José Roberto Goldim
É sempre importante retomar o tema da Alteridade. Duas situações merecem ser melhor discutidas: a importância da possibilidade de reconhecer a face do outro e a necessidade de proteção recíproca gerada pelas relações interpessoais.
Os profissionais de saúde ao terem que utilizar os equipamentos de proteção individual necessários à sua proteção, dos demais profissionais e dos pacientes, vestem roupas que não permitem diferenciar características pessoais e profissionais, além de ter o seu rosto, a sua face, pelo menos em parte, encoberta. Tudo isto leva, pelo menos parcialmente, a uma despersonalização.
È especialmente a face que me dá a possibilidade de reconhecer e ser reconhecido. Ocultar o rosto com máscaras e protetores faciais, é impedir que isto ocorra. É apenas mais alguém que está alí presente, mas que não é passível de ser reconhecido. Em muitas fotos e relatos aparecem profissionais com o seu nome e profissão identificados no próprio avental de proteção, em letras grandes escritas pelos próprios profissionais.
A idéia de propor a utilização de crachás de grande tamanho possibilita reverter, pelo menos parcialmente, esta situação, desde que mantidas as condições de garantir a segurança dos pacientes e dos profissionais. Ter a possibilidade de escolher pessoalmente uma foto para o crachá é um início de uma relação: é escolher como quer ser reconhecido. Ao fazer documentos, em muitas situações é imposta a utilização de uma foto que a pessoa não se sente representada, que a própria pessoa não se sente adequadamente representada, Poder utilizar fotos pessoais anteriores é resgatar boas memórias, é introduzir no ambiente conturbado da assistência, a possibilidade de compartilhar momentos felizes já vividos. Ser reconhecido pelo nome e pela profissão é permitir que cada um seja identificado na sua singularidade. Esta possibilidade de ter o seu rosto visto novamente, de seu nome ser divulgado e a sua profissão identificada é que estabelece a possibilidade de ser reconhecido e de reconhecer. É romper com a relação com qualquer um, para se tornar um conjunto de relações com pessoas que identifico. É a presença da biografia de cada um em meio a um cenário que dificulta estas relações.
Alteridade é também se responsabilizar pelo outro e por si mesmo. É desta interação responsável entre o eu e o tu, que surge a possibilidade de ultrapassar o plano indivídual, para surgir o nós, o coletivo inclusivo e compartilhado. É baseado nesta relação de corresponsabilidade que surge a justificativa de uma ação tão simples quanto utilizar máscaras faciais em todos os locais públicos. As máscaras usuais não protegem o indivíduo adequadamente, mas impedem, de forma bem efetiva a contaminação dos outros. Desta forma, ao proteger o outro, eu estou me protegendo. Esta rede de proteção recíproca, compartilhada, é que permitirá o convívio social por um bom tempo. Quanto mais pessoas utilizarem máscaras, mais pessoas estarão sendo protegidas: é o oposto da contaminação. Ser egoísta não vai ser efetivo, ser apenas altruísta, também não. Ser corresponsável é a melhor resposta: uns protegendo os outros e assim se protegendo a si mesmo.
A não neutralidade perante o outro, expressa pela identificação, pelo reconhecimento, pela proteção recíproca é a resposta mais adequada, é a efetivação da Alteridade na prática diária de cada um de nós. A vulnerabilidade que atingiu a todos, tornou ainda mais atual as palavras do poeta John Donne, em 1624, de que nenhum ser humano é uma ilha, todos somos parte de um continente, reconhecendo que cada morte de alguém, me diminui como pessoa, por isso, não adianta perguntar por quem os sinos estão tocando, pois eles tocam por cada um de nós.