quarta-feira, 16 de junho de 2021

COVID-19, vacinação e relaxamento das medidas de proteção individual e coletiva

 José Roberto Goldim


Com o aumento das taxas de cobertura vacinal na população de alguns países, os governos estão retirando medidas de proteção individual e coletivas que haviam sido impostas às populações. Esta posição deve ser avaliada com a prudência necessária a todas as situações de risco.

Esta reflexão deve ser feita desde o ponto de vista pessoal e coletivo.

Desde o ponto de vista individual, não existe  vacina capaz de proteger integralmente às pessoas. Ou seja, não tem como garantir que a pessoa, uma vez vacinada, está isenta de riscos de vir a se contaminar novamente e manifestar a doença. O que se sabe, até o presente momento, é que havendo uma nova manifestação da doença, existe a possibilidade de que ela seja menos grave. 

Desde o ponto de vista coletivo, a vacina também não impede o contágio de outras pessoas. As pessoas vacinadas fazem um bloqueio de transmissão, mas não um impedimento total. Quanto mais pessoas vacinadas, menor a possibilidade de contaminação entre os membros de uma população.  O importante é saber a partir de qual percentual da população vacinada o risco coletivo de contaminação efetivamente diminui. 

Desde o ponto de vista teórico, o modelo matemático da percolação, estabelece este valor em 50%. Ou seja, a partir deste valor de conexões estabelecidas, a frequência de novas conexões tende a diminuir. No caso da COVID-19 este valor talvez seja maior, em função do aumento da transmissibilidade das novas variantes do vírus. A estimativa mais frequentemente utilizada está ao redor de 70% da população ser vacinada para que haja a possibilidade de uma efetiva redução de novos casos.

A vacinação, desde o ponto de vista individual, reduz a gravidade da doença e, consequentemente, a mortalidade, e, desde o ponto de vista coletivo, o número de pessoas que se contaminam. Estes resultados já estão sendo evidenciados em diferentes estudos.

Desta conjugação de perspectivas individuais e coletivas é que surge a necessidade de manter as medidas mínimas e efetivas de proteção. Isto é necessário, pois em várias partes do mundo a pandemia ainda está com altíssimas taxas de transmissão. Da mesma forma, o número de mortes não é uniforme nos diferentes países e regiões dos continentes e os programas de vacinação apresentam desigualdades, inclusive dentro de países com disponibilidades de vacinas. 

O retorno progressivo das viagens internacionais, mesmo com testagem prévia negativa e com a exigência de vacinação, reduz, mas não elimina o risco de novas contaminações. Vale lembrar que os testes, também não tem uma sensibilidade e uma especificidade que garantam que aquela pessoa específica não seja transmissora. Formas leves da doença não são auto-evidentes, mas ainda assim tem potencial de transmissão.

A vacinação, a testagem e as medidas de prevenção, como o uso de máscaras, são os melhores meios de enfrentamento à pandemia.

Para ler mais:

Atualização em 25/07/2021
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/07/22/medo-de-escassez-de-comida-cresce-no-reino-unido-por-isolamento-contra-covid


segunda-feira, 26 de abril de 2021

COVID-19: Passaporte Imunológico ou Certificado de Vacinação

 José Roberto Goldim


A atual discussão a respeito da exigência de alguns países sobre a vacinação de COVID-19 não é uma novidade. Até o presente momento o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) da Organização Mundial da Saúde ainda não se manifestou sobre a inclusão da COVID-19 no Certificado Internacional de Vacinação ou Profilaxia (CIVP).

O Certificado Internacional de Vacinação ou Profilaxia (CIVP) é um documento que já existe há muito tempo e serve para comprovar que uma pessoa está imunizada para determinadas doenças, especialmente contra a Febre Amarela, mas também contra a Meningite e Poliomielite. O Certificado para a Febre Amarela é exigido para mais de 100 países, enquanto que para a Meningite e para a Poliomielite esta exigência cai para quatro países. No passado este documento foi fundamental para a erradicação da Varíola. O Certificado tem duração diferenciada de acordo com o tipo de doença. 

De acordo com o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), os países podem estabelecer restrições aos viajantes que ingressam nos seus territórios, com base em questões sanitárias. 

No caso de alguma pessoa ter uma situação de saúde que a impeça de ser vacinada, a Organização Mundial da Saúde já prevê a possibilidade de que o seu médico assistente possa emitir um atestado de isenção de vacinação. O importante é que o documento seja redigido em inglês ou francês e contenha todas as informações que permitam avaliara adequadamente esta situação especial de saúde. Os países, em geral, aceitam este atestado de isenção de vacinação como substituto do Certificado de Vacinação. 

O Certificado visa proteger as populações contra a entrada de pessoas com uma doença imunizável em seu território e a possibilidade de que o viajante possa ser infectado em sua estada. É uma política sanitária adequada de proteção individual e coletiva.

A proposta de emitir um Passaporte Imunológico para COVID como forma de relaxar medidas de distanciamento social, uso de máscaras ou outras formas de proteção, com base em resultados de exames ou de vacinação prévia é altamente discutível. A própria denominação Passaporte Imunológico não é recomendável. A denominação de Certificado Internacional de Vacinação é que deveria ser utilizada. 

As vacinas utilizadas para a emissão dos Certificados Internacionais de Vacinação atuais são conhecidas e tem sua efetividade e duração comprovadas. As vacinas para a COVID-19 ainda não tem estudos suficientes para gerar os dados sobre a duração do  seu efeito. Vale lembrar que os países não aceitam toda e qualquer vacina, mas, em geral, as que foram utilizadas para imunizar a sua população local. O Certificado para as outras doenças - Febre Amarela, Poliomielite e Meningite - tem prazo de validade estabelecido.

A exigência de um Certificado de Vacinação não é discriminatória na medida em que a vacina esteja disponível para toda a população, caso contrário são criados grupos de pessoas com e sem este privilégio de acesso. O importante é disponibilizar, é oferecer a possibilidade de que todos tenham a possibilidade de serem vacinados. Ou seja, é ter uma política sanitária justa e inclusiva.

Já ocorreram propostas de empresas privadas oferecerem a emissão de Passaportes Imunológicos virtuais para garantir a entrada em diferentes tipos de eventos ou locais de convívio social. Esta proposta sim pode ser discriminatória, pois poderá estabelecer desigualdades em função de alguma forma de contrapartida para quem for emitir este "passaporte", até mesmo pela simples necessidade de ter um telefone celular. Esta é uma atribuição da autoridade sanitária, justamente para permitir a universalização de fornecimento deste documento.

O Ministério da Saúde está emitindo uma Carteira de Vacinação Digital, inclusive com um QRCode, para facilitar a sua leitura. Este documento está sendo emitido com validade de um ano, desde a data de sua emissão, independente da data na qual a pessoa foi vacinada. Ele tem validade apenas no país, pois não está escrito em inglês ou francês, como é preconizado pelo Regulamento Sanitário Internacional. É importante salientar que no próprio documento é salientado que o mesmo não é de uso obrigatório e que não pode ser utilizado "para fins discriminatórios". Ou seja, a Carteira de Vacinação Digital não é um Certificado Internacional de Vacinação nem um Passaporte Imunológico.

Na discussão social, principalmente para contestar esta prática, sido utilizado o argumento  da liberdade individual. O contraponto da liberdade individual é a segurança decorrente de viver em comunidade. Existe um falso dilema entre independência individual e dependência comunitária. A superação desta visão tida como mutuamente excludente é buscar o equilíbrio entre estas duas características. Quando se aceita que a discussão não é um jogo de "ganha-perde", ou seja, uma opção pela independência ou pela dependência, surge a possibilidade de ter o entendimento mais abrangente e adequado. A percepção de que o importante é discutir a interdependência é fruto desta superação. Esta persepectiva dialógica de uma abordagem conjunta da dependência e da independência é que permite vislumbrar novas alternativas para este problema.

Texto atualizado em 25/07/2021





sábado, 10 de abril de 2021

COVID-19 e Comunicação de Informações em Saúde

 José Roberto Goldim


As instituições de saúde, especialmente os hospitais, tiveram que adaptar rapidamente os seus sistemas e processos de informação e comunicação às restrições impostas pela alta taxa de contaminação da COVID-19. Muitos sistemas de informação utilizados apenas nas redes internas e fechadas dos hospitais tiveram que ser disponibilizados aos profissionais de saúde que poderiam estar realizados as suas atividades de forma remota. Os sistemas de prontuários passaram a poder ser acessados de forma não mais apenas local.

O desafio foi manter as medidas de segurança vigentes com este novo grau de compartilhamento de informações.

Todas as informações pessoais dos pacientes passaram a trafegar por redes externas, demandando estratégias de segurança nunca antes pensadas, mas agora necessárias.

As respostas foram as mais diversas. Muitas delas utilizando recursos disponíveis na internet de forma gratuita, outras que demandaram a geração de novos softwares desenvolvidos nas próprias instituições. As soluções obtidas, pelo menos com os conhecimentos disponíveis até o presente momento, permitiram dar uma boa segurança a estes dados.

O maior desafio foi manter a qualidade das informações e a segurança associadas a elas, assim como as normas legais sobre tratamento e distribuição de informações de saúde, mesmo durante uma emergência sanitária mundial.

Outra questão fundamental foi manter os membros das famílias informados sobre os pacientes. Em muitas situações os familiares não tinham a possibilidade de contato direto com o paciente, nem com o profissional de saúde. Foram utilizadas inúmeras formas de comunicação, a maioria utilizando aplicativos convencionais disponíveis para a realização de vídeo chamadas. Foi um grande desafio para os profissionais de saúde se adaptarem a dar estas informações de uma maneira diferente. Uma situação, antes da pandemia tida como inaceitável, passou a ser incorporada: as comunicações de óbito aos familiares.

Algumas questões  bioéticas tiveram que ser novamente discutidas para manter a adequação destas novas modalidades. As principais questões foram as associadas à preservação do direito a privacidade dos pacientes e suas famílias e a maneira adequada de realizar esta comunicação. 

Os pacientes, mesmo em situações de emergência e risco de vida, mantém o direito de terem as suas informações, imagens e o próprio corpo preservado de exposições desnecessárias. 

Os profissionais de saúde tem o dever de confidencialidade associado a  todas as diferentes formas de comunicação com outras pessoas, sejam elas parentes, amigos ou terceiros envolvidos, como, por exemplo, empregadores.

O Artigo 73 do Código de Ética Médica, Resolução CFM 2217/2018, veda ao médico fazer qualquer revelação de conhecimento adquirido no exercício da sua profissão, ou seja as informações privilegiadas que teve acesso. Este mesmo artigo permite que as informações sejam compartilhadas em três situações: 

1) A comunicação é admitida quando o paciente autoriza o médico a fazer esta revelação. É uma garantia de que o paciente dando o seu consentimento, o profissional possa compartilhar as informações que foram autorizadas expressamente pelo paciente. 

2) Outra exceção à confidencialidade é quando existe dever legal associado a esta divulgação de forma restrita, como por exemplo nas doenças de comunicação compulsória. É importante destacar que a autoridade que recebe estas informações também tem um dever de confidencialidade associado. 

3) A última possibilidade é por motivo justo. A comunicação aos familiares de um paciente, que não autorizou, de forma prévia e expressa às equipes de saúde, pode ser feita utilizando esta exceção de confidencialidade por motivo justo. É adequado que os familiares recebam informações sobre o estado de saúde do paciente. ´Porém, esta situação deve ser avaliada com cuidado e balizada pelos limites da relação entre a privacidade e a confidencialidade.

O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) se manifestou por meio do Parecer 131045/20, de 10/03/2021 sobre a realização de videochamadas envolvendo pacientes internados ou sedados. Neste documento, aprovado pelo CREMESP, há o entendimento de que é "absolutamente proibida a exposição... dos pacientes" nestas condições. Esta opinião se fundamentou no Parecer CFM 05/2016  do Conselho Federal de Medicina (CFM), e no Parecer CREMESP 18692/2016, ou seja, ambos documentos publicados anteriormente a situação vigente de excepcionalidade da atual pandemia. É uma posição meramente formalista de aplicação do dever de confidencialidade, ou seja. com a total desconsideração da situação atual e das suas circunstâncias. Descontextualizar esta situação é negar que ocorreram mudanças significativas. Uma circunstância que merece ser destacada é a mudança de hábitos da sociedade. As novas formas de comunicação foram se incorporando ao cotidiano das pessoas. Na vigência das atuais restrições de acesso dos familiares aos ambientes assistenciais, as video chamadas podem ser a única maneira de contato, de uma conviência mínima. Este tipo de videochamada pode ser uma maneira de tranquilizar os familiareas, pode dar conforto para os pacientes e, principalmente, pode ser a única maneira, em muitas situações, de realizar algum tipo de despedida. Este é o fundamento desta nova forma de comunicação, é este o valor a realizar. Menos mal que é apenas um Parecer, ou seja uma opinião, e não uma resolução. Vale lembrar que o CREMESP atinge apenas os médicos que atuam em São Paulo.  Este Parecer não tem efetividade para os médicos de outros estados e muito menos em relação aos demais profissionais de saúde, mesmo no estado de São Paulo. A confidencialidade e a privacidade se mantém, especialmente nestas novas configurações, como dever e como direito associados às comunicações entre profissionais, pacientes e seus familiares.  

Por isso, é fundamental destacar algumas características associadas à comunicação efetiva:

  • Capacitação adequada do profissional;
  • Identificação adequada das pessoas envolvidas no processo;
  • Momento adequado;
  • Relação adequada;
  • Processo adequado.

A capacitação adequada passa pelo equilíbrio entre as competências científicas e humanistas do profissional. O profissional deve ter os conhecimentos dos diagnósticos e do quadro geral de saúde do paciente, assim como dos procedimentos, técnicas e tecnologias que estão sendo utilizadas. Por outro lado, deve ser capaz transmitir estas informações de forma acessível de modo a estabelecer uma relação de confiança com os familiares visando um mínimo de tranquilidade em um momento tão delicado na vida de todos. O profissional deve estar atento não apenas aos aspectos biológicos do paciente, mas também aos aspectos biográficos, isto é, buscando integrar as questões da vida e do viver. Este processo de comunicação não deve ser apenas uma experiência, mas também uma vivência singular para todas as pessoas envolvidas, inclusive o profissional.

O profissional deve estar capacitado para lidar com a incerteza associada às situações de saúde e cuidado do paciente. As situações de incerteza geram ansiedade, são difíceis de lidar por todos. A incerteza deve ser entendida como a impossibilidade da certeza. A noção de risco, muitas vezes, está além da compreensão das pessoas leigas. Além da incerteza, a concordância entre as informações também é fundamental. As informações dadas pelos profissionais são cotejadas com as disponibilizadas por amigos, em redes sociais e por outras pessoas. Nem sempre as informações concordam. Sem concordância e com alto grau de incerteza associado, a interação entre o profissional e os familiares, que é por definição complexa, pode se tornar caótica. 

A identificação das pessoas envolvidas no processo de comunicação é fundamental para preservar a privacidade do paciente. Saber quem é a pessoa de referência para contato e troca de informações é um fator de extrema importância. A melhor alternativa ocorre quando o próprio paciente estabelece quem irá receber as notícias por parte dos profissionais. Porém, isto nem sempre é possível. Os profissionais de Serviço Social podem auxiliar muito nesta etapa. Podem identificar as pessoas mais envolvidas com o paciente antes da sua internação. Não é incomum dar informações às pessoas erradas. Isto deve ser cuidadosamente checado no início do processo de comunicação. As pessoas devem ser identificadas pelo seu nome e não pelo seu vínculo familiar apenas. Em algumas situações os profissionais fazem registros de quadros de saúde no prontuário de um paciente que se referem a outros pacientes que estão sob seus cuidados. Posteriormente, acabam registrando uma nota de correção ou esclarecendo que aquelas informações devem ser desconsideradas, mas o registro permanece. Nas comunicações verbais isto também não é incomum. Algumas vezes, os profissionais podem se confundir e compratilham informações que não se referem ao paciente daqueles familiares. 

Outra situação, que não é rara, é o profissional ter que se comunicar para mais de um núcleo familiar. As estratégias pode ser variadas. Quando há um mínimo de harmonia entre estas pessoas, a comunicação pode ser simultânea, mas algumas vezes não. Isto exigirá que o profissional faça mais de uma comunicação sobre as mesmas informações para diferentes pessoas de diferentes vínculos familiares. O fato de alguém se apresentar como membro da família ou como amigo, não credencia uma pessoa para receber notícias sobre o paciente. O familiar de referência poderá ser a pessoa responsável por divulgar as informações no âmbito destas outras pessoas. 

O momento adequado da comunicação é importante. As informações relevantes devem ser compartilhadas. Muitas vezes pelo temor associado à reação das pessoas, a comunicação de informações é retardada. Algumas vezes o quadro de saúde evolui de foram rápida, surpreendendo a todos que não haviam sido adequadamente informados. Não é um simples repasse imediato de dados sobre o paciente, mas uma ação estratégica onde o tempo e o ritmo da evolução devem ser sempre considerados. O momento adequado também se refere ao tempo disponível para ter esta interação. Pode ser importante balizar aos demais participantes quanto tempo o profissional dispõe para esta atividade.

A forma de comunicar é fundamental. Assumir uma comunicação não-violenta ou empática é extremamente importante. Não julgar é a regra. A comunicação empática é colaborativa, é acolhedora. Ele gera uma sensação de pertencimento e não de competitividade entre as pessoas que estão se comunicando. É a maneira de demonstrar que o nosso interesse central é o paciente e os seus familiares.

A relação adequada é fruto destes cuidados anteriores de se apropriar das informações, de identificar as pessoas com as quais irá se comunicar e de estabelecer o momento adequado. Quando possível, é importante comunicar as decisões clínicas tomadas antes de executá-las. Os familiares poderão compartilhar com a equipe as crenças, valores e desejos do paciente, caso este esteja impossibilitado de se comunicar com a equipe. Isto, quando possível, é importante para evitar que os familiares sejam surpreendidos por ações já realizadas.

Existem inúmeros protocolos de comunicação efetiva, tais como o SPIKES e o ABCDE. Todos os protocolos têm vários pontos em comum. 

1) O importante é haver uma preparação adequada do profissional para realizar a comunicação, ou seja, se apropriar das informações e adequar a terminologia à compreensão por parte do paciente ou dos familiares. 

2) Construir um ambiente e uma relação terapêutica é outro ponto significativo para o sucesso da comunicação. 

3) Estar capacitado para realizar uma comunicação efetiva é igualmente importante. Isto implica em balizar a comunicação no interesse dos participantes e das informações anteriores. Perguntar o que os pacientes ou familiares já sabem sobre o quadro de saúde é extremamente importante. Da mesma forma, questionar o que eles desejam saber serve como um balizador para aliviar as expectativas.

4) Os profissionais devem saber lidar com as reações dos pacientes e familiares ao longo da comunicação. Não devem ser feitos julgamentos associados a estes tipos de comportamentos, mas sim dar apoio e acolhimento.

5) O profissional deve encorajar e validar as emoções dos pacientes e dos familiares associadas às informações comunicadas. Da mesma forma, também pode expressar as suas emoções associadas a esta situação que está sendo vivenciada por todos os participantes. A experiência de comunicação é única, mas as vivências são diferenciadas de pessoa para pessoa.

Ao final da comunicação o profissional deve programar um próximo encontro e enfatizar que a equipe profissional está envidando todos os esforços no sentido de atender adequadamente as necessidades de atendimento do paciente. 

Para saber mais:

Rosemberg M. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora; 2006.

Souza J, Ostermann AC. “Tudo bem”, “tudo em paz” e “uma tremenda sorte”: Avaliações positivas no gerenciamento da incerteza na comunicação entre oncologistas e pacientes com câncer de mama. Rev Estud Da Ling. 2017;25(2):609. 

Rabow MW, McPhee SJ. Beyond breaking bad news: How to help patients who suffer. West J Med. 1999;171(4):260–3. 

Baile WF, Buckman R, Lenzi R, Glober G, Beale E a, Kudelka a P. SPIKES-A six-step protocol for delivering bad news: application to the patient with cancer. Oncologist. 2000 Jan;5(4):302–11. 

Pires AP. Comunicação de Más Notícias. Site Bioética, 1998.

Goldim JR. Fases do Processo de Entendimento de Más Notícias. Página de Bioética, 1998.



Texto originalmente publicado em 22/11/2020 e modificado em 10/04/2021

domingo, 7 de fevereiro de 2021

COVID-19 e a utilização de vacinas fora do Programa Nacional de Imunização

 

José Roberto Goldim


O Brasil tem uma longa e reconhecida atuação na área de imunização. O Programa Nacional de Imunização (PNI) existe, de forma estruturada e atuante, desde 1973. Contudo, as discussões sobre vacinas e saúde pública remontam ao início do século 20, com o enfrentamento da varíola e da febre amarela. O PNI é anterior a estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS).

A estrutura do SUS, estabelecida pela Lei 8080/1990, permite a possibilidade da participação de serviços privados de assistência à saúde (Art. 20). Estes serviços privados também deverão observar os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento (art.22).

Estas duas considerações são importantes para delimitar as articulações privadas, propostas nas duas primeiras semanas de janeiro de 2021, visando a compra, distribuição e aplicação das vacinas para COVID-19. Vale lembrar que, salvo alguma outra proposta não adequadamente divulgada, estas foram as primeiras tentativas de compra privada de vacinas durante a pandemia. 

Estas duas iniciativas, uma da Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas (ABCVAC), e outra de um grupo de empresários, que buscam complementar as ações já em andamento do PNI na área das vacinas COVID-19.

A ABCVAC afirma ter uma possibilidade de compra de cinco milhões de doses da vacina produzida pela empresa Bharat Biotech da Índia. Estas doses seriam disponibilizadas para a venda na rede de clínicas de vacinação associadas a ABCVAC.

A ABCVAC alegou que a sua proposta é adequada e dentro das propostas do SUS, no sentido de que em outras campanhas de vacinação estas mesmas clínicas também vacinavam as pessoas fora do âmbito do SUS.

A vacina da Bharat Biotech ainda não teve os resultados dos estudos fase 3 publicados, o que dificulta a liberação, ainda que em caráter emergencial, para uso assistencial. Uma outra exigência, de ter estudos clínicos realizados no Brasil, foi flexibilizada pela ANVISA em decisão recente envolvendo outra vacina.

Por sua vez, o grupo de empresários afirmou ter tido uma oferta de venda, por parte de um dos investidores da vacina da AstraZeneca, de um lote de 33 milhões de doses, com uma compra mínima de 11 milhões de doses. Os empresários fizeram uma proposta ao governo federal de que doariam metade das doses para serem aplicadas no SUS.

A oferta de uma doação de doses de vacinas, complementarmente àquelas utilizadas fora dos critérios do PNI, pode parecer atraente, mas, na realidade, é prejudicial, pois é uma "doação condicionada", ou seja, deixa de ser uma doação e  passa a ser uma troca.

Os valores da compra de cada dose, segundo esta oferta do investidor, seriam cerca de quatro vezes superiores aos pagos pelo governo federal pela mesma vacina, sem contar com a possibilidade de serem acrescidos impostos a estes valores. Uma outra dificuldade adicional seria a liberação de compra de vacinas e medicamentos por empresas que não negociam habitualmente estes produtos. Haveria a necessidade de um prévio cadastramento específico junto aos órgãos governamentais.

A AstraZeneca e o fundo, citado como sendo o investidor que iria vender a sua cota de vacinas, desmentiram publicamente a possibilidade desta transação. A AstraZeneca informou que na atual situação estaria vendendo vacinas apenas para governos ou organizações multilaterais.  Vale lembrar que, naquele mesmo período, a empresa farmacêutica estava sendo pressionada pela Europa para cumprir os prazos de entrega de compras já contratadas.

Após estas manifestações, não ficou claro quem estaria negociando esta venda aos empresários e muito menos as condições de compra divulgadas. 

Ambas as propostas visavam atender a uma demanda semelhante: vacinar trabalhadores de setores privados visando a sua imunização para garantir a continuidade das atividades econômicas. Na proposta dos empresários havia também proposta de estender esta vacinação também aos familiares.

A primeira manifestação do governo, a estas duas propostas, foi no sentido de que o PNI teria cobertura suficiente para atender a estas demandas. Houve a manifestação do governo federal no sentido de que não seriam autorizadas compras privadas de vacina de que, neste momento, o fornecimento será centralizado pelo Ministério da Saúde. Contudo, em menos de uma semana, houve uma mudança no sentido de que esta proposta, em especial a dos empresários, seria bem-vinda. E o governo federal, inclusive encaminhou uma carta à empresa AstraZeneca manifestando a sua aprovação a esta proposta de compra privada.

Alguns empresários, que haviam sido citados como membros deste grupo, desmentiram que estavam interessados em vacinar apenas seus funcionários. Afirmaram que apenas fariam uma compra privada se todas as doses fossem doadas ao SUS e que não aceitariam a quebra das prioridades estabelecidas no PNI..

A reação da população a esta proposta foi avaliada em uma pesquisa de opinião publicizada, envolvendo 2500 pessoas de todo o Brasil, divulgada em 05 de fevereiro. Apenas 33% das pessoas entrevistadas se manifestaram no sentido de achar justa a vacinação de pessoas para a COVID-19, na atual situação sanitária vigente. Nos resultados, o grupo de pessoas, com renda superior a dez salários mínimos, teve a maior aceitação, com 60% aceitando como justa a possibilidade de vacinação paralela ao SUS.

Inúmeros outros grupos de profissionais também se manifestaram no sentido de conseguirem antecipar a sua vacinação fora dos critérios estabelecidos pelo PNI. Em algumas propostas esta antecipação seria estendida também aos seus familiares. Em algumas destas propostas havia inclusive o custo por pessoa, que seria de R$800,00. Em outros grupos, houve a solicitação de liberação de vacinas do SUS por critérios não estabelecidos no PNI.

A direção do Hospital Sírio Libanês fez uma solicitação ao seu Comitê de Bioética no sentido de se manifestar sobre este tema. No dia 29 de janeiro o Comitê de Bioética do Hospital Sírio Libanês de manifestou por meio de parecer, divulgado pela própria instituição, no sentido da inadequação ética desta proposta. O parecer utiliza uma clara e adequada argumentação ética para justificar que “a compra e distribuição de doses de vacina pela iniciativa privada, gerando a vacinação de indivíduos fora dos grupos prioritários que mais se beneficiam, fere os princípios fundamentais da equidade, da integralidade, da universalidade e da justiça distributiva, ferindo não só os próprios fundamentos do SUS, mas também a própria lógica que gera o benefício de uma campanha de vacinação”.

O Comitê de Bioética Clínica do HCPA aprovou uma nota de apoio ao parecer do Comitê de Bioética do Hospital Sírio Libanês. A Rede de Comitês de Bioética, que é um grupo ainda informal, está solicitando que outras instituições também se manifestem em relação a este mesmo parecer.

Em situações de escassez de recursos, como a vigente em relação a imunização para a COVID-19, os critérios de alocação devem ser discutidos com a sociedade, como um todo, e não apenas por setores específicos. Estes critérios de alocação têm que ser eticamente defensáveis. Os critérios diferenciarão grupos, mas não podem discriminar,  por este mesmo motivo. As características utilizadas devem ser diretamente vinculadas à situação de de emergência ou catástrofe associadas à alocação destes recursos. É fundamental que haja visibilidade e clareza na apresentação dos critérios de alocação.

A abordagem de situações como esta deve envolver a avaliação da adequação aos princípios da dignidade, da liberdade, da integridade e da vulnerabilidade. 

Todas as pessoas devem ter a sua dignidade preservada. É um critério que une a todos, sem distinção.

Na vigência de uma situação de emergência sanitária mundial, tão grave quanto a que estamos enfrentando na pandemia da COVID-19, todos também estamos em uma situação de vulnerabilidade. Todas as pessoas estão necessitando de alguma forma de proteção adicional, seja em qual âmbito de necessidade física, mental ou social.

As escolhas de grupos prioritários devem ser feitas com base na preservação da integridade pessoal e coletiva. A adequada avaliação de riscos associados a cada grupo de pessoas deve ser cotejada com os correspondentes benefícios da medida de imunização. Os fatores de exposição, de continuidade de exposição ao vírus, de maior risco de manifestações graves, de maior taxa de letalidade, são exemplos de critérios que podem orientar esta avaliação envolvendo a integridade. 

A liberdade das pessoas é um bem fundamental, que deve ser considerado. O equilíbrio entre a liberdade pessoal e a segurança da vida em grupo é imprescindível. Utilizar a liberdade individual como justificativa para esta ação complementar ao SUS só se justifica no em situações onde não haja escassez de recursos. 

Na atual situação mundial de pandemia, com grande de escassez de recursos, que irá perdurar por um longo período, permitir uma ação paralela, e não complementar seria quebrar esta questão da equidade. 

O PNI estabeleceu critérios de priorização para o recebimento de vacinas. Esta deve ser a estratégia a ser seguida. O acesso a um sistema complementar deve ser um opção, uma escolha da pessoa, mas nunca uma situação de oportunidade desigual.


Para ler mais:

Bermudez J. Pandemia, solidariedade e vacinas: disputa predatória no mundo. E o Brasil? Conselho Nacional de Saúde, 01/02/2021.

Hospital Sírio Libanês - Comitê de Bioética. Parecer do Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês sobre a ética da compra privada de vacinas contra COVID19 durante situação de pandemia. 2021;(29/01). 

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

COVID-19, incerteza, ambiguidade e ansiedade

 José Roberto Goldim


Na década de 1970, Tversky e Kahneman realizaram pesquisas sobre a questão de fazer julgamentos em cenários de incerteza. Eles propuseram que a ambiguidade surge da falta de qualidade, de quantidade e da coerência entre as informações disponíveis sobre um determinado assunto.

O cenário que estamos vivendo durante a pandemia tem como características: um excesso na quantidade de informações, com uma qualidade duvidosa e com muita incoerência entre as mesmas. 

Quanto a qualidade da informação, a pandemia tem gerado uma produção científica impressionante. O volume de artigos publicados é gigantesco. Em menos de um ano, foram indexados na base PUBMED, mais de 104 mil artigos. Isto significa um artigo novo a cada cinco minutos. O desenvolvimento de inúmeras vacinas e a realização de pesquisas sobre a sua segurança, tolerabilidade e eficácia em um curto espaço de tempo, é a prova da capacidade de geração de conhecimentos pela comunidade científica mundial. Muitos trabalhos científicos publicados já foram retratados, ou seja, foram avaliados como não tendo valor científico. Por outro lado, a facilidade com que as informações podem ser divulgadas e disseminadas nas redes sociais e meios de comunicação também gerou uma proliferação de notícias sem qualquer base de conhecimentos. Esta geração de notícias, no mínimo, duvidosas, não é por simples desconhecimento, mas também é realizada como produção de ignorância intencional. Com um grande volume de informações, é muito difícil fazer uma triagem do que é, ou não, válido.

Em 2003, quando houve a epidemia de SARS, foi criada a palavra Infodemia para caracterizar o grande volume de informações  associadas àquela situação. Esta palavra foi uma conjugação dos termos Informação Epidemia. Foi uma forma descrever as dificuldades decorrentes da desinformação associada ao volume de informações veiculadas.

A grande quantidade de informações, disponibilizadas diariamente, tem o efeito de reduzir o impacto destas mesmas informações, pelo simples fato de serem reiteradamente divulgadas. Isto já foi caracterizado pela Lei de Shannon, proposta na década de 1940. Esta Lei estabeleceu que o impacto de uma informação é inversamente proporcional à sua frequência.  Ou seja, de tanto um assunto ser veiculado, o seu impacto acaba por ser reduzido: é a banalização da informação. Um exemplo disto, é a divulgação das mortes causadas pela COVID-19. As primeiras mortes causaram grande comoção e apreensão na população. Porém, com a evolução da pandemia, este efeito foi sendo progressivamente atenuado. Por exemplo, nos Estados Unidos, apenas no dia 30 de dezembro de 2020, foram comunicadas 3808 mortes. Qual foi o impacto desta informação sobre a população norte-americana e mundial? Apenas para fazer um comparativo, o atentado de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas de Nova Iorque, causou 2977 mortes. Este episódio gerou um gigantesco impacto mundial, acarretando mudanças em vários aspectos da sociedade norte-americana e mundial. Ou outra comparação possível, seria de que este mesmo número de mortes corresponderia à queda, com todas as vítimas fatais, de mais de 20 aviões Boeing 737-800.

Shannon, 1948

A coerência das informações é um fator muito importante na redução da ambiguidade associada a uma decisão em situações de incerteza associada. A comunidade científica, especialmente na área da saúde, frequentemente realiza encontros que visam a elaboração de consensos sobre determinados assuntos ainda não devidamente consolidados na literatura científica. 

Uma pessoa leiga pode ficar confusa quando um especialista faz uma recomendação, com base em informações científicas, e uma outra pessoa, com grande visibilidade social, como uma liderança política, por exemplo, dá outras informações contrárias, ou age de forma exatamente inversa ao preconizado. A falta de coerência gera desconforto e desconfiança. Existe um outro risco, que é o decorrente da disseminação de informações sobre aspectos científicos e de saúde, realizada por pessoas sem qualificação científica ou profissional para isto. A repercussão destas opiniões pode ser muito grande, especialmente quando emitidas por pessoas tidas como "celebridades". 

Esta repercussão pode ser explicada, pelo menos em parte, pelo Efeito Dunning-Kruger. Em 1999, estes dois pesquisadores, a partir de dados obtidos em quatro diferentes experimentos, conseguiram estabelecer uma associação entre o grau de conhecimento, ou competência para lidar com uma determinada situação, e a confiança associada às suas afirmativas. Os autores esperavam que houvesse uma relação direta entre conhecimento/competência com a confiança. Isto realmente foi verificado nos grupos de pessoas com competência média e alta onde foi verificada uma crescente autoconfiança associada. Paradoxalmente, o grupo das pessoas com baixa competência para lidar com a mesma situação, apresentou uma alta autoconfiança ao dar as suas opiniões. Autoconfiança sem base em conhecimentos. É esta autoonfiança infundada que dá credibilidade a uma simples opinião, sem uma base de conhecimentos que a sustente. Um bom exemplo disto é a divulgação de "informações" sobre os efeitos genéticos das vacinas. Muitas postagens são tão enfáticas que parecem ter alguma razão. Muitas pessoas se assustam e acabam se posicionando contra o uso das vacinas. É um exemplo bem típico do que Kruger e Dunning denominaram de "montanha da estupidez".


Kruger & Dunning, 1999

Um cientista sempre vai reconhecer que existe uma possibilidade de erro, de incerteza associada aos seus argumentos. Porém, uma pessoa, que tem baixa competência científica, gera uma opinião convicta, com base em uma aparente certeza. Este confronto de argumentos científicos com opiniões leigas enfáticas, tem sido muito frequentemente ao longo da pandemia.  

Lidar com incerteza sempre gera ansiedade. Por sua vez, a ambiguidade, gerada pela falta de qualidade, pelo excesso de quantidade e pela falta de coerência, pode interferir  na avaliação dos riscos associados a uma dada situação. A ambiguidade pode gerar avaliações de riscos podem ser minimizados ou maximizados. Esta mistura de ansiedade, incerteza e ambiguidade é muito delicada, pois pode gerar escolhas com efeitos catastróficos para si e para os outros. Esta talvez seja uma das explicações possíveis para os fenômenos sociais que estão ocorrendo em vários países. 

Para ler mais


Shannon CE. A Mathematical Theory of Communication. Bell Syst Tech J. 1948;27:379–423, 623–656. 




domingo, 29 de novembro de 2020

COVID-19 e os Animais

 José Roberto Goldim

A questão das relações entre os animais e a pandemia da COVID-19 está presente desde o início da sua discussão. A relação do vírus SARS-CoV-2 com morcegos e pangolins foi muito discutida na perspectiva de serem os agentes naturais de transmissão. Os primeiros, talvez, como hospedeiros naturais deste vírus, e os segundos como via de transmissão alimentar para humanos. 

Ambos, morcegos e pangolins, sofreram um grande impacto em seus hábitos devido a interferência humana. A redução dos espaços naturais anteriormente existentes afeta a circulação e convivência de animais, seja como  indivíduos ou como espécies. A Saúde Planetária, já discutida em outro texto anterior, coloca estas questões ambientais no centro da discussão. A perspectiva antropocêntrica da saúde, que era predominante, passou a ter a visão biocêntrica, mais abrangente, como alternativa. 

O vison é um tipo de doninha, que tem uma pele muito apreciada e valiosa no mercado de luxo da moda. Cada casaco de pele, em média, utiliza a pele de 60 animais. No passado, em função de ações e denúncias de organizações de proteção aos animais, acabou criando um comportamento de redução de uso de casacos e outras peças de roupas com a utilização de peles de animais. Esta redução no uso de peles animais, especialmente de visons e filhotes de focas, foi resultado de inúmeras manifestações em desfiles de moda, cerimônias públicas e outras situações sociais foram realizadas. 

A revelação da situação vivida pelos pequenos animais na atual pandemia causou surpresa. A grande quantidade de animais criados em cativeiro e as decisões tomadas pelos diferentes países para tentar contornar a situação epdemiológica evidenciada.

Estes animais, que habitam ambientes aquáticos e tem hábitos solitários, quando criados em cativeiro, são alojados em gaiolas de metal localizados em grandes galpões. A restrição de espaço para os animais gera canibalismo e outras formas de agressão, agravada por uma baixa assistência veterinária, já documentada, aos mesmos.

Peter Singer, quando publicou o seu livro Animal Liberation, já havia denunciado que estas formas industriais de criação animal não atendem aos critérios mínimos de bem-estar  e que alteram hábitos de vida e comportamentos. 

Um artigo, a ser publicado na edição de fevereiro de 2021 da revista Emerging Infectious Disease, mas liberado para consulta digitalmente de forma precoce, documentou a possibilidade de transmissão do vírus SARS-CoV-2 entre humanos e visons. Foram identificadas mutações semelhantes às verificadas em trabalhadores das fazendas de criação destes animais. Já existem pelo menos três vacinas diferentes sendo desenvolvidas para uso especificamente em visons.

A população mundial estimada de visons é de cerca de 50 milhões. Esta produção  concentra-se especialmente na China, Dinamarca, Holanda e Polonia. A Dinamarca é a maioria produtora mundial de peles de vison, com cerca de 17 milhões de animais. O ministro da Agricultura ordenou, por razões sanitárias, a eliminação de 10 milhões de animais em mais de mil fazendas de criação. Cerca de 12 pessoas diagnosticadas de COVID-19 foram contaminadas com as variantes encontradas nos animais das fazendas de criação. Além da Dinamarca, as mesmas variantes encontradas nos visons foram detectadas em seis pessoas da Holanda, duas pessoas na África do Sul e também na Suíça, além pessoas isoladas nas Ilhas Faroe, Rússia e Estados Unidos. Ainda não há informações se estas variantes surgiram primeiro nos visons ou em humanos.

Anteriormente, o SARS-CoV-2 já havia sido detectado em animais de fazendas de criação de vison na Espanha, na Holanda e nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, em uma fazenda no estado de Utah, cerca de 10 mil animais morreram em um surto de COVID-19. Os Estados Unidos tem cerca de 245 fazendas de criação de visons em 22 diferentes estados. 

Pelo mesmo motivo da Dinamarca, a Espanha já havia eliminado cerca de 100 mil visons  e a Holanda algumas dezenas de milhares de animais criados em 68 fazendas. França também tomou uma medida semelhante, com a morte de mil animais. 

Outra questão que gera preocupação é a da contaminação de ambientes naturais. A cada ano, centenas de animais escapam das fazendas de criação e voltam aos ecossistemas. Nestes locais os animais, caso estejam contaminados, passam a transmitir este vírus a animais selvagens, antes não expostos ao vírus.  

Por outro lado, as formas de matar e sepultar os animais foram discutíveis. Inúmeros questionamentos foram feitos sobre as decisões de mandar matar, de como matar e de como eliminar as carcaças dos animais. Um Tribunal da Dinamarca questionou a validade da decisão tomada pelo Ministro da Agricultura daquele país, afirmando que ele não tinha base legal para ordenar este tipo de ação. Isto acarretou a substituição deste ministro. Outra questão importante foi a forma de depositar as carcaças dos animais mortos em covas coletivas e rasas, próximas a cursos d'água. A maior preocupação ambiental foi com a liberação de nitrogênio e fósforo com a decomposição das carcaças. As covas utilizadas para enterrar os animais foram muito rasas e os gases gerados pela decomposição, acabaram por expor novamente as carcaças dos animais mortos. Depois deste desfecho inusitado, está sendo avaliada a possibilidade de exumar e cremar os restos animais. Esta possibilidade também deverá ser avaliada em termos do impacto ambiental, especialmente em função do volume de restos animais a serem cremados.

Estas medidas para conter a expansão das infecções por coronavírus em visons são discutíveis na sua origem. A relação de causa e efeito das contaminações entre os humanos e os visons ainda não foi adequadamente explicada. De acordo com a tendência, é possível  dar outras interpretações ao fenômeno constatado. A forma de eliminação dos animais e de suas caraças demonstrou graves falhas em termos de manejo ecologicamente adequado

Grande parte deste problema se deve a perda da noção de complexidade e diversidade na abordagem questões ambientais. A criação intensiva de animais, fora de seus ambientes naturais, com alteração de hábitos e comportamentos, com descaso pelas condições mínimas de bem-estar, é um importante fator agravante. 

A situação dos visons deu visibilidade a um problema que aparentemente já havia tido uma solução adequada. A utilização de peles animais, criados especificamente para este fim, para a confecção de roupas não era mais um problema de grande visibilidade. O volume de fazendas de criação espalhadas pelo mundo e o número surpreendente de animais em condições não adequadas gera um novo questionamento sobre o papel de nós humanos perante os demais animais. 

A Bioética, nas propostas de Fritz Jahr e de Van Rensselaer Potter, tem esta preocupação ampla com a vida e o viver de todos os seres, sejam humanos, animais ou plantas. A proposta da Ética da Terra, de Aldo Leopold, ampliou a abrangência para todos os elementos da natureza. 

Muitas pessoas questionam se esta reflexão sobre aspectos éticos pode ser ampliada para além dos humanos. A base deste pensamento é que apenas os humanos podem ser detentores de direitos, que apenas os humanos tem intenção associada ao agir. Mas estas são apenas algumas  das possibilidades de abordagem. A questão da nossa relação com a natureza pode e deve ser reenquadrada. 

No início dos anos 2000, já havia o reconhecimento de que os animais devem ser merecedores de considerações éticas. Os animais podem não ter direitos, mas nós temos deveres para com eles. Nós humanos temos  deveres e responsabilidade para com toda a natureza. Da mesma forma, podem ser avaliadas as consequências das nossas ações envolvendo outras formas de vida e do ambiente. Existem inúmeras referenciais teóricos que permitem abordar as questões ambientais nas reflexões bioéticas.

O importante é manter uma abordagem complexa para a abordagem dos problemas bioéticos em todos os níveis, sejam eles individuais, coletivos ou globais.


Para saber mais

Goldim JR. COVID-19, Saúde Global e Saúde Planetária. Bioética Complexa (Blog). 11/05/2020

Hammer AS, Quaade ML, Rasmussen TB, Fonager J, Rasmussen M, Mundbjerg K, et al. SARS-CoV-2 Transmission between Mink ( Neovison vison ) and Humans, Denmark. Emerg Infect Dis [Internet]. 2021 Feb;27(2). Divulgado antecipadamente em 19/11/2020. 

domingo, 4 de outubro de 2020

COVID-19, Morte e Morrer

 José Roberto Goldim


Talvez o maior medo associado a pandemia da COVID-19 é a morte. O número de mortos assume valores impressionantes. Inicialmente estes valores assustaram a todos. o passar do tempo e a continuidade do crescimento, houve uma banalização do seu impacto. Isto pode ser explicado por duas diferentes fontes. A famosa citação: “A morte de uma pessoa: é uma catástrofe. Cem mil mortes: isso é uma estatística!”, atribuída equivocadamente a Stalin, foi escrita, na realidade, por Kurt Tucholsky, em 1925. Da mesma forma, a Lei de Shannon, proposta em 1948, afirma que na medida em que a frequência de uma informação aumenta, o seu impacto inicial diminui. Informações sobre as mortes, que antes geravam discussões e ansiedade, passaram a ser apenas dados que se acumulam. 

Muitos temas associados à morte e ao morrer seguem exigindo a nossa reflexão. A reflexão passa pela necessidade de alocar recursos escasso, da condução adequada dos cuidados prestados, das peculiaridades de procedimentos, em função de legislações nacionais, e da percepção da sociedade.

Em várias publicações leigas e científicas existe ambiguidade e confusão na utilização de conceitos essenciais. 

A utilização de critérios defensáveis, desde o ponto de vista técnico, ético e social, para a alocação de recursos escassos, foi uma necessidade para o enfrentamento de situações criticas em algumas regiões de diferentes países. Alguns autores confundiram a situação dos pacientes que não tiverem acesso aos recursos necessários com a eutanásia passiva. Estes pacientes devem receber todos os cuidados paliativos necessários para minorar o seu sofrimento e desconforto. A eutanásia passiva ocorre quando alguém, habitualmente um profissional de saúde, abrevia intencionalmente a vida do paciente.  Este é o objetivo da realização do procedimento. Na triagem, o objetivo é disponibilizar os recursos escassos de acordo com os critérios previamente estabelecidos e conhecidos pela sociedade. O paciente e seus familiares não podem ser surpreendidos com a utilização de critérios nunca antes discutidos e compartilhados. Como os recursos são escassos e excepcionais, a morte é decorrente da evolução do quadro de saúde preexistente. e não em função da restrição em si. O que não pode ocorrer é o abandono de pacientes que não preenchem os critérios de triagem e muito menos a sua utilização sem que haja carência de recursos. 

Ao longo dos atendimentos dos pacientes COVID-19 nas Unidades de Tratamento Intensivo também tem ocorrido situações de obstinação terapêutica, também denominadas de Distanásia. Muitas vezes os profissionais de saúde ou os familiares questionam no sentido de manter cuidados já considerados fúteis ou de implantar outras medidas progressivamente invasivas sem que haja possibilidade de benefício para o paciente. É simplesmente utilizar por ter o recurso disponível. Conforme propôs Günther Ropohl, em 1981, não devemos fazer tudo o que a técnica nos permite fazer. A adequação na utilização dos recursos tecnológicos na área da saúde é fundamental. Não tem sentido utilizar medidas fúteis. É importante saber reconhecer quando os recursos, que podem beneficiar os pacientes, se esgotam. 

É extremamente importante manter os familiares e os próprios pacientes, quando possível, informados desta avaliação. Quando todas as medidas terapêuticas de cura se esgotam, permanecem os cuidados paliativos indispensáveis. Um questionamento sempre presente é se foram tomadas todas as medidas que deveriam ser tomadas. Reconhecer o esgotamento de recursos terapêuticos de cura é poder afirmar que tudo que podia ser feito foi efetivamente utilizado. Ir além é postergar, é prolongar indevidamente. É fundamental que as equipes tenham objetivos e metas terapêuticas claras, que sejam compartilhadas entre todos os profissionais, com os pacientes e seus familiares. É fundamental garantir uma morte adequada aos pacientes, isto é, uma adequação  em relação a causa, ao modo e ao tempo da sua ocorrência. O morrer adequado é muitas vezes denominado de Ortotanásia.

A questão dos cuidados paliativos também teve inúmeras utilizações discutíveis. Alguns autores consideraram os cuidados  paliativos como sendo eutanásia passiva. Nos cuidados paliativos a intenção é reduzir o sofrimento do paciente, é permitir que ele tenha uma alívio de seus sintomas e situações. Podem ser utilizadas medidas de anagesia para controle da dor e de sedação paliativa para o alívio da falta de ar. Os cuidados paliativos evitam um prolongamento indevido dos cuidados prestados. Na eutanásia passiva, por outro lado, a intenção é antecipar a morte do paciente. A dificuldade é ampliar a perspectiva habitual de cuidados paliativos, voltada a pacientes individuais, para ser utilizada no sofrimento coletivo gerado pela pandemia.

Com relação a eutanásia propriamente dita, ocorreram situações aparentemente paradoxais. Na Holanda, primeiro país a ter uma legislação específica sobre este tema, houve uma suspensão da realização deste procedimentos em função da mobilização dos profissionais para atenderem as demandas geradas pela pandemia. O Euthanasia Expertise Centre, da Holanda, responsável por mais 898 procedimentos deste tipo em 2019, suspendeu todas as suas atividades durante a pandemia. Os procedimentos de eutanásia foram considerado como eletivos. Por outro lado, no Canadá, onde 1,6% das mortes são medicamente assistidas, vários procedimentos foram realizados no sentido de atender a solicitações de antecipação de eutanásia, para evitar que estas pessoas não corressem o risco de ter COVID-19. Ou seja, são duas posições contrárias frente a mesma situação, que podem ser explicadas em função do foco da decisão. 

Os estudos de avaliação de características de culturas nacionais, realizados com base na proposta de Gert Hofstede, demonstram que estes dois países têm muitas semelhanças, mas algumas diferenças que podem explicar este aparente paradoxo frente a eutanásia durante a pandemia. Das seis características utilizadas no modelo de Hosftede, os dois países tem semelhanças em quatro e se diferenciam em outras duas. Tanto o Canadá quanto a Holanda têm uma noção de interdependência entre seus cidadãos, e ambos têm culturas individualistas. Estes dois países também são sociedades competitivas, que aceitam um certo grau de risco associado às tomadas de decisão. As duas características que diferenciam estes países são a orientação de longo prazo e a forma como estas sociedades lidam com impulsos e desejos. Os canadenses tem uma orientação mais voltada ao curto prazo, enquanto que os holandeses tem uma perspectiva mais longo prazo. Porém quanto aos impulsos e desejos, as perspectivas de invertem. Os canadenses são mais indulgentes em relação aos impulsos e desejos, enquanto que os holandeses são mais restritivos. Isto pode ser a explicação das duas perspectivas. O Canadá ao ao realizar os procedimentos de eutanásia durante a pandemia reflete estas perspectivas de curto prazo e de valorizarem a realização de impulsos e desejos. Por outro lado, a Holanda ao postergar a realização dos procedimentos de eutanásia, revela as suas características de pensar pragmaticamente e a longo prazo. São duas perspectivas apenas aparentemente contraditórias, que quando avaliadas de forma mais abrangente têm uma coerência com as suas caraterísticas históricas e culturais.

Uma última abordagem possível é a discussão sobre as mortes evitáveis. Esta situação já foi descrita com a denominação de Mistanásia. Estas mortes, que ocorrem por falta de planejamento adequado, poderiam ter sido evitadas, menos pessoas poderiam ter morrido em decorrência da pandemia. Estas mortes podem envolver ou não a infecção pelo SARS-CoV-2, pois muitas outras mortes deveriam ser também computadas como decorrentes da pandemia. Muitos pacientes morreram, por outras causas, durante a pandemia por falta de assistência adequada. A restrição de procedimentos, de escassez recursos e do despreparo para enfrentar situações como a vivida nesta pandemia, fizeram com que muitos pacientes com COVID-19 e outros sem COVID-19 morressem indevidamente. Nos casos de óbitos causados pela COVID-19 existem modelos que permitem fazer uma estimativa de mortes. Estas mortes evitáveis são aquelas que extrapolam os modelos de mortalidade usuais. As mortes evitáveis em outros diagnósticos poderão ser verificadas posteriormente. Será possível avaliar se houve, na vigência da pandemia, uma mortalidade superior à média histórica, excluindo o computo dos casos de COVID-19.


Para ler mais

Shannon CE. A Mathematical Theory of Communication. Bell Syst Tech J. 1948;27:379–423, 623–656. 

Davis SP. Euthanasia of the Coronavirus - COVID-19. Online J Heal Ethics [Internet]. 2020;16(1). 

Pomeroy R. COVID-19 and Passive Euthanasia. RealClear Science. 2020. 

Pancevski B. Coronavirus Is Taking a High Toll on Sweden’s Elderly . Families Blame the [Internet]. The Wall Street Journal. 2020

Yuill K, Boer T. What Covid-19 has revealed abut euthanasia. Spiked. 2020 

Wiebe E, Green S, Wiebe K. Medical assistance in dying (MAiD) in Canada: practical aspects for healthcare teams. Ann Palliat Med. 2020 Aug;9(6):38–38. 

domingo, 20 de setembro de 2020

COVID-19 e Estudos de Desafio Humano

 José Roberto Goldim


A pressão da comunidade mundial para o desenvolvimento acelerado de vacinas já teve o seu resultado. A média histórica de 12,5 anos para o desenvolvimento de um novo produto na área da saúde foi encurtada para alguns meses. A previsão de que os estudos de fase 3, na perspectiva mais otimista, fossem iniciados em 2023, foi derrubada pois, pelo menos nove projetos de vacina já estão em execução em setembro de 2020.  

Com o avanço dos projetos de pesquisa, as questões se deslocam da segurança e da tolerabilidade para a  eficácia em curto, médio e longo prazo. Uma importante questão é saber se as pessoas já vacinadas durante os projetos de pesquisa tem efetivamente uma imunidade ativa contra o Sars-CoV-2.

Existe uma mobilização, principalmente gerada por um grupo norte-americano, em defesa da realização de estudos de desafio humano em COVID-19. Este grupo já contou com o apoio de inúmeras pessoas, inclusive cientistas e outras pessoas com grande influência na sociedade. Este grupo já tem um outro site que defende diferentes formas de doação de órgãos intervivos com o objetivo reduzir o tempo de lista de espera. O traço comum entre as duas propostas é incentivar comportamentos altruístas.  No site do 1daysooner já tem um registro de mais de 37000 pessoas, de 162 países, que se voluntariaram para participar de estudos de desafio humano. 

Neste tipo de estudo as pessoas participantes são intencionalmente exposta à contaminação de uma doença, com a finalidade de verificar a sua evolução e a sua imunidade gerada por vacinação prévia. Estes estudos envolvem a preparação de agentes infectantes, a transmissão intencional aos voluntários e o seu acompanhamento a curto, médio e longo prazo. No início destes estudos os participantes ficam alojados com rígido controle de isolamento. Este período é compatível com o risco de transmissão para outras pessoas da comunidade. Eles voltam ao convívio social apenas quando não há risco de transmissão. Os efeitos são acompanhados por longos períodos visando avaliar as questões de imunidade, de eventos adversos e outros eventos associados. 

Os estudos de desafio humano deveriam ser denominados de estudos de desafio de infecção humana controlada ou, melhor ainda, de estudos de modelos controlados de infecção em seres humanos.

Na história da pesquisa em seres humanos, inúmeros estudos, hoje tidos como inadequados, foram realizados utilizando esta estratégia. Vale lembrar que desde o século 18, com os estudos envolvendo a transmissão e a imunização de varíola são feitos estudos deste tipo. No século 19 foram inúmeros estudos sobre sífilis e raiva que infectaram propositadamente pessoas sadias e pacientes visando verificar sua imunidade. No século 20 podem ser destacados os estudos de febre amarela realizados em Cuba e no Brasil, nos anos de 1900 a 1903, e o estudo de hepatite realizado em Willowbrock/Estados Unidos  na  década de 1950. 

Nos últimos 50 anos, contudo, inúmeros estudos de desafio humano foram realizados de forma adequada e auxiliaram no desenvolvimento de novas vacinas e na proteção imunológica de algumas doenças. É difícil saber quantas vezes estes estudos foram realizados, pois não existe um indexador específico nas bases de dados.

Na vigência da pandemia da COVID-19, a Organização Mundial da Saúde publicou um documento sobre os critérios éticos de aceitabilidade para a realização deste tipo de estudos. Foram listados oito critérios:

1) Justificativa científica;

2) Avaliação dos potenciais riscos e benefícios;

3) Consulta e comprometimento do público, de especialistas e de responsáveis pela elaboração de políticas públicas;

4) Coordenação conjunta de pesquisadores, órgãos financiadores, encarregados de elaborar políticas públicas e pelos aspectos regulatórios;

5) Seleção dos locais de realização levando em conta os mais altos padrões científicos, clínicos e éticos;

6) Seleção dos participantes com critérios estabelecidos para limitar e minimizar os riscos associados;

7) Revisão por um comitê de especialistas independentes;

8) Consentimento informado rigoroso.

quadro comparativo apresenta os oito critérios propostos pela  e suas interações em uma perspectiva abrangente. Nestas associações é possível visualizar a complexidade da avaliação da adequação dos estudos de desafio humano. Alguns destes critérios podem ser melhor detalhados.

A justificativa científica deve contemplar simultaneamente o bem da humanidade e a proteção dos participantes. Não se justifica expor individualmente as pessoas visando gerar conhecimentos úteis e necessários à coletividade. O item 8 da Declaração de Helsinque, versão 2013, é claro ao afirmar que: 

Embora o objetivo principal da pesquisa médica seja gerar novos conhecimentos, esse objetivo nunca pode ter precedência sobre os direitos e interesses dos sujeitos de pesquisa individuais.

A  avaliação dos potenciais riscos e benefícios associados a estes projetos deve ser extremamente prudente, pois existem poucos conh ecimentos disponíveis sobre o SARS-CoV-2 e a COVID-19. É sempre bom lembrar o pouco tempo decirrido deste a sua caracterização no final de dezembro de 2019. O estabelecimento de risco depende de conhecimentos prévios. Na ausência de conhecimentos diretos, podem ser feitas analogias com a evolução de outras doenças semelhantes, mas com um alto grau de incerteza associado. 

É sempre bom lembrar que é "eticamente inadequado assumir que um risco, quando incerto ou desconhecido, é igual a zero ou seja considerado como não importante". Este pensamento de Kristin Shrader-Frechette deve orientar as avaliações da relação risco/benefício associada aos projetos de desafio humano. Inúmeros riscos de médio e longo prazo são desconhecidos e não podem ser desprezados por este motivo.

Um importante ponto associado é que estes estudos têm um risco criado ou construído pela própria pesquisa, ou seja, estas pessoas serão infectadas, ainda que voluntariamente, em função de sua participação na pesquisa. A definição de risco construído foi proposta por Anthony Giddens.

Um dos primeiros autores a estudar temas relacionados ao risco, Antoine Arnauld, em 1662, afirmou que "O medo do dano deveria ser proporcional, não apenas à gravidade do dano, mas também à probabilidade do evento".

A proposta de consulta e comprometimento do público, de especialistas e de responsáveis pela elaboração de políticas públicas é muito desejável, mas com a velocidade com que os projetos estão sendo propostos na pesquisa em COVID-19, isto nem sempre é realizado. Algumas vezes apenas os Comitês de Ética em Pesquisa se manifestam. A centralização da avaliação dos projetos pro comissões nacionais, como a CONEP no Brasil, reduz a discussão local dos projetos que podem ter algum questionamento local. Os responsáveis pela gestão local das instituições e dos sistemas de saúde não têm conhecimento da diversidade e complexidade das pesquisas realizadas. É fundamental, também, que haja uma avaliação prévia realizada por um comitê de especialistas independentes. 

Além disto, estes estudos devem ter visibilidade pública, ou seja, antes de serem iniciados, deve haver a sua divulgação em um registro de estudos clínicos aberto a consulta de qualquer pessoa. No site do Clinical Trials existem mais de 700 estudos cadastrados como sendo de desafio humano. Destes, 198 estudos estão em execução e 434 já foram concluídos. Não há registro de estudo de desafio humano envolvendo COVID-19 até 20 de setembro de 2020.

A proposta de que haja uma coordenação conjunta de pesquisadores, órgãos financiadores, encarregados de elaborar políticas públicas e pelos aspectos regulatórios também é de difícil implementação. As iniciativas de realização de projetos tem origem múltipla, nas universidades, instituições de pesquisa em saúde privadas ou públicas, em empresas de biotecnologia, em grandes conglomerados de empresas das áreas farmacêuticas e dos mais variados organismos de financiamento. Em um cenário tão diverso e pressionado pela premência de gerar novos conhecimentos é difícil buscar uma coordenação entre todos estes envolvidos. Muitas vezes são negociações e propostas realizadas em paralelo. As questões de financiamento destes estudos é de difícil planejamento, em função da incerteza associada ao desenrolar dos próprios estudos.

A seleção dos locais de realização dos estudos de desafio humano deverá levar em conta os mais altos padrões científicos, clínicos e éticos. A dificuldade vai ser contar com a infraestrutura de apoio necessário à manutenção dos participantes de pesquisa pelo período de isolamento em condições adequadas de conforto e segurança. Vale lembrar que estas pessoas, a princípio não estão doentes, são potencialmente doentes em função do delineamento utilizado.Toda a equipe de pesquisa envolvida, assim como o pessoal de apoio terão que atender a todas as medidas de segurança pessoal e comunitária. As instalações necessárias para a manipulação dos agentes biológicos também são um ponto crucial na realização destes exames.  A garantia de suporte de atendimento médico compatível com a gravidade do quadro de saúde apresentado pelos participantes é fundamental. Vale lembrar que a evolução conhecida da COVID-19 pode demandar longos períodos de internação em unidades de cuidados intensivos com a utilização de inúmeros recursos tecnológicos. 

A seleção dos participantes destes projetos deve utilizar critérios que limitem e minimizem os riscos associados. Além disto, a seleção não pode ter um caráter discriminatório nem de indução à participação. A espontaneidade das pessoas interessadas em participar destes estudos pode ser influenciada por fatores pessoais e sociais. O impulso altruísta pode ser devido a outros fatores associados a saúde mental destas pessoas. Desde o ponto de vista social, também pode haver a presença de fatores que exerçam pressões no sentido de que a opção em participar ou não possa ser ter algum elemento de reconhecimento ou de descrédito social. Sem contar com elementos coercitivos associados a vinculação dos potenciais participantes com instituições hierárquicas.  A seleção de faixas etárias com menor risco de gravidade da doença, como por exemplo dos 20 aos 30 anos pode ser entendida como um fator de proteção ou de discriminação. Da mesma forma, ao contrário dos estudos de vacina, a participação de profissionais vinculados a serviços essenciais como saúde e segurança deveria ser avaliada com extrema cautela.

Finalmente, o processo de consentimento a ser utilizado na inclusão dos participantes destes estudos deverá avaliar os componentes de capacidade, de informação e de consentimento propriamente ditos de forma rigorosa. 

A capacidade dos potenciais participantes deverá ser aferida em função do seu nível de desenvolvimento psicológico-moral, e não apenas pelo critério etário legal. Mesmo pessoas consideradas legalmente capazes, podem não ter desenvolvimento psicológico-moral compatível com a magnitude da relação risco-benefício envolvida. Esta avaliação poderá avaliar as pessoas que estão buscando participar meramente por um impulso. 

O componente de informação é crítico, pois deverão ser compartilhados conhecimentos essenciais necessários à compreensão adequada do que está sendo proposto. Alguns conhecimentos básicos poderão ser necessários para que esta compreensão seja possível. Da compreensão é que deve surgir o comprometimento, e não o impulso, para permitir a autorização para a participação. 

O componente de consentimento é que permite obter a autorização do potencial participante para a sua participação. O processo de consentimento pressupõe a liberdade para poder aceitar ou não o convite à participação no estudo. Esta liberdade deve ser preservada impedindo a presença de elementos de coerção associados ao próprio processo.  A garantia da voluntariedade dos potenciais participantes é fundamental. Na realização de estudos de Fase 1 algumas empresas e instituições de pesquisa tem remunerado os participantes. Isto acaba sendo mais um fator de interferência no processo de consentimento.

A criação de cadastros genéricos de voluntários para pesquisas em qualquer nível, especialmente em situações como os estudos de desafio humano, é altamente questionável. A rigor é uma inversão do processo de consentimento. O convite deve partir dos pesquisadores para os participantes e não ser uma oferta de participantes com interesse prévio a elaboração do prórpio protocolo de pesquisa. Todas as mais de 37000 pessoas que se inscreveram no site da 1daysooner já deram uma pré-aprovação à sua participação desconhecendo todas as informações relativas aos projetos. Um elemento importante de possível coerção é a divulgação de que muitos cientistas renomados assinaram o documento de apoio. Pode ser um argumento de autoridade que tolhe a necessidade de ser informado previamente. Outro fator é que estes estudos envolvem amostras que não são tão numerosas a ponto de necessitarem este volume de voluntários. A questão da proteção de dados pessoais destes potenciais participantes é um poutro ponto importante a ser questionado.

Não houve qualquer manifestação no sentido de impedir a realização adequada de estudos de desafio humano envolvendo COVID-19. O que houve foi claramente a utilização do prncípio da precaução em não realizar estes estudos durante a ocorrência de uma pandemia causada por um novo vírus, com características desconhecidas até pouco tempo, além da incerteza associada a própria evolução da doença e da falta de uma medicação efetiva específica. 

A geração precipitada de um clima da necessidade na realização destes estudos teve grande repercussão na imprensa leiga. Uma leitura descontextualizada desta situação pode levar a perspectiva equivocada de que a comunidade científica, as instituições de pesquisa ou os órgãos regulatórios estariam sendo contrários à realização destes estudos.

No estágio atual das pesquisas, com a realização de dezenas de estudos de novas vacinas em um tempo muito menor do que a história da ciência registrou, não há ainda necessidade de realização destes estudos de desafio humano. Os dados de proteção imunológica das novas vacinas poderão ser gerados pela própria seleção de participantes nestes estudos com maior risco profissional associado ou pela própria exposição comunitária ao vírus em locais onde a propagação ainda é elevada.

Todas estas reflexões remetem para a preservação dos critérios básicos de avaliação de projetos de pesquisa, que podem ser resumidos em apenas três itens: a relevância do projeto, a sua exequibilidade e a possibilidade de geração de conhecimento. Todos estes critérios devem ser coerentemente cotejados com a preservação da dignidade humana de todas as pessoas envolvidas, sejam eles participantes, pesquisadores, trabalhadores das instituições e a própria sociedade.

Para ler mais:

WHO. Key criteria for the ethical acceptability of COVID-19 human challenge studies 6 May 2020. Geneve; 2020.

Shrader-Frechette K. Ethics of scientific research. Boston: Rowman,1994.

Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002:104-134.

Antoine Arnauld. A Arte de Pensar. 1662.