José Roberto Goldim
Os transplantes de órgãos são uma realidade nos sistemas de saúde de diferentes países. Mesmo assim, alguns desafios bioéticos ainda estão presentes e necessitam ser refletidos. A realização de transplantes envolve não apenas o paciente e a equipe assistencial, mas sim a sociedade como um todo. Sem a participação ativa da sociedade não há recursos para a realização dos procedimentos, não há doação de órgãos, nem condições para a manutenção dos pacientes após a sua realização. A relação da sociedade com a realização de transplantes está baseada na confiança.
Os transplantes abriram perspectivas de tratamento que permitiram a sobrevivência de pacientes, antes tidos como sem qualquer alternativa de tratamento. Mas também trouxeram situações novas. Receber em seu corpo um órgão de outra pessoa é, no mínimo, inusitado. Estabelecer um novo critério para a morte de uma pessoa também foi outra mudança decorrente dos transplantes.
Em maio de 1968, o Comitê Ad Hoc da Escola de Medicina da Universidade de Harvard para Examinar a Definição de Morte Encefálica publicou as suas conclusões (1)19. Este Comitê foi formado em função do impacto mundial da realização do transplante de coração feito na África do Sul pela equipe liberada por Christian Barnard. Foram dadas duas razões para a proposta de utilização do critério encefálico para o estabelecimento da morte. A primeira se associa aos procedimentos de reanimação cardiorrespiratória e as medidas de suporte de funções vitais, principalmente os ventiladores artificiais. Estas mudanças estavam relacionadas ao surgimento dos cuidados intensivos e das unidades de tratamento intensivo, nos anos 1950. Estes novos cenários de assistência alteraram o atendimento dos pacientes gravemente doentes e em final de vida. O segundo motivo foi a própria obtenção de órgãos para a realização de transplantes.
A proposta de um novo critério para o estabelecimento da morte de uma pessoa foi acolhida em tempos distintos pelas sociedades de diferentes países. As sociedades dos países ocidentais tiveram mais facilidade em aceitar, enquanto que as dos países orientais demonstraram maior resistência. Isto pode ser explicado, pelo menos em parte, por uma manifestação do Papa Pio XII, na abertura de Congresso de Anestesiologia em Roma, em 1957, afirmando que “a caracterização da morte é um ato médico”20. Nesta manifestação o Papa Pio XII respondeu a perguntas encaminhadas pelos anestesistas principalmente em relação a reanimação cardiorrespiratória.
A diferenciação dos conceitos de vida e de viver é fundamental para entender esta mudança. A morte pelo critério cardiotorácico se associa à vida, em seus aspectos biológicos, enquanto que o critério encefálico se relaciona ao viver, aos aspectos biográficos, à vida relacional da pessoa. A reflexão bioética deve levar em conta tanto os aspectos biológicos como os biográficos. No critério cardiorrespiratório a vida é o ponto primário de constatação, enquanto que o viver é uma decorrência deste. Qualquer pessoa poderia constatar um óbito baseado no critério cardiotorácico, pois ele era autoevidente. Na morte caracterizada pelo critério encefálico, ao contrário, o final do viver é que determina o final da vida. São necessários conhecimentos específicos para ter o adequado entendimento dos sinais que caracterizam esta situação. Este foi um dos impactos desta nova proposta.
A partir da constatação da morte de um paciente, utilizando o critério encefálico, ou seja, do final de seu viver, é possível ainda manter as medidas de suporte de suas funções biológicas por algum tempo. É neste período de preservação apenas da vida dos seus órgãos é que é feito o contato com os familiares visando a possibilidade de doação e posterior transplante.
É uma intervenção delicada alguém solicitar a doação de órgãos para transplante em um momento de dor pela morte de um familiar. É bastante diferente abordar uma família que vem acompanhando a evolução de um doente crônico que se agrava, da comunicação de uma morte decorrente de um evento abrupto, como um acidente fatal. A doação, em ambas situações, pode dar algum sentido a esta perda com a possibilidade de que esta decisão poderá vir a beneficiar outras pessoas. É a possibilidade de ter um gesto de amor desinteressado por pessoas desconhecidas. De uma perda individual surge a possibilidade de expressar um amor pela humanidade.
Desde o ponto de vista legal, no Brasil a manifestação prévia do potencial doador, feita ainda em vida, não tem repercussões no ato de captar órgãos. A vontade da família é soberana, o representante legal do paciente falecido – cônjuge, filho maior, pai ou mãe - é quem toma a decisão. A manifestação em vida deste familiar é apenas um elemento de convencimento. Sem dúvida alguma, a discussão familiar prévia atenua o processo de obtenção de órgãos. Este é o foco que deveria orientar as escolas e outras instituições comunitárias a discutirem a doação de órgãos fora da pressão da decisão em um momento tão difícil, delicado e com a pressão do tempo.
A doação, desde o ponto de vista de conduta moral, tem que ser entendida como um comportamento recomendável, ou seja, se a pessoa aceitar doar, ela pode e deve receber elogios por este gesto de desprendimento. Caso não aceite doar, esta resposta é moralmente indiferente, ou seja, não é passível de elogios, nem de desaprovação. É neste sentido que a manutenção do anonimato dos doadores e receptores é protetora.
Quando a doação é feita por um doador vivo, o anonimato não é possível, na quase totalidade das vezes. Isto pode gerar um importante fator de coerção, pelo menos afetiva entre os familiares de um paciente que está com a necessidade de realizar um transplante. Por este motivo, é que devem ser disponibilizados meios de apoio a estes potenciais doadores. Uma abordagem de sucesso é o hospital ter profissionais capacitados, não vinculados a equipe assistencial que realiza transplantes, que possam suprir, pelo menos em parte, esta vulnerabilidade situacional que estes potenciais doadores estão submetidos. O apoiador se disponibiliza a dar suporte a esta pessoa, auxilia em um processo de tomada de decisão difícil e com múltiplas interações. A exemplo da doação de paciente falecido, a doação intervivos também é uma conduta recomendável, jamais obrigatória.
Uma situação excepcional é a doação intervivos sem vínculos de parentesco dirigida a alguma pessoa específica. Nesta situação devem ser mantidas todas as medidas utilizadas para o doador intervivos aparentado, acrescidas de uma avaliação realizada por uma Comitê de Bioética Clínica da instituição hospitalar onde o procedimento será realizado. Este Comitê pode auxiliar e garantir um adequado controle social desta situação ao realizar esta avaliação envolvendo diferentes profissionais e representantes da comunidade não vinculados às equipes assistenciais nem aos pacientes receptores. São diferentes instâncias e profissionais envolvidos na proteção do paciente, mas também do doador.
Os transplantes permitiram ampliar a possibilidade de tratamentos para situações de extrema gravidade. A mobilização de recursos do Sistema de Saúde para permitir a realização deste tipo de procedimento é enorme, porém sempre começa a parir de uma decisão individual, solitária e solidária, de um doador ou de um representante de um potencial doador. A doação de órgãos, seja ela a partir de um doador vivo ou falecido, extrapola a esperança individual dos pacientes, deve ser entendida na perspectiva do bem comum da sociedade.
Referências
Ad Hoc Committee of the Harvard Medical School to Examine the Definition of Brain Death. A definition of irreversible coma. JAMA. 1968;205(6):85–8.
Pope Pius XII. The Prolongation of Life - An Adress to an International Congress of Anesthesiologists (November 24, 1957). Natl Cathol Bioeth Q [Internet]. 2009;9(2):327–32.
Observação
Texto base para o capítulo publicado em:
Goldim JR. 10 Ensaios de Bioética. São Leopoldo: Unisinos; 2018.