada de que " quando não se souber ao certo a causa, morte poderá ser registrada como "provável para Covid-19".




Mesmo entre profissionais de saúde existe uma confusão entre os usos de três expressões: Atestado de Óbito, Declaração de Óbito e Certidão de Óbito. 

O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina usam de forma indistinta as denominações Atestado de Óbito e Declaração de Óbito. Em várias resoluções, pareceres e publicações estas duas denominações são utilizadas. No Código de Ética Médica é utilizada apenas a expressão Declaração de Óbito, mas é dito que o médico deve atestar o óbito do paciente. Atestado de Óbito era a denominação utilizada antes da década de 1970. O documento era formalmente denominado de Atestado Médico de Causa de Morte. Este nome foi alterado para Declaração de Óbito em 1976, mas a utilização da expressão Atestado de Óbito permanece até os dias de hoje.

A denominação correta para o documento que o médico deve fornecer com a finalidade de documentar a morte de um paciente é Declaração de Óbito.  É um documento padronizado, único e com fornecimento restrito e controlado. A Declaração de Óbito é um documento que pode ser fornecido exclusivamente por médicos. A Declaração de Óbito tem, no mínimo, duas funções: uma epidemiológica e outra legal. 

A Declaração de Óbito é o documento básico do Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM do Ministério da Saúde, que é utilizado por todas as instâncias do sistema de saúde. As ações de vigilância sanitária em muito se baseiam nas informações fornecidas pelos médicos nos diferentes campos da Declaração de Óbito. A Declaração de Óbito documenta o fim da vida de um indivíduo, estabelecendo os aspectos biológicos que caracterizaram esta situação

Este mesmo documento, segundo a Lei dos Registros Públicos – Lei 6.015/1973, serve para que os Cartórios de Registro Civil possam fornecer a Certidão de Óbito, que é indispensável para as formalidades legais do sepultamento. A Certidão de Óbito encerra o viver de uma pessoa, isto é, a sua biografia. 

Fazendo uma analogia entre o início e o final de vida, é prerrogativa do médico fornecer a Declaração de Nascido Vivo e a Declaração de Óbito. Com base nestes documentos, o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais pode então fornecer, respectivamente, as Certidões de Nascimento e de Óbito. Reiterando a diferença: o documento médico é a Declaração e o legal é a Certidão.

A Portaria conjunta do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério da Saúde apenas dispensou a necessidade da Certidão de Óbito para facilitar a realização de sepultamentos, evitando que ocorra um longo período entre o óbito em si e o seu registro em cartório. A justificativa para encurtar este período é sanitária. A própria Portaria garante que todos os direitos ficam preservados e que os familiares terão um prazo de até 60 dias para efetivar o registro em cartório e terem acesso à Certidão de Óbito.

Outra confusão que ocorreu com a interpretação superficial do texto da Portaria foi a questão do diagnóstico da causa do óbito. O Parágrafo Único do Artigo 3o da Portaria estabeleceu que "havendo morte por doença respiratória suspeita para Covid-19, não
confirmada por exames ao tempo do óbito, deverá ser consignado na Declaração de Óbito a descrição da causa mortis ou como“provável para Covid-19” ou “suspeito para Covid-19”. Esta recomendação tem como objetivo evitar que a ausência de um resultado de um teste diagnóstico confirmatório para a COVID-19 não tivesse, pelo menos a sua caracterização como uma suspeita diagnóstica. Este dado é de grande importância para o monitoramento epidemiológico da Pandemia.

Para ler mais

Brasil. Conselho Nacional de Justiça e Ministério da Saúde. Portaria conjunta no 1, de 30 de março de 2020. [Internet]. Brasilia: CNJ; 2020.  

Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul. Atestado de óbito [Internet]. Porto Alegre: CREMERS; 2018.

domingo, 5 de abril de 2020

COVID-19 e Alteridade

José Roberto Goldim


A COVID-19 tem gerando situações muito inusitadas. Muitas explicações têm sido dadas, as vezes utilizando justificativas e modelos simplistas, na busca de entender o que está ocorrendo. 

A reflexão sobre a adequação das ações tomadas por governos, organizações internacionais, empresas, instituições e pessoas tem inúmeras maneiras de ser enfocada. A Alteridade, contudo, parece ser o referencial teórico que mais tem adequação com o que estamos vivendo.

A Alteridade é uma proposta recente na história da Filosofia, como modelo estruturado de pensamento. Esta nova escola foi, predominantemente elaborada pelo filósofo Emmanuel Levinas. Porém, as suas bases remontam a diferentes momentos e manifestações do processo civilizatório. Levinas deu sentido a práticas sociais, que eram realizadas em diferentes níveis. Ele fez uma reflexão que propicia um enfoque muito criativo e inovador para várias situações. 

Muitas perspectivas, sejam elas individualistas ou coletivistas, retiravam a perspectiva do outro. A Alteridade permite uma ultrapassagem dos conceitos de egoísmo e de altruísmo como sendo as únicas possibilidades de abordagem de situações como as apresentadas pela Pandemia da COVID-19.

As manifestações egoístas se manifestam de várias formas durante a situação de Pandemia que estamos vivendo. No plano individual, por exemplo, este egoísmo se manifesta ao comprar e estocar medicamentos, alimentos e outros produtos que uma pessoa sequer necessita, na presunção de que poderá vir a utilizar.  As manifestações de violência doméstica, verificadas em todos os países, também é reflexo desta postura individualista e egoísta. O outro é objeto de violência por que não conta, por que atrapalha. Em nível nacional, isto se manifesta ao utilizar a metáfora da guerra como enfrentamento à Pandemia. Este enfoque justifica estabelecer bloqueios de acesso e padrões de oferta agressiva de compra de produtos e equipamentos com a finalidade de abastecer unicamente o seu próprio país. Os fornecedores também contribuem neste processo, ao aceitar estas vender seus produtos por valores superiores aos que estavam praticando, tendo estoques limitados e comprometidos, acabam cancelando contratos de compra e venda anteriormente estabelecidos. Desta forma, deixam desassitidos compradores que se anteciparam e se programaram para enfrentar a situação atual. Outra manifestação de egoísmo coletivo é o bloqueio de retorno de cidadãos aos seus países. Estabelecer medidas de isolamento e quarentena ´para os viajantes que retornam se justificam pela ptoeção da comunidade, mas impedir o retorno é negar a própria cidadania destas pessoas. 

Por outro lado, o altruísmo, quando assumido como uma perspectiva única, acarreta  que os interesses do outro dominem a tomada de decisão, por meio da negação das necessidades e interesses da própria pessoa. Isto pode ocorrer quando, no ímpeto de auxiliar o outro, o profissional atua em situações de risco, sem as devidas medidas de proteção, e acaba se contaminando ou adoecendo Esta negligência para consigo mesmo é que caracteriza a inadequação do altruísmo absoluto.

A Alteridade colocou a reflexão ética das nossas ações, entendida como a busca pelo sentido e adequação das mesmas, como o centro da reflexão filosófica. Levinas incorporou várias tradições em suas reflexões. A Alteridade parte do ponto fundamental de que cada um de nós tem que incluir o outro como parte fundamental do nosso viver. É o outro que dá significado e sentido ao nosso próprio viver. 

Ao reincluir o outro como parte fundamental do meu viver, a Alteridade ressignifica a minha própria reflexão pessoal. Ao perceber o olhar do outro, a sua face, a sua relação única e significativa para comigo, isto impede um olhar indiferente. A desconsideração do outro afasta, despersonalizar, gera uma indiferença que tem um efeito terrível sobre a vida e o viver desta outra pessoa. A não-indiferença, ao contrário, traz consigo um olhar que acolhe, que inclui, que gera uma co-presença ética, uma co-responsabilidade. 



Na perspectiva da Alteridade, o indivíduo não tem o foco apenas nos seus interesses, ou abre mão de todos eles para assumir tão somente os interesses do outro. Da mesma forma, o indivíduo não assume os interesses do grupo em detrimento dos seus. A co-presença ética nos insere na relação efetiva com o outro, é ela que gera uma nova unidade que é o "nós". Não são mais os meus interesses, ou apenas os interesses do outro, mas sim os interesses comuns que surgem dessa interação efetiva. A Alteridade gera uma rede de solidariedade recíproca e compartilhada por todos. 

A co-responsabilidade é fruto do reconhecimento de que ao me tornar responsável pelo outro, eu me torno intrinsecamente responsável por mim mesmo. É esta percepção de responsabilidade recíproca que permite dignificar a presença do outro. Ele não é um dependente de mim, mas um parceiro efetivo nesta nova relação que surge a partir do reconhecimento da sua própria existência. 

E o que isto tem a ver com a COVID-19? Em muitas situações que estamos vivenciando a Alteridade está presente ou deveria ser utilizada como forma de explicar esta necessidade de justificar ações solidárias, não como altruístas, mas sim como efetivamente significativas a todos nós.

Quantas situações são possíveis de ser assim entendidas. O distanciamento social é um bom exemplo. Ele pode se manifestar por permanecer em casa, por reduzir os contatos interpessoais ao cumprimentar, ao estabelecer regras de etiqueta ao tossir e espirrar, por exemplo. A utilização de máscaras de proteção facial é uma outra estratégia que se insere nesta mesma linha. 

Ficar em casa é a medida mais efetiva para as pessoas se protegerem neste momento. As pessoas permanecendo em casa se protegem da contaminação e, ao fazerem isto, também estão protegendo outras pessoas. A exposição indevida desrespeita a proteção da própria pessoa e, simultaneamente, desconsidera a proteção do outro. Porém, a permanência em casa também tem consequências inadequadas. O aumento da violência doméstica é um triste exemplo. Mesmo nesta situação a explicação passa pela Alteridade. A violência é a negação do outro, é a negação da possibilidade de uma convivência digna, de um compartilhamento de interesses. 

Ao cumprimentar uma outra pessoa, eu a estou reconhecendo, eu a estou incluindo naquela relação momentânea e, por vezes, fugaz. Quando isto não é apenas um ritual social, que perde o seu sentido real, o cumprimento nos inclui. Muito mais importante do que tocar o outro, é estabelecer o contato visual, é ele que nos insere, é ele que reconhece e permite o reconhecimento recíproco. 

Ao utilizar máscaras de proteção, as pessoas protegem a si mesmas e igualmente as demais pessoas. O uso das máscaras de proteção são um bom exemplo de co-responsabilidade. Esta política de enfrentamento da pandemia tem sido utilizada em muitos locais. Um vídeo da República Tcheca justifica o uso de máscaras por toda a população com base na co-responsabilidade. De cada um cuidando de si e do outro. ou seja, baseando-se na Alteridade. Mesmo com o uso de máscaras, o olhar é possível.

Outra manifestação nesta mesma direção tem sido a relação entre filhos e pais idosos. Inúmeros filhos acolheram seus pais ou foram morar com eles neste momento de permanecer em casa. Os filhos mais velhos, que já tem seus filhos mais independentes, receberam os seus pais em suas casas. Outros optaram por retornar a casa de seus pais. A possibilidade de trabalho remoto possibilitou que todos permaneçam em casa, se protejam, e convivam, 

Em algumas outras situações este contato tem sido mediado por telefones celulares ou computadores. As redes sociais e as demais forma de contato interpessoal pessoal têm minimizado este distanciamento social e até mesmo o transformado em uma possibilidade de proximidade afetiva. 

Todas estas situações adequadas demonstram que a solidariedade real é fruto da Alteridade, da inclusão do outro como parte fundamental do meu viver..

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sexta-feira, 27 de março de 2020

COVID-19 e Modelos Explicativos

José Roberto Goldim


Todos os sistemas têm comportamentos semelhantes em maior ou menor grau. Existem vários modelos matemáticos que podem ser utilizados para verificar estes comportamentos. A pandemia da COVID-19 não é diferente.  

A Teoria do Caos pode ser um bom modelo explicativo a ser utilizado. Vários autores trabalharam estas questões, mas, talvez, o mais acessível é Edgar Morin. 
Morin explicou esta a mudança de um estado dinâmico de ordem para o de caos a partir de uma perspectiva dialógica entre os processos de interação e organização. A interação provocando a mudança de um estado de ordem para o de caos, e a organização de um estado de caos para uma nova ordem. Caso não ocorra um evento organizador o sistema se desintegra devido ao estado de caos em que se encontra. É isto que ocorreu no sistema de saúde da Itália e da Espanha.


Os sistemas, sejam eles quais forem, não são fechados, sempre sofrem influencia de elementos externos a eles. A pretensão de que conhecendo todos os elementos de um sistema seria plenamente possível prever o seu comportamento já foi ultrapassada pelos fatos e pelos estudos, especialmente de Ilya Prigogine.
As mudanças de fase de um sistema tem um comportamento muito bem estudado por outro modelo explicativo, a Teoria da Percolação. Este modelo foi desenvolvido na década de 1940 para buscar explicações dos motivos pelos quais um sistema colapsa, não mais permite a sua reorganização. A Teoria da Percolação é a base para o raciocínio de que o comportamento tende a mudar na medida que temos  50% da população exposta. 
No gráfico abaixo, este valor é associado a pc .A questão não é evitar que se atinja este valor de 50%, mas sim fazer com que a velocidade se reduza até atingir este valor. 


Fonte: Bunde e Kantehardt

Outro modelo matemático que pode ser utilizado é a Teoria dos Fratais. Esta teoria permite descrever a auto-semelhança existente entre fenômenos. Em aluguns momento os sitemas parecem não ter qualquer semelhança, mas voltam a repertir os mesmos padrões já apresentados antes. Esta auto-semelhança é que permite utilizar a Teoria do Caos e da Percolação a diferentes sociedades e momentos da Pandemia. De alguma forma o comportamento se repete, com características aparentemente diversas, mas mantendo um padrão repetitivo. 

As fases da Pandemia podem ser classificadas em transmissão localizada, aceleração descontrolada, desaceleração e controle. 

A Teoria do Caos e da Complexidade permite entender melhor estas etapas da Pandemia. A transmissão localizada é o processo que leva ao estado de aceleração descontrolada, que é sinônimo de caos. Por outro lado, é o processo de desaceleração que reorganiza o sistema permitindo um novo estado de controle da doença. O caos se estabelece por meio do aumento do número de interações entre os elementos de um sistema. É necessário estabelecer processos de organização para que o sistema volte a ter uma nova ordem, que possivelmente, em função da sua própria dinâmica, irá novamente caotizar. É um jogo constante entre interação e organização. 

A Teoria da Percolação explica o crescimento na fase de migração da transmissão localizada para a de crescimento descontrolado, quando ocorre a mudança de fase de ordem anterior para o novo caos que se instala. Por sua vez, atingido o ponto máximo de interações possíveis, esta tendem a se reduzir, pelo esgotamento de casos, permitindo que o processo de desaceleração se instale e a nova ordem se estabeleça, caracterizando o controle da doença. É esta teoria da Percolação que permite estabelecer o modelo explicativo para o que se denominou de "imunidade de rebanho". Este conceito, oriundo da Medicina Veterinária. É a Teoria da Percolação que permite estabelecer os valores a serem atingidos nas estratégias de bloqueio vacinal.

A Teoria dos Fratais é que dá a segurança de que estas fases se repetem, talvez com peculiaridades próprias, mas com uma sequência conhecida. Dependendo das intervenções que são realizadas, a velocidade e o impacto destas fases podem variar.    

As medidas de distanciamento e de isolamento visam exatamente isto, retardar o momento em que este valor seja atingido. É uma maneira de retardar um pouco processo que leva ao caos, que se instala por meio da interação entre pessoas. Ou seja, na medida em que se restringe a interação se retarda o estado de caos. Ao dar mais tempo para o sistema buscar se estruturar para atender às novas demandas, as repercussões são menores. Quando a aceleração descontrolada ocorrer o sistema estará pronto para dar uma resposta mais efetiva. Ao dar esta resposta, o processo de desaceleração pode se instalar e gerar o novo estado de controle da doença. As pessoas que necessitam ter contato com outras pessoas por razões de trabalho ou necessidade comprovada devem proteger os outros ao utilizarem, no mínimo, máscaras faciais. Ao protegerem o outro, estarão se protegendo.

Muito do que ocorreu em países europeus foi muito mais em função da perda de controle do sistema em si qua da Pandemia. Inúmeras mortes evitáveis ocorreram pela saturação do sistema, pela falta de recursos que foram demandados simultaneamente, por decisões de alocação equivocadas de atender ou não pacientes.

As curvas de evolução da COVID-19 que estão disponíveis no site da Universidade Johns Hopkins permitem avaliar o impacto e a eficácia destas medidas em diferentes países.

Reduzir a interação entre pessoas, reduzir a possibilidade de contaminação nas pessoas que necessitam ter interações, organizar as ações e buscar atingir o ponto de mudança de fase da pandemia com um pouco mais de tempo são as medidas que devemos buscar. 

Para ler mais

Prigogine I, Stengers I. Order out of chaos: man’s new dialogue with nature. Toronto: Bantam; 1984.

Morin E. O método. Porto Alegre: Sulina; 1998.

Bunde A, Kantehardt JW. Introduction to Percolation Theory (Part A). Halle. 

Torres RI. En busca de la cuarta dimensión. National Geographic. 2016;1–160. 

quinta-feira, 26 de março de 2020

COVID-19 e Pesquisa

José Roberto Goldim

A pandemia do coronavírus começou no final de dezembro de 2019. Somente após algumas semanas foi possível avaliar o impacto que este novo vírus poderia ter para a população mundial. Com o aumento impressionante no número de casos, assim como da ampliação da área abrangência geográfica e da mortalidade, inúmeros grupos de pesquisas, vinculados a universidades, órgãos governamentais e empresas iniciaram a pesquisas sobre este vírus e sobre a doença por ele causada: COVID-19.,

No Clinical Trials, maior registro de ensaios clínicos utilizado por pesquisadores de todo o mundo já constam mais de 200 projetos de pesquisa cadastrados.  A maioria dos projetos tem origem na China, Europa e Estados Unidos. A maioria dos projetos são vinculados a universidades e hospitais, enquanto que as empresas representam menos de 20% das propostas. Inúmeros projetos que estão sendo realizados na área de desenvolvimento de vacinas não estão registrados no Clinical Trials. Os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que cerca de 35 projetos têm este objetivo, porém o número de pesquisas cadastradas no Clinical Trials é significativamente menor. 


A grande pressão de pesquisa para a COVID-19 tem sido na área das vacinas. O governo norte-americano fez uma reunião com fabricantes de vacinas dos Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha. O objetivo da reunião foi acelerar a produção de vacinas e a sua tramitação. O desejo é de que exista uma nova vacina em uma questão de meses.   

A pesquisa de novos medicamentos ou de novas indicações para medicamentos já existentes para uso na COVID-19 também tem sido uma demanda importante.

A questão metodológica e ética que se apresenta é de que qualquer pesquisa de medicamentos ou vacinas deve seguir etapas que já são estabelecidas para garantir a segurança, a tolerabilidade e a eficácia de um produto.  A fase pré-clínica deve dar segurança mínima para a sua primeira utilização em seres humanos. Na fase clínica são necessários três fases de estudos. A fase 1 envolve um pequeno número de pessoas com a finalidade de verificar principalmente a segurança. Na fase 2 amplia o número de pacientes participantes e tem por finalidade a segurança e a tolerabilidade do produto em teste. Finalmente, a fase 3 agrega um número ainda maior de pacientes e visa verificar a eficácia, além de seguir avaliando a segurança e tolerabilidade.

Em média, uma nova droga ou uma nova vacina tem um tempo de duração de 11 anos entre o início da pesquisa pré-clínica e o final dos estudos de fase 3. 

A pressão política e social em ter resultados em um período muito curto de tempo com o objetivo de transpor estes novos conhecimentos gerados pela pesquisa à assistência aos pacientes também têm impacto na avaliação por Comitês de Ética em Pesquisa e em Agências Regulatórias. Isto pode acarretar alguns problemas éticos e regulatórios  importantes. A eliminação de etapas envolvendo pesquisas em modelos animais e em seres humanos pode acrescentar riscos desnecessários aos participantes da pesquisa e aos usuários destes produtos.

Um projeto de pesquisa em seres humanos somente deve ser iniciado após a sua avaliação e aprovação por um Comitê de Ética em Pesquisa.  Os Comitês podem fazer uma avaliação mais rápida em situações de emergência como esta. A dificuldade é ter acesso a informações que permitam garantir a segurança dos participantes da pesquisa. Vale lembrar que na pesquisa em seres humanos pode e deve ser feita uma avaliação da proporção do risco associado à mesma com o benefício potencial. Porém, nunca o benefício coletivo pode suplantar a segurança individual de cada participante.

Esta avaliação depende de informações que foram geradas por outros projetos anteriormente já realizados. A sequência de estudos pré-clínicos e clínicos é que permitem gerar os  dados sobre a segurança, tolerabilidade e eficácia de novos produtos para a área da saúde. 


A avaliação mais rápida de projetos de pesquisa recebeu a denominação de fast-track. Esta modalidade de avaliação surgiu em função das demandas de grupos organizados de pacientes portadores de HIV no início dos anos 1990.

 Processo usual da Pesquisa em Seres Humanos
 

  Processo fast-track da Pesquisa em Seres Humanos


Com o encurtamento dos prazos para realização de pesquisas podem ocorrer projetos que sejam submetidos à avaliação dos Comitês de Ética em Pesquisa sem um conjunto de informações suficientes para assegurar a garantia da segurança dos participantes. A pressão política e social para a produção de uma vacina poderá ter predominância sobre a segurança individual dos participantes destas pesquisas. As etapas e as fases das pesquisas poderão ir sendo realizadas em paralelo e não em sequência, como seria o preconizado. 

Outra questão que agrega vulnerabilidade aos participantes é a oferta de pagamento pela participação em projetos de pesquisa sobre as novas vacinas. 


Um destes projetos é realizado pela Kaiser Permanente, uma organização privada norte-americana que administra planos de saúde e hospitais. Este projeto, de fase 1, oferece US$1.100,00 pela participação  em todas as 11 etapas da pesquisa para testar uma vacina baseada em mRNA do coronavírus. O estudo deverá recrutar 45 participantes saudáveis e tem duração estimada de 12 meses. Serão injetadas doses que variam de 25mcg da vacina até 250mcg. Cada grupo terá 15 participantes, sendo 11 que recebem a vacina e 4 que são pacientes sentinelas, ou seja, são observados da mesma forma que os demais, mas não receberão a vacina. Este estudo tem a coparticipação do NIH.

Uma outra empresa do Reino Unido, Queen Mary BioEnterprises Inovation Center oferece um pagamento de £3.500,00 para potenciais 24 participantes que aceitem receber uma vacina com duas linhagens de vírus (OC43 e 229E). Estas linhagens são menos graves que o coronavírus associado a COVID-19. Este projetos que não está listado no Clinical Trials. 


Ambos projetos estão divulgando esta oferta na internet como uma oportunidade de ganhos financeiros. Obviamente, esta oferta é tanto mais atraente quanto maior for a vulnerabilidade econômica e social do potencial participante. 

A pesquisa em seres humanos, desde o início do século XX, tem gerado sérias discussões sobre a proteção dos participantes de projetos. Neste momento é fundamental garantir a dignidade de todas as pessoas participantes, a decisão autônoma das pessoas, a sua integridade individual e coletiva, e a proteção adicional que os vulneráveis devem receber. Estes quatro Princípios Éticos devem ser observados e garantida a coerência na sua aplicação. 

A solidariedade é a marca do enfrentamento de situações críticas como a que estamos vivendo. A história já nos demonstrou os resultados de propostas que reduzem algumas pessoas a meros instrumentos de manipulação visando um suposto bem maior e comum aos demais. A questão é reconhecer que, ao diferenciar quem são os demais que irão se beneficiar, estamos aceitando uma proposta claramente discriminatória. 

Para ler mais a respeito do assunto 



Goldim JR. A participação em projetos de pesquisa em saúde: remuneração, ressarcimento ou gratuidade [Editorial]. Rev Gauch Enferm. 2013;34(2):8–9. 


Goldim JR. Bioética e Pesquisa: Aspectos Históricos e Fundamentos. Youtube, 2020.

Goldim JR. Referenciais Teóricos da Bioética Complexa: Princípios. Youtube; 2020.




Bioética e Pesquisa: Aspectos Históricos e Fundamentos

domingo, 15 de março de 2020

COVID-19 e Informação

José Roberto Goldim



Em situações de risco, como a que estamos vivendo mundialmente em função do coronavírus, a comunicação é essencial. É dela que resultam as ações. A base da comunicação é a informação. 

A comunicação envolve percepção, memória e atenção. A percepção é subjetiva, a memória é falível e a atenção é escassa. Neste contexto é que a comunicação se torna confusa ou ambígua.

Confusão ocorre quando muitas informações aparentemente diferentes representam a mesma coisa. Diferentes pessoas utilizam diferentes palavras para se referirem ao mesmo conceito. A confusão faz com que as pessoas tenham diferentes olhares, que são meramente aparentes, para um mesmo problema ou conceito. Ao falar em COVID-19, SARS e  MERS todos se referem ao coronavírus, mas as doenças diferentes. Falar em coronavírus apenas é não diferenciar os tipos de vírus que causam estas doenças. A COVID-19 é causada por um coronavírus do tipo SARS-CoV-2. A SARS é causada pelo vírus SARS-CoV e a MERS pelo vírus MERS-CoV. 

Por outro lado, a ambiguidade é decorrente da quantidade, do tipo e da unanimidade da informação. É a ambiguidade que gera a maximização ou a minimização de um risco. A mesma informação, sendo ambígua, permite que diferentes cenários possam ser previstos, muitas vezes de forma equivocada.

A pandemia de coronavírus é um evento muito recente. Os primeiros relatos surgiram no final de dezembro de 2019. Muitas pessoas confundiram a nova doença com outras já existentes e existe muita ambiguidade na percepção adequada da própria situação. 

Vários sintomas e sinais associados ao COVID-19 são semelhantes aos de outras doenças, isto acarreta uma redução ou agravamento da percepção da gravidade. 

Os dados divulgados não são os mais confiáveis possíveis. Muitos países demoraram em apresentar seus dados epidemiológicos, ou fizeram de forma parcial. Infelizmente, alguns países sequer divulgaram a sua situação epidemiológica até o presente momento. 

A própria definição de quem era pessoa doente foi sendo alterada ao longo do mes de janeiro de 2020. A liberação de dados acumulados em um único dia pode dar a falsa sensação de um agravamento ou de desconfiança se outros dados não estão sendo adequadamente compartilhados. Foi o que ocorreu no dia 13 de fevereiro, quando mais de 15.000 novos casos foram relatados. O maior número diário de casos tinha sido de 4.000 em 4 de fevereiro. Isto voltou a ocorrer em 13 de março, sem que ainda se tenha uma adequada explicação.

Os dados atuais permitem verificar que 142 países ou regiões do mundo já tem casos relatados. A grande variabilidade de ocorrências, desde mais de 80.000 casos na China, mais de 20.000 na Itália e mais de 10.000 no Irã se contrasta com muitos países próximos que têm menos de 1.000 casos relatados. A questão é que os dados são divulgados de forma bruta, ou seja, pelo número de casos confirmados. O ideal seria, para fins de comparação, que estes dados fossem interpretados como proporções populacionais, ou seja, o quanto estes doentes representam relativamente às suas populações locais e nacionais.

Outro ponto importante é a falta de unanimidade entre as medidas propostas. Alguns países tomaram medidas drásticas de reduzir o contato entre as pessoas e outros foram mais tolerantes. A diferença de propostas de manter as pessoas em casa, permitindo apenas saídas justificadas, ou simplesmente restringir o acesso de outras pessoas a uma determinada região gera uma ambiguidade de qual a melhor decisão. Fechar o país a entrada de estrangeiros ou manter os moradores locais com redução de contatos não são a mesma coisa desde o ponto de ista de controle epidemiológico. 

A maior ameaça à comunicação é o engano deliberado, é a mentira para ocultar uma realidade. Minimizar intencionalmente o impacto da doença, quando os dados já demonstram a sua gravidade global, é extremamente danoso. Muitas pessoas irão acreditar nessa informação equivocada, quanto mais influente for a pessoa que a disseminou.  Neste mesmo nível, se enquadram os anúncios de medidas, qua ainda não estão disponíveis, como se já estivessem ou estarão em um curto espaço de tempo. Um exemplo disto é divulgar que diagnósticos seriam realizados, em um curto espaço de tempo, por sites de internet que indicariam para as pessoas os locais onde poderiam fazer testes diagnósticos em um estilo drive through. Esta proposta sequer foi adequadamente planejada. Outra é divulgar que em um curto espaço de tempo teremos uma vacina para o coronavírus. Os resultados das pesquisas, muitas delas ainda sequer iniciadas, ainda demorarão para serem transpostos à assistência à saúde das populações. Pior que isto, é um profissional de saúde iludir pessoas e instituições com falsos medicamentos que supostamente impediriam ou curariam as pessoas infectadas pelo coronavírus. Utilizar produtos já existentes, fora de suas indicações autorizadas, para este fim ilusório é inaceitável.

Outro fator importante é a ancoragem. Isto ocorre quando se compara o dado atual com outro com a intenção de fazer uma associação. Na atual pandemia isto está ocorrendo com a letalidade. As pessoas estão minimizando o risco de morte associado fazendo comparações com outras doenças ou ocorrências fatais. Comparar a letalidade do COVID-19 com a verificada no Ébola é gerar uma aparente tranquilidade, pois a mortalidade da primeira é de 3,6% enquanto que da segunda é de 25% a 90%. Ocorre que são situações totalmente distintas. O COVID-19 é uma doença global, que atinge grandes populações enquanto que o Ébola é restrito a grupos populacionais regionais, felizmente. 

Nas doenças globais a dificuldade é estabelecer tanto o numerador quanto o denominador.  Nas taxas de letalidade o numerador é o número de pessoas que morreram com a doença enquanto que o denominador é estabelecido pelo número das pessoas que tiveram a doença. A dificuldade está em saber quantas pessoas tiveram a sua morte decorrente da presença do coronavírus, ou simplesmente associada à sua presença. Uma coisa é estabelecer associações, outra é causalidade. Por outro lado, o denominador também é de difícil caracterização, pois muitas pessoas, que possam ter sido infectadas, não valorizaram os sinais e sintomas, ou tiveram uma outra situação que pode ter sido confundida com a COVID-19. Este é um problema de muito difícil solução.

Finalmente, a memória é falível ao reconstruir cenários passados. Comparar, ainda que de forma imprecisa e frouxa, a COVID-19 com o episódio mais recente do H1N1 é muito mais adequado que com outras situações como SARS, MERS, Ébola e Gripe Espanhola. As primeiras geram lembranças inadequadas pela falta de familiaridade com estas situações, especialmente pela questão geográfica associada, e a última pelo distanciamento no tempo, pela lembrança contaminada pelo próprio tempo. 

A indeterminação está e estará sempre presente. As previsões são feitas com base em eventos passados. Quando um fenômeno é totalmente novo ou muda o seu modo de mudar, a indeterminação está presente.

É fundamental ter fontes confiáveis de dados, ter interpretações que permitam orientar adequadamente as ações e tomar as decisões no momento adequado. Em uma pandemia, mais do que curar, o importante é prevenir, é se antecipar nas medidas que visem minimizar o contágio entre pessoas.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

COVID-19, Isolamento, Quarentena e Confinamento

José Roberto Goldim

O crescimento do número de casos e da área de ocorrência da COVID-19, doença causada pelo novo Coronavirus, tem gerado algumas questões bioética importantes em termos de decisões epidemiológicas. 

Uma das estratégias para conter o avanço de uma doença infectocontagiosa é restringir justamente o contato interpessoal. Estas restrições podem ser individuais ou coletivas, em diferentes níveis de complexidade. Estas restrições podem variar desde o isolamento de uma pessoa, a quarentena a um grupo de pessoas até o confinamento populacional. 

No nível individual, um paciente com uma doença infectocontagiosa pode ser colocado em isolamento. Esta medida tem por objetivo separar esta pessoa já doente das demais ainda não infectadas. É uma medida que mantém esta pessoa em uma restrição de contatos. Os profissionais de saúde, nestas ocasiões, seguem protocolos de segurança, que permitem minimizar a sua possibilidade de contaminação. São utilizados equipamentos de proteção individual, áreas e salas especiais, vestimentas adequadas à este tipo de atendimento. O isolamento é uma medida compulsória que visa reduzir os riscos individuais e coletivos enquanto houver possibilidade de contaminação usual. Ao isolar o paciente, esta medida protege a sociedade de um potencial foco de contaminação; protege os demais pacientes internados, que já estão fragilizados, de um risco adicional; protege os profissionais de saúde de serem contaminados ao exercerem suas atividades de cuidado e protege o próprio paciente, ao permitir a continuidade ao seu tratamento. 

Vale lembrar que com aumento do número de pacientes contaminados, é possível ampliar de isolamentos individuais para constituir unidades de internação dedicadas a este tipo de atendimento.  A construção de hospitais específicos para isolamento de pacientes, como o que ocorreu na China, foi uma estratégia de ampliar o cuidado devido ao número crescente de casos de pessoas contaminadas. A estratégia tradicional de isolamento individual não seria capaz de permitir o atendimento de todos os pacientes que necessitam de cuidados. Ao estabelecer um hospital específico e dedicado a este tipo de situação, também se impede que outros pacientes entrem em contato com a doença.   

O isolamento é uma medida de restrição de liberdade individual visando a proteção da sociedade. Algumas pessoas caracterizam o isolamento como sendo discriminatório, mas a rigor é uma estratégia de diferenciação de cuidado. A vulnerabilidade do paciente e da própria sociedade justifica esta medida na perspectiva da preservação da integridade pessoal e coletiva.  A perspectiva discriminatória tem origem nas medidas que eram utilizadas em épocas passadas, de simplesmente afastar as pessoas doentes do convívio da sociedade deixando-as entregues à sua própria sorte.

É importante diferenciar este tipo de isolamento de outro, denominado de Isolamento Protetor ou Reverso. Neste caso, o paciente é isolado como forma de evitar que ele se exponha a situações de contaminação. É uma estratégia de cuidado à saúde utilizada nos pacientes que estão com imunodeficiência ou imunossupressão, como no caso de pacientes se recuperando de Terapia com Células-Tronco Hematopoiética, comumente conhecida como Transplante de Medula Óssea. Neste caso é uma medida que visa o bem do próprio paciente ao protegê-lo de situações de risco à sua saúde.

Outra estratégia é a Quarentena. É uma maneira de lidar com situações de risco de contaminação que vem sendo utilizada desde a Idade Média. A quarentena é utilizada para grupos de pessoas em situações de risco. A restrição ao acesso às pessoas com presumível exposição à doença contagiosa por um período estabelecido de tempo é a estratégia básica. Nem sempre são 40 dias, como o nome indica, mas sim o adequado a cada situação de possível contaminação. Podem ser utilizados períodos de tempo menores ou maiores. No caso da COVID-19 tem sido utilizado um período de 14 dias. Vale salientar que a quarentena lida com pessoas que ainda não estão doentes, ou seja não estão contaminadas ou ainda não manifestaram os sintomas da doença. Novamente, é uma medida que visa proteger a sociedade, mas neste caso sem o benefício individual associado. Existe a discussão ética sobre a adequação desta medida, em nível individual, ao restringir a liberdade de uma pessoa na presunção de um risco e não de uma contaminação comprovada.  Algumas vezes é utilizado o argumento de que as pessoas permaneçam em quarentena de forma voluntária, como uma recomendação e não como uma obrigação. Por outro lado, podem ser estabelecidas medidas coercitivas que efetivamente impeçam os indivíduos em quarentena de ter qualquer outro contato externo ao grupo que está submetido a esta medida. Dois exemplos atuais. O navio de cruzeiro Diamond Princess, no Japão, foi mantido, como um todo, em uma quarentena compulsória, enquanto que os seus passageiros, individualmente, receberam a recomendação de manterem um isolamento protetor, restringindo a sua circulação às próprias cabines. Ao serem liberados da quarentena no navio alguns passageiros foram transferidos para outra quarentena, em seus países de destino,  em função da possibilidade de contaminação decorrente da própria restrição imposta anteriormente. Os passageiros com sintomas passaram a ser mantidos em isolamento.  No caso mais recente de um hotel nas ilhas Canárias, H10 Costa Adeje Palace, os hóspedes receberam a recomendação de não saírem de suas habitações. Alguns puderam circular em áreas de uso comum, como salões de refeições. Apesar da quarentena ser uma recomendação, desde o discurso das autoridades, as saídas do hotel estavam com carros da polícia, o que foi interpretado pelos hóspedes como uma forma de coerção. A quarentena é uma medida de restrição de liberdade visando dar o tempo necessário para que os sintomas se manifestem nas pessoas que estavam sob risco de contaminação. Passado o prazo estabelecido, as pessoas que não manifestaram sintomas ou que tiveram exames negativos são liberadas. Novamente é uma primazia dos interesses da sociedade sobre as pessoas individualmente. 

A forma mais radical e discutível de contenção de uma doença contagiosa é o confinamento social amplo. Esta forma de restringir comunidades com presunção de risco é de difícil implantação. Ela visa restringir a circulação de pessoas e a redução das interações sociais entre os atingidos pela medida. O confinamento social amplo tem como finalidade a contenção da doença nos limites de uma fronteira epidemiológica. O estabelecimento destas medidas em uma extensa área territorial da China, envolvendo milhões de pessoas, e de pelo menos 11 pequenas cidades da Itália tem gerado questionamentos sobre a liberdade das pessoas em termos de deslocamentos.

Estas medidas epidemiológicas, isolamento, quarentena e confinamento social, variam em termos das pessoas atingidas, desde doentes diagnosticados, pessoas com possível exposição ao agente contagioso até pessoas com risco presumível comunitário. 

Os aspectos éticos são inúmeros e devem ser considerados, sob pena de ser um mero exercício de biopoder e biopolítica, sem a devida justificativa bioética associada.

Para ler mais:

Wilder-Smith A, Freedman DO. Isolation, quarantine, social distancing and community containment: pivotal role for old-style public health measures in the novel coronavirus (2019-nCoV) outbreak. J Travel Med. 2020 Feb 13; 

Goldim R. Bioética e pandemia de influenza. Rev HCPA. 2009;29(2):161–6.