Um dos grandes desafios da Bioética Clínica, desde seu início, é auxiliar no melhor entendimento de problemas éticos surgidos na prática. As atividades de Bioética Clínica necessitam de algumas características para terem condições de serem implantadas e terem continuidade. A capacitação de profissionais para a realização de atividades de Bioética e o apoio institucional para a que as mesmas ocorram são imprescindíveis (1).
Desde o início da Bioética Clínica, diferentes referenciais teóricos foram utilizados para realizar as reflexões necessárias. A Ética Baseada em Princípios, utilizando a beneficência, a não-maleficência, a autonomia e a justiça, foram utilizados para realizar estas reflexões bioéticas (2). Estes quatro princípios servem, sem dúvida, para esta finalidade, especialmente para fins de educação em Bioética. Os princípios servem para categorizar os casos, desde o ponto de vista teórico, mas não dão orientações práticas para quem tem que tomar as decisões, sejam eles profissionais, pacientes ou familiares.
Vários outros referenciais teóricos foram incorporados à Bioética Clínica, como o dos Direitos Humanos (3) e da Ética Consequencialista (4). Contudo, tinham esta mesma perspectiva de distanciamento das situações reais.
Por outro lado, existe a perspectiva de abordagem de casos individuais, baseada na experiência vivida pelas pessoas envolvidas. A vivência resultante da experiência de situações de vida real, desenvolveu procedimentos práticos para resolver problemas que surgem em outras situações particulares (5). A abordagem casuística foi muito utilizada para aconselhamentos no âmbito de problemas morais. Albert Jonsen terminou o seu texto sobre Ética Clínica e Casuística, com o seguinte comentário:
O espírito dos antigos casuístas habitam os corredores dos modernos hospitais (the spirits of the antique casuists inhabit the corridors of modem hospital) (6).
O grande desafio para a capacitação dos profissionais que atuam na área de Bioética Clínica é conciliar os conhecimentos teóricos, que servem de base para a argumentação, com a prudência necessária ao seu enfrentamento destes problemas (7).
O Hospital de Clínicas de Porto Alegre já tinha algumas instâncias de discussão ética associadas ao exercício profissional e às atividades de pesquisa. Em 1993, as atividades de Bioética Clínica foram implantadas com a constituição do Comitê de Bioética Clínica, primeiro a ser implantado no Brasil. Dois cuidados foram tomados. Primeiro, que os membros fossem pessoas que tivessem sensibilidade para a discussão de problemas éticos surgidos na prática diária do hospital. A outra característica foi a diversidade de sua composição, com pessoas de formações acadêmicas e profissionais diversificadas (1).
Ao longo do primeiro ano de atividades, o grupo de profissionais teve uma série de atividades de capacitação em conteúdos de Bioética e Ética, além de estudos de casos, envolvendo situações de Bioética Clínica, que já haviam sido publicados (8).
Passado este período de nivelamento de conhecimentos, em 1994, o Comitê de Bioética Clínica abriu a possibilidade para que profissionais de saúde trouxessem questões para serem discutidas em consultoria. Os casos eram apresentados e discutidos nas reuniões mensais do Comitê. Esta etapa inicial serviu para perceber a diversidade e a magnitude das questões, assim como as repercussões para todos os envolvidos (1).
Os profissionais encaminhavam suas consultorias que eram respondidas pelo Comitê. Contudo, algumas áreas começaram a sentir a necessidade de terem discussões à beira do leito dos pacientes. Discussões que fossem realizadas nas próprias unidades de atendimento, principalmente em função da necessidade de ter uma resposta mais rápida, pois os casos não podem esperar a sua discussão de acordo com um calendário de reuniões previamente estabelecido. As primeiras áreas do hospital que tiveram atividades regulares semanais para discutir questões de Bioética Clínica, em 1997, foram a Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica e o Serviço de Reumatologia. A proximidade da presença dos consultores de Bioética com as equipes assistenciais, permitiu que em muitas situações, nem a reunião semanal pudesse ser esperada. Os casos tinham necessidade de ser discutidos, em seus aspectos bioéticos, em tempo real, como parte das discussões clínicas realizadas pelas equipes (9). Este tipo de atividade realizada em round assistencial de bioética foi denominada de consultoria proativa (1).
Em 2009, foi criada a possibilidade de acionar os consultores de Bioética Clínica diretamente pelo sistema de prontuário eletrônico, a exemplo de outras consultorias médicas. Isto permitiu maior agilidade e a possibilidade de que as recomendações dos consultores pudessem ser documentadas como qualquer outro registro de atendimento prestado no hospital (9).
Até os dias de hoje, as consultorias de Bioética são prestadas, preferencialmente, nos próprios locais de atendimento assistencial. Os consultores de Bioética se deslocam às unidades de atendimento onde os pacientes estão. O tempo médio de resposta a uma solicitação de consultoria é de 6h30min. Assim existe a possibilidade de ampliar a participação para outros profissionais de saúde que estejam envolvidos no atendimento deste paciente específico e em tempo real que possa fazer a diferença em termos do processo de tomada de decisão (9).
Desde 1994, já foram prestadas mais de 6 mil consultorias, envolvendo mais de 3 mil pacientes. Estas consultorias estão consolidadas em um banco de dados que tem sido utilizado para a realização de pesquisas visando identificar as características das consultorias e oportunidades de melhoria na sua realização. O tema mais importante envolvido nas consultorias é o processo de tomada de decisão (10).
Cada paciente tem características biológicas e biográficas singulares. Os padrões podem ser repetitivos, mas as trajetórias são individuais. Além dos fatos relatados, existem as circunstâncias que diferenciam cada situação. A Bioética Complexa permite que na prática diária das consultorias de Bioética Clínica exista a conjugação de referenciais teóricos, que orientam a avaliação das alternativas de ação possíveis, com a experiência de outros casos, que possibilitam antever algumas das consequências associadas.
As situações atendidas nas consultorias, que mereçam uma ampliação da sua reflexão, seja com a finalidade de gerar alguma recomendação, ou para compartilhar situações inusitadas, são encaminhadas à reunião mensal do Comitê de Bioética Clínica. A participação de um conjunto mais amplo de profissionais permite uma maior diversidade e enriquecimento da reflexão, que é incorporada à prática. Vale destacar que este modelo já foi transposto para outros hospitais com bastante sucesso.
Este modelo de consultorias, que se inserem na prática assistencial, é conhecido como Bioética de Corredor, pois se associa às demais atividades desenvolvidas com os pacientes. A Bioética de Corredor tranquiliza os profissionais, pacientes e familiares ao discutir em tempo real e nos próprios locais de atendimento os problemas éticos identificados. Esta reflexão amplia a segurança e a qualidade dos atendimentos prestados, ao possibilitar maior compreensão da peculiaridade de cada situação.
Referências
1. Francisconi CFM, Goldim JR, Raymundo MM, Nogueira LAD, Arus MA, Matte U. Programa de Atenção aos Problemas de Bioética do Hospital de Clinicas de Porto Alegre, 10 Anos de Atividade. Rev HCPA. 2003;23(Supl):105.
2. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of Biomedical Ethics. 1st ed. New York: Oxford; 1978.
3. Bandman EL, Bandman B. Bioethics and human rights: a reader for health professionals. Boston: Little, Brown; 1978. 386 p.
4. Singer P. Practical Ethics. 1st ed. Cambridge: Cambridge University Press; 1979.
5. Jonsen A, Toulmin S. The Abuse of Casuistry: a history of moral reasoning. Berkeley: University of California Press; 1988.
6. Jonsen AR. Casuistry and clinical ethics. Theor Med. 1986;7(1):65–74.
7. Aristóteles. Ética a Nicômacos. 2nd ed. Brasiilia: Universidade de Brasília; 1992.
8. Francisconi CF, Goldim JR, Raymundo M, Benincasa C, Bulla MC, Zanette C, et al. Consultorias de bioética clínica realizadas no HCPA. Rev HCPA. 2002;22(Supl):118.
9. Genro BP, Vianna FSL, Dalmolin G dos S, Raymundo MM, Goldim JR. 25 anos de Bioética Clínica no HCPA: um pioneirismo que se renova. Clin Biomed Res. 2018;38(3):203–5.
10. Dashborad das Consultorias de Bioética Clínica. Serviço de Bioética, Hospital de Clínicas de Porto Alegre - Brasil. 2022.