sexta-feira, 26 de abril de 2024

Dez desafios da Inteligência Artificial

José Roberto Goldim

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Estes desafios foram propostos por diferentes pessoas com a finalidade de gerar uma reflexão sobre os diferentes aspectos envolvidos com a Inteligência Artificial.(IA). Estas reflexões visam gerar um debate que é necessário para o adequado entendimento das relações sociais neste novo cenário.


1. Como você avalia o movimento sobre os Neurodireitos, liderado pelos próprios neuro-cientistas que estão trabalhando para desenvolver o uso médico de IA ?


A expressão Neurodireitos é uma maneira de chamar a atenção para uma questão particular, quando na realidade estamos tendo um desafio que é de âmbito geral. Neurodireitos são uma nova denominação para a garantia dos direitos humanos, dos direitos da pessoa, dos direitos fundamentais, como queiram chamar. A garantia dos direitos humanos, abrange o todo de cada pessoa e não apenas uma de suas características. 


O direito à vida, o direito à liberdade, o direito à privacidade são exemplos de questões que emergiram no final do século XVIII e permanecem cada vez mais atuais nos dias de hoje.  Mais do que estabelecer uma nova denominação ou classificação, temos é que garantir as questões centrais que nos dão identidade ao longo do nosso viver.


2. O que pensar sobre a ameaça à democracia a que alude carta assinada por Elon Musk e  Yuval Harari?


A ameaça à democracia, que extrapola os termos da carta citada, é clara e real. A disseminação de informações em grande escala e em velocidade crescente gera esta saturação de informações. 


Quem tem melhor abordado esta questão é o Prof. Byung-Chul Han, catedrático de Ética da Universidade de Berlim. Ele criou o termo Infocracia para denominar este fenômeno. A seleção de informações gerada pelos algoritmos das redes sociais e dos sites de busca acaba por dar uma visão extremamente estreita da realidade. O contraditório fica quase que eliminado, existe apenas a reiteração do que se sabe e se pensa. É a eliminação do desafio, do desconforto, mas apenas a mesma matriz de conhecimentos que se repete monotonamente, reiterando posições já assumidas anteriormente. A discussão fica substituída pela simples repetição de ideias e noções. A ausência de discussão gera a perda de reflexão.


3. Como podemos compreender o mau uso da IA, expressa na maldade a que estamos imersas pela Internet? 


O mau está sempre presente. Não é a internet que criou a maldade, ela deu uma dimensão de divulgação e de acesso nunca antes vista. Este mesmo fenômeno ocorreu quando as bibliotecas foram criadas, quando o livro impresso foi disponibilizado, quando o rádio, o cinema e a televisão se difundiram. São novos meios de expressar, de comunicar. Os meios de comunicação em massa, surgidos nos anos 1960, fizeram com que esta reflexão assumisse uma amplitude global. Mais do que estabelecer medidas de controle e contenção, o importante é desenvolver um pensamento crítico capaz de discernir e lidar com estas situações: é educar. Infelizmente, este não tem sido o caminho. A simples repressão gera mais problemas do que solução a este fenômeno.


4. E a Saúde Mental, estará sendo afetada pelo excesso de uso indiscriminado das mídias e IA pelo sujeito comum?


Sem dúvida nenhuma, a saúde mental das pessoas está sendo afetada por esta avalanche acrítica de informações. Os programas de jornalismo mudaram o seu foco informativo para ser um conjunto de comentários sobre um mesmo monótono tema de impacto. Passado o impacto, um novo tema é abordado e assim sucessivamente. A história não é mais contada, é apenas comentada em um breve período de tempo. Um tema fica sendo exposto, em média, por um período de até duas semanas. O foco não é mais informar, mas sim gerar novos impactos. Esta sucessão de impactos é que tem gerado uma certa apatia, uma perda da solidariedade, da perspectiva empática e compassiva com o outro. Tudo é espetáculo, os outros são substituídos constantemente. Assim, as relações se tornam apenas ligações, sem comprometimento associado.


5. Que tipo de legislação regulamenta o uso da IA? Quem fiscaliza?


O uso de Inteligência Artificial tem gerado uma necessidade de um novo marco regulatório que permita de alguma forma estabelecer parâmetros de adequação a estas atividades. O Brasil vem discutindo um projeto de lei neste sentido, a Europa está elaborando um regulamento para estabelecer um uso minimamente adequado à Inteligência Artificial. As leis atuais já permitem resolver muitas destas questões, mas novos temas se apresentam, como por exemplo, a questão da responsabilidade sobre as ações geradas pelos algoritmos. Quem é o responsável? É o desenvolvedor, é quem vende, é quem utiliza? Esta questão pode ser exemplificada por uma situação já existente: o uso de algoritmos para a direção de automóveis. Se ocorrer um acidente causado por um destes sistemas de navegação, quem será o responsável? Alguns sistemas são divulgados como não permitindo que as pessoas externas sejam atingidas. São sistemas que impedem os atropelamentos de pessoas e animais. Outros sistemas protegem os passageiros do próprio veículo. Em uma situação de risco o algoritmo irá proteger as pessoas externas e o outro as internas. O primeiro seria um algoritmo altruísta e o segundo egoísta. É fácil imaginar os desdobramentos de um acidente onde ocorreram danos pessoais: de quem será a culpa? A escolha por um desses algoritmos, na hora da compra, implica em uma responsabilidade para o motorista?


6. Impacto nas crianças


Inúmeros estudos têm demonstrado os impactos nas crianças com a utilização de equipamentos com o uso de imagens e sons. Os estudos realizados na década de 1960, por Edward Palmer sobre a atenção de crianças ao assistirem televisão, mudaram a própria produção destes programas para crianças. Eles mediam a atenção das crianças e provocavam elementos de distração. As sequências de maior atenção eram editadas e divulgadas. Isto fez com que o programa Vila Sésamo tivesse um impacto enorme na produção de programas infantis. Esta mesma técnica é hoje utilizada para manter a atenção em jogos, programas e telas de redes sociais. Existem setores que avaliam continuamente a atenção dos usuários e os elementos distratores presentes.


7. A IA é uma ameaça à criatividade, ao sonhar?


Como qualquer atividade humana, o uso das novas ferramentas de Inteligência Artificial podem ser consideradas como uma ameaça ou como um desafio. A questão é identificar a intenção associada, os interesses envolvidos e a finalidade à qual estão sendo desenvolvidas estas novas ferramentas. Se utilizadas de forma acrítica, podem ser uma ameaça, mas também podem ser um enorme incentivo à criatividade. 


8. Qual o lugar da inteligência emocional? Existe inteligência não artificial?


Esta questão é central: por que chamar de inteligência artificial? Esta expressão foi cunhada para substituir a palavra “cibernética” em uma atividade realizada no MIT, na década de  1960. A inteligência artificial nada mais é do que uma automatização dos processos de tomada de decisão. Cada vez mais a fronteira entre o natural e o artificial fica difícil de ser estabelecida. Isto já havia sido proposto por Jacques Monod, em 1970, em seu livro O Acaso e a Necessidade.


A incorporação de modelos de linguagem natural fez com que a interface fosse alterada. Do uso de um teclado, que é um meio muito precário de interação, surge a possibilidade de utilizar a voz. A comunicação fica mais fluida e facilitada. O uso do teclado dá a dimensão de uma interação com uma máquina, mas a voz parece estreitar esta ligação.  


Os algoritmos podem ser programados e treinados para “expressarem” emoções, mas que nada mais são do que conjuntos de processos previamente programados para reagir desta maneira. As pessoas podem se sentir confusas perante uma manifestação de uma máquina com uma característica emocional presente. 


O uso da palavra artificial gerou esta expectativa de um distanciamento ou de uma nova aproximação. Uma excelente provocação foi feita por Philip Dick, quando deu a uma novela o seguinte título:  “Os andróides sonham com ovelhas elétricas?” Foi esta novela que foi utilizada para elaborar o roteiro para o filme Blade Runner, de Ridley Scott. Esta oposição, entre o natural e o artificial, é sempre desafiadora e nem sempre tão simples de identificar.


9. O uso da IA poderia beneficiar a relação médico-paciente? De que forma?


A inteligência artificial pode beneficiar a relação médico-paciente ao gerar melhores informações, melhores meios diagnósticos, novos métodos de interação. O risco é a despersonalização, é a padronização, é a perda da singularidade. O problema não é a inteligência artificial em si, mas sim o uso que se faz destas novas ferramentas. O uso das ferramentas de IA devem ser auxiliares, devem melhorar a relação médico-paciente e não substituí-la. O profissional não deve se sentir ameaçado, mas sim incentivado a ser que esclarece, que explica aquilo que outras ferramentas apresentam apenas como dados. Gerar informações e sabedoria é o papel de todos os profissionais e a expectativa dos pacientes.


10. Como impacta a subjetivação e como fica o espelhamento do qual necessitamos para nos tornar alguém único e diferenciado do Outro?


Este é um ponto central e pouco abordado na questão da IA. Não é a introdução de ferramentas de IA que geram problemas, mas sim a falta de discussão da Alteridade, da relação efetiva com o outro. Isto sim é que pode gerar inúmeros problemas, que podem ser agravados com o uso de meios tecnológicos que podem distanciar ainda mais as pessoas. 


Entender que o outro é uma pessoa diferente de mim, com características próprias e singularidades. Esta interação efetiva gera corresponsabilidade, que a necessidade de cuidar do outro, que implica em cuidar de si mesmo, independe do uso de uma ferramenta, mas depende de um entendimento do que é viver, do que é se relacionar. Este é desafio proposto a todos nós. Muitas vezes desviamos o foco para outras questões, mas na essência é isto: reconhecer a si próprio e reconhecer o outro. 


Nota

Estes desafios e as notas associadas foram discutidos no evento promovido pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) em 17/08/2023.


domingo, 21 de abril de 2024

Immanuel Kant - 300 anos (22/04/1724-22/04/2024)

José Roberto Goldim

Immanuel Kant é um dos pensadores mais influentes da história humana. Mais de 480 biografias foram escritas sobre a sua pessoa. Ao refletir sobre a Dignidade Humana, Kant permitiu um novo olhar para toda a humanidade. Com isso, temas como a Autonomia, a Universalidade das Ações, a Liberdade e a Paz foram interligados e discutidos.

Kant foi um homem pequeno, com 1,57m de altura, de pele muito clara e olhos azuis, com muitos amigos, que nunca se afastou de sua cidade natal, Königsberg, principalmente em função de sua frágil saúde.   Königsberg era parte do Reino da Prússia. A partir de 1946, com o final da II Guerra Mundial, esta cidade passou a ser chamada de Kaliningrado, que foi anexada ao território da Rússia.

Esta cidade já era conhecida na história da Ciência, mesmo antes da obra de Kant, em função de um problema discutido pelos seus moradores no início do século XVIII. A questão era relacionada à possibilidade de fazer um trajeto pelas sete pontes, então existentes na cidade, passando apenas uma única vez por cada uma das pontes. Das sete pontes originais, restam apenas duas. Em 1736, quando Kant tinha apenas 12 anos de idade, o matemático suíço, Leonard Euler demonstrou que era impossível fazer este trajeto. Para resolver este problema, Euler desenvolveu novas formas de pensar as questões da Matemática, que serviu de base para a Topologia e para a Teoria dos Grafos

Kant nasceu em uma família, cujo pai - Johann Georg - era um artesão que fabricava arreios e a mãe - Anna Regina - se dedicava a cuidar da casa e dos nove filhos. Immanuel era o quarto filho. Quatro filhos morreram na infância. As mortes de pessoas afetivamente próximas, tais como o pai, a mãe, seus irmãos e amigos acompanharam e marcaram a vida de Kant. Em uma carta endereçada à mãe de um amigo, Johann Daneil Funk, que morreu em 1764, ele finalizou escrevendo que: "até que a morte, que sempre pareceu distante, de repente acaba com todo o jogo".

Em boa parte de sua vida, Kant foi governado por Frederico II, considerado por muitos como um déspota esclarecido. As suas ideias e formas de governar influenciaram o seu pensamento.

Uma característica importante foi a sólida formação moral recebida de seus pais que eram Pietistas. Esta denominação religiosa, derivada do Luteranismo, dá uma ênfase importante à dimensão religiosa individual, baseada na simplicidade e obediência às regras morais. Desta formação religiosa familiar, Kant incorporou o valor da correção, que pautou toda a sua vida em termos de honradez pessoal e de respeito às pessoas. Não há registro de uma situação desabonadora ao longo de sua vida. Kant, pessoalmente, não professava esta perspectiva pietista, que era predominante na sua escola e, posteriormente, na Universidade, onde foi professor. Fez todos os seus estudos com a ajuda financeira de um tio. 

Kant trabalhava muito como professor de filhos de famílias abastadas da cidade e, posteriormente na Universidade de Königsberg. Mesmo com este emprego de professor, a sua situação financeira nunca foi cômoda. Foi, talvez, por este motivo econômico que ele nunca se casou. Ele mesmo brincava com os seus amigos que quando o casamento poderia lhe dar algum proveito ele não tinha dinheiro. Porém, quando tinha dinheiro, já era demasiado velho para ter algum proveito.

Joseph Green, um comerciante inglês que foi morar em Königsberg, em função de seus negócios, foi um grande amigo e companheiro de Kant. Green era uma pessoa muito erudita,  que apresentou a Kant algumas ideias que circulavam no Reino Unido e na Europa continental, especialmente as obras de David Hume e de Jean Jacques Rousseau. Green era uma pessoa metódica e com uma rigidez para a pontualidade, que também nunca se casou. Alguns hábitos atribuídos a Kant eram, na realidade, de Green. Eles se reuniam diariamente para trocar ideias, tendo discutido a Crítica a Razão Pura, palavra por palavra, antes da sua publicação em 1781. Kant ficou muito abalado com a sua morte em 1786.

Kant já havia sido influenciado pelas obras de Lucrécio e de Isaac Newton, porém foi a  leitura da obra de David Hume que provocou uma profunda reflexão. Kant estava com cerca de 46 anos quando isto ocorreu. Kant achava as conclusões de Hume inaceitáveis, mas reconhecia que os seus argumentos eram irrefutáveis. Ficou uma década sem divulgar seus textos, até que em 1871 publicou a Crítica da Razão Pura.

Na passagem de 1783 para 1784 foi publicado o ensaio "Uma resposta à questão: o que é o Iluminismo?", A palavra Aufklärung pode ser melhor traduzida como sendo Esclarecimento. Este pequeno texto definiu questões que deram base para uma série de reflexões posteriores. Kant afirmava que era o Esclarecimento que daria a "maioridade" à pessoa, ou seja, a possibilidade de poder ser autônomo.

A partir da Crítica da Razão Pura, a sua obra se desenvolveu com uma força impressionante. Foi neste conjunto de publicações que se inseriram a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, publicada em 1785, e a Crítica da Razão Prática, em 1788. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes foi proposto Imperativo Categórico, que teve três diferentes formulações: 

"Age como se a máxima de tua ação devesse ser transformada em lei universal da Natureza".

"Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na outra pessoa, sempre como um fim e nunca como um meio".

"Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais".

Kant no livro Crítica da Faculdade do Juízo, de 1790, também refletiu sobre a música. Uma das questões mais relevantes foi a de pensar, de forma integrada, na unidade e na multiplicidade contidas em uma composição. Ele denominava de "linguagem dos afetos" este arranjo entre harmonia e melodia. Kant entendia que a Estética era sensibilidade. Esta discussão sobre a sensibilidade e o entendimento acompanhou toda a sua obra.

Nas suas reflexões tardias, de 1795, Kant argumentava em torno da Paz Perpétua, que seria a culminância do processo civilizatório. Nesta obra Kant cita Frederico II e enaltece a Revolução Francesa  como uma possibilidade na constituição de uma federação de nações republicanas.

Em 1796 Kant de aposentou  da carreira de professor, com 72 anos. No ano seguinte publica a Metafísica dos Costumes. A partir de 1800, ele apresentou um considerável declínio cognitivo, vindo a falecer em 1804.

Ele próprio reconheceu, na Crítica à Razão Pura, que a sua obra teria repercussão equivalente à "revolução copernicana" ocorrida na Astronomia. Posteriormente foi criada a expressão "virada kantiana" para reconhecer a importância da sua obra para toda a humanidade. O pensamento crítico reformulou a forma de entender o mundo como tal.

Talvez a frase que melhor expresse o pensamento de Kant, com sua expressão de unidade e multiplicidade seja aquela contida na Crítica da Razão Prática:

“Duas coisas enchem a alma de uma admiração e de uma veneração sempre novas e sempre crescentes, à medida que a reflexão se aplica com mais frequência e constância: o céu estrelado acima de mim e a lei moral de mim”.

Sugestão de Leitura Complementar

Kuehn, Manfred. Kant - A Biography. Edimburgh, Cambridge, 2001.





     

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Bioética e Saúde: Uma Perspectiva Complexa, Integrada e Compreensiva

 José Roberto Goldim


A Bioética, quando entendida em sua perspectiva complexa, permite reflexões sobre vários temas. A saúde é um destes temas preferenciais para a reflexão bioética.  A perspectiva complexa associada às ações na área da Saúde permite envolver um conjunto amplo de argumentos que servem para verificar a sua adequação. 

A saúde têm múltiplos significados de acordo com o entendimento, com o paradigma utilizado e da abrangência estabelecida para as suas ações. a ter uma abordagem baseada no paradigma das evidências epidemiológicas ou das evidências narrativas. Quanto a abrangência, podem ser identificadas a  saúde individual, a saúde pública, a saúde coletiva, a saúde única, a saúde global e a saúde planetária.

Os diferentes entendimentos da saúde

Desde a antiguidade, a saúde é entendida como ausência de doença. É uma perspectiva baseada no paciente individualmente, com ênfase nos aspectos biológicos visando enfrentar situações específicas identificadas pelo médico. O local de saúde passou a ser identificado como sendo o hospital. Os médicos, a partir da metade do século XIX, passaram a contar, de forma sistemática e profissional, com a colaboração das Enfermeiras na realização de suas atividades.

No início do século XX, a saúde também passou a ser entendida como sendo um direito humano coletivo. A Revolução Mexicana, de 1913, a Revolução Russa, de 1917, e a Constituição de Weimar do Império Alemão, de 1919, consagraram este entendimento. Este direito coletivo garante o acesso aos cuidados de saúde para todos os cidadãos, sendo a que saúde se realiza no âmbito de toda a sociedade. O Art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, consagrou este entendimento ao propor que a "saúde é um direito de todos e um dever do Estado". A saúde passou a ser considerada como um critério de cidadania.

Com a criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, foi dado um outro entendimento do que é saúde. O modelo de abordagem biopsicossocial passou a ser incorporado e a saúde foi definida como o estado de pleno bem-estar físico, mental e social. Os aspectos biológicos foram acrescidos dos aspectos biográficos do individuo. Esta nova perspectiva também teve uma alteração de quem realiza saúde e onde que ela ocorre. Aos médicos e enfermeiros foram acrescidos todas as demais profissões da área da saúde. No Brasil, de acordo com a Resolução CNS 218/1997, são considerados profissionais de saúde:  Assistentes Sociais, Biólogos, Profissionais de Educação Física, Enfermeiros, Farmacêuticos, Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos, Médicos, Médicos Veterinários, Nutricionistas, Odontólogos, Psicólogos e Terapeutas Ocupacionais. A partir da Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978, o local onde a saúde ocorre passou a ser a rede de saúde, incluindo, além dos hospitais, os postos de diferentes níveis de complexidade. Novos profissionais e novos locais foram sendo incorporados às ações de saúde, entendida de forma mais abrangente.

Os paradigmas em saúde

Dois paradigmas são mais utilizados, o da Saúde baseada em Evidências Epidemiológicas e da Saúde baseada em Evidências Narrativas. Habitualmente, estes termos são utilizados de forma mais restrita, como Medicina baseada em Evidências e Medicina baseada em Narrativas. A opção de utilizar a expressão Saúde, ao invés de Medicina, tem como objetivo ampliar para além de um único enfoque profissional, envolvendo todos os demais participantes nas ações. 

Saúde baseada em Evidências Epidemiológicas é uma abordagem quantitativa que tende a ter  uma perspectiva de totalidade dos fenómenos estudados, ou seja, de buscar explicações que abarquem o conjunto de indivíduos, sem levar em conta as suas peculiaridades. Esta perspectiva baseada em evidências científicas, especialmente as epidemiológicas. 

Segundo Guyatt (1992), Saúde baseada em Evidências é uma abordagem que 

"retira a ênfase da intuição, da experiência clínica assistemática e de uma lógica patofisiológica como base suficiente para a tomada de decisões clínicas e enfatiza o exame das evidências da pesquisa clínica". 

Segundo este mesmo autor, esta abordagem exige novas habilidades dos profissionais e dos pacientes. Os profissionais têm que aprender a realizar buscas continuadas na literatura científica e a utilizar regras formais de avaliação destas evidências contidas nas produções científicas. 

HG Wells (1903), de forma antecipatória já havia dito que: 

"o pensamento estatístico será, um dia, tão necessário para a cidadania eficiente, quanto a habilidade de ler e escrever!"

A conjugação do pensamento estatístico com as buscas continuadas de dados publicados levou à possibilidade de estabelecer uma classificação das evidências de acordo com a confiança e validade associadas. A maneira mais comum de expressar esta classificação foi por meio da Pirâmide de Evidências Epidemiológicas. A opinião de especialistas é a evidência que tem a menor confiança e validade. No topo da pirâmide, ao contrário, estão  as revisões sistemáticas e os estudos de metanálise.

Esta é a mesma linha de pensamento da citação atribuída a W. Edwards Deming, porém não localizada em qualquer dos seus textos:

"sem dados, você é apenas uma pessoa com uma opinião". 

Porém, não basta ter apenas informações, se elas não estiverem associadas a uma perspectiva sobre o mundo, ou seja, a um paradigma. Matt Coyle (2021), fez um contraponto a proposta de Deming, ao afirmar que:
"sem uma opinião para guia-lo, você é apenas mais uma pessoa com dados".

Saúde baseada em Evidências Narrativas valoriza o individual, a singularidade, as múltiplas possibilidades de entender uma mesma situação de acordo com o paciente ou situação envolvida. É a recuperação da possibilidade de contar a histórica individual de cada pessoa, de cada paciente.  É, de acordo com Goyal e colaboradores (2008), lembrar que os pacientes tem nome e endereço, ou seja, são pessoas únicas e localizadas. A proposta destes autores é de que os profissionais de saúde devem sair dos relatos impessoais dos pacientes. 

Infelizmente, o conceito de narrativa tem sido confundido com o de versão. Narrativa, segundo Alberti (2012) é:
"é o estabelecimento de uma organização temporal, através de que o diverso, irregular e acidental entram em uma ordem, que não é anterior ao ato do relato, mas coincidente com ele; que é pois constitutiva de seu objeto."

Versão, por outro lado, são os "diferentes modos de contar ou interpretar o mesmo ponto, fato, história etc.", segundo esta mesma autora. Ou seja, a narrativa organiza um relato, informações antes dispersas que passam a fazer sentido., enquanto que a versão pode ser fantasiosa e infundada.

Zaharias (2018) ao questionar o que é Medicina baseada em Narrativa responde que é uma habilidade de contar histórias. Contar histórias é reconhecer a singularidade de cada paciente, é estabelecer e aproximar as conexões entre o profissional e o próprio paciente, é, finalmente, reconhecer que podem existir diferentes perspectivas para entender a mesma situação. Fazer a narrativa é organizar estas informações de uma maneira que permita o seu melhor entendimento por parte de todos.

Isto já havia sido descrito por Hipócrates, no seu livro Prognóstico. Neste texto, a palavra prognóstico, não se refere apenas a predizer o futuro, mas sim dar esta continuidade de informações ao longo do tempo, é estabelecer uma trajetória, uma hipótese, um modelo explicativo para a situação que busca descrever. O texto de Hipócrates estabelece que:

"Parece-me que é excelente que o médico estabeleça hipóteses. Pois, se ele investiga e relata aos seus pacientes, o presente, o passado e o futuro, antes mesmo que ocorram, preenchendo as lacunas nos relatos dados pelos doentes, ele terá mais condições de compreender os casos. Desta forma, os pacientes se entregarão a ele, com confiança, para tratamento."  

Muitas vezes estes paradigmas epidemiológico e narrativo são entendidos como sendo antagônicos, quando, na realidade, são complementares. Subbiah (2023) reenquadrou a Pirâmide de Evidências na perspectiva de um Iceberg de Evidências. A antiga Pirâmide é apenas a parte visível desta gigantesca estrutura de conhecimentos. Na parte "submersa", que aprofunda estas questões, estão incluídas as novas contribuições geradas pela tecnologia da informação, como a internet das coisas e o aprendizado de máquinas, assim como o paradigma narrativo. Os dados da História Natural, incluindo aspectos ambientais e sociais, e da história pessoal passam  a ser parte de mesmo conjunto de informações. 

Esta é a grande contribuição da teoria da complexidade: permitir esta visão integrada de paradigmas antes isolados. Não é uma fusão, uma perda de fronteiras, nem mesmo uma apropriação: é a possibilidade de diálogo, de troca de saberes entre duas diferentes perspectivas - epidemiológica e narrativa - de descrever a mesma realidade.

A abrangência da saúde

Existem múltiplas abrangências para a saúde. Os enfoques podem variar do nível individual, de uma única pessoa, até a saúde planetária, quando as questões mais amplas são abarcadas.

A perspectiva da saúde ser entendida apenas como um enfrentamento às doenças, tinha uma  perspectiva individual e biológica, baseada na pessoa doente. Saúde era o contrário da doença. O foco desta abrangência era manter e salvar a vida desta pessoa. A inclusão do bem-estar na definição de saúde proposta na criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, incluiu, além das questões biológicas, as relacionadas à saúde mental e social. Ou seja, as questões biográficas passaram a ser também consideradas. Cada ser humanos não era mais considerado apenas como um ser vivo, mas também como uma pessoa. A perspectiva da Saúde não era mais apenas preservar a vida, garantir a sobrevivência, mas também ter uma atenção ao viver, ao bem-viver, de dada um. Desta forma, os aspectos relacionais entre pessoas, antes vistos apenas na perspectiva de doenças infectocontagiosas, passaram a ter um novo olhar. 

A abrangência das questões envolvendo a saúde foi sendo progressivamente ampliada para abarcar as questões de Saúde Pública de Saúde Coletiva. Esta mudança da perspectiva individual para coletiva surgiu no final do século 19 e no início do século 20. A Saúde Pública se utilizou  dos conhecimentos gerados pela Epidemiologia, para estabelecer políticas públicas de alocação de recursos na área da saúde. Por outro lado, com a evolução do pensamento dos Direitos Humanos, alguns Estados começaram a garantir o direito à saúde, entendido como um direito coletivo e não individual. Esta inclusão da saúde como um critério de cidadania, é que permitiu o surgimento da Saúde Coletiva. A saúde pública assumiu uma proposta mais quantitativa, enquanto que a saúde coletiva passou a abordar estas mesmas questões de uma forma mais qualitativa, mais crítica e articulada. 

No final do século 20 foram incorporadas as reflexões sobre as questões ambientais. Houve a proposta de que o ambiente saudável é um direito fundamental transpessoal, ou seja, que ultrapassa inclusive a perspectiva humana. Isto acarretou também uma nova ampliação do entendimento do que é saúde, com a introdução da saúde única, da saúde global e da saúde planetária.

Ampliando ainda mais esta visão, surgem a Saúde Global e a Saúde PlanetáriaA saúde global abarcando, de forma mais abrangente, o conjunto de todos os elementos anteriormente citados. É a saúde não mais na perspectiva de um país ou região, mas do conjunto dinâmico das ações sanitárias em nível supranacional. É uma abrangência que leva em conta as biorregiões. A saúde global propõe uma perspectiva abrangente para as políticas públicas. Por sua vez, a saúde planetária vai ainda mais além. O seu objeto de preocupação é o planeta como um todo, é o entendimento sistêmico e integrado da Terra como Gaia. A saúde planetária passa a incluir na saúde, as questões climáticas, o uso de recursos naturais, as diferentes formas de produção e uso de energia, as alterações de paisagens e de ecossistemas, a mineração e a emissão de gases. Estas questões mais abrangentes, que antes não eram abordadas na perspectiva da área da saúde, passaram a assumir crescente importância devido às suas repercussões.

A perspectiva de Uma Só Saúde (One Health) surgiu de uma proposta de integração mais efetiva entre os aspectos de saúde envolvendo diferentes seres vivos, não só considerando os humanos. Nesta perspectiva a saúde humana e a saúde animal deveriam ter uma convergência e não uma atuação em paralelo. A Medicina Humana e a Medicina Veterinária devem ter uma maior proximidade, em termos de entendimento e de atuação. Inúmeras questões podem ser levantadas nesta nova visão. A pressão de sobrevivência das espécies animais selvagens que vivem em ecossistemas ameaçados ou em transformação, e que passam a ter maior interação com populações humanas é um destes temas. As diferentes formas de produção de animais para servirem de alimento é outro tema relevante. Da mesma forma, o aumento da quantidade e do tipo de interação  entre humanos e animais de estimação é outra questão importante desde o ponto de vista da saúde. Os animais de estimação passaram a fazer parte da vida diária e familiar, com maior interação e convívio, inclusive tendo estas relações reconhecidas como pertencentes a "famílias multiespécies". Os animais de estimação, assim como os animais de produção, começaram a receber medicamentos semelhantes aos utilizados por humanos, com repercussões ambientais e sanitárias importantes. A própria relação com microorganismos também mudou, ao invés de um enfrentamento, a nova perspectiva é de adaptação, de convivência segura e não de eliminação. A relação menos estudada, mas que é uma importante fronteira a ser ainda devidamente entendida, é da interação dos humanos com as plantas. As questões de saúde decorrentes do uso de alimentos vegetais, suas transformações e modos de produção, incluindo nutrição vegetal e controles de produção. Como fica evidente, a perspectiva da proposta de Uma Só Saúde exige uma perspectiva relacional e dinâmica de todos os fatores envolvidos, seja em âmbito individual, populacional, comunitário ou ambiental.

Em uma perspectiva linear de pensamento, cada um destes diferentes níveis de saúde - saúde individual, saúde pública, saúde coletiva,  saúde global, saúde planetária e uma só saúde - cada um seria apenas uma ultrapassagem da anterior. Porém, quando estas múltiplas perspectivas são abordadas de forma complexa,  elas não são excludentes, mas se complementam, permitindo uma visão abrangente do todo, sem perder a peculiaridade de cada uma das partes.  Todas as perspectivas são importantes de acordo com a sua adequação e relação às demais.  A abordagem complexa da Saúde permite uma visão integrada da unidade na multiplicidade.

Bioética, Saúde e Complexidade

A Bioética e a Saúde, quando entendidas de forma complexa, expressam esta perspectiva integradora de competências científicas e humanísticas. A saúde deve ter este novo olhar integrado, que permita construir argumentos que possam servir para explicar melhor a atual situação que estamos enfrentando. Não é uma visão de escolha, de exclusão, mas sim de inclusão de múltiplas perspectivas de entendimento. A contribuição da Bioética é a de permitir uma reflexão sobre a adequação das ações envolvidas na área da saúde, em todos os seus múltiplos significados e usos.

Referências

Guyatt G. Evidence-Based Medicine. JAMA. 1992 Nov 4;268(17):2420. 

Wells HG. Manking in the making. New York: Chapman & Hall; 1903.



terça-feira, 10 de outubro de 2023

"Martha’s Rule" e a Importância da Relação dos Profissionais da Saúde com Pacientes e Familiares


José Roberto Goldim

Em outubro de 2023 o British Medical Journal publicou uma opinião sobre a questão do direito à segunda opinião por parte do paciente ou dos seus familiares.

A relação profissional-paciente-familiares vem sendo ressignificada desde os anos 1970. Inúmeros autores propuseram que a relação deveria ser mais aberta, permitindo uma efetiva troca de conhecimentos, opiniões, valores, desejos e crenças associadas. Esta troca de informações é que permite o estabelecimento do vínculo de confiança, que é a base desta interação efetiva.


Nesta nova perspectiva, as decisões não devem ser baseadas apenas na preservação da vida, da sobrevivência biológica do paciente, mas também no seu melhor interesse em termos biográficos, levando em conta o seu bem-viver. 


Em nenhum momento houve a proposta de substituir o conhecimento e a prática profissional, mas sim agregar estas outras dimensões ao processo de tomada de decisão.


Inúmeras tentativas de melhorar esta relação foram propostas em diferentes lugares do mundo e implantadas em muitos hospitais, tais como os modelos de “cultura justa”; de reconhecer a importância do “dever de candura” - entendido como dever de estar aberto e de ser honesto em suas posições; do processo de “tomada de decisão compartilhada”; das “Cartas dos Direitos do Paciente”. Todas estas tentativas visam humanizar as relações entre todos os envolvidos, buscando dar voz aos pacientes e familiares.


A própria criação das consultorias de Bioética Clínica e de outras propostas como o C4C - Call 4 Concern, implantado no Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido para os pacientes críticos, podem ser enquadrados neste mesmo tema. Ambas propostas, consultorias e C4C, permitem que outros profissionais possam ser chamados para esclarecer e auxiliar os pacientes, familiares e profissionais nos processos de tomadas de decisão.


A proposta da “Martha’s Rule”, ou seja, da Regra de Martha, surgiu em 2022, como decorrência de uma situação assistencial específica. Em 2021, uma paciente de 14 anos, Martha Mills, foi internada por um trauma de pâncreas, decorrente de uma queda de bicicleta, em um hospital de Londres. A paciente teve o seu estado de saúde progressivamente agravado, culminando com a sua morte. A sua mãe não se conformou com o atendimento assistencial recebido e  solicitou inúmeras vezes que a sua filha fosse avaliada por outros profissionais, com a finalidade de obter uma segunda opinião. A sua solicitação não foi atendida. 


A mãe de Martha, Merope Mills, que é editora do jornal inglês The Guardian, começou uma campanha com a finalidade de garantir o direito de segunda opinião aos pacientes e familiares. Esta campanha culminou, em outubro de 2023, com a publicação de um artigo de opinião no British Medical Journal. Neste seu artigo ela  descreveu o que ocorreu e pediu que este direito seja efetivado em todos os hospitais do Reino Unido.


Além da não realização da segunda opinião, ela também descreveu outras situações, tais como o não registro em prontuário das interações de médicos assistentes, da falta de cuidados aos finais de semana e, especialmente, no descaso em ouvir as suas questões e opiniões. Posteriormente, o King’s College Hospital assumiu que houve uma negligência no cuidado desta paciente.


A “Martha’s Rule” estabelece a garantia do paciente em ter uma segunda opinião, em ser ouvido em suas necessidades.


No Brasil esta situação já é garantida pelo Código de Ética Médica desde a sua edição de 1988. O Art. 64 deste Código estabelecia que o médico não pode “Opor-se à realização de conferência médica solicitada pelo paciente ou seu responsável legal”. Na versão atualmente vigente do Código de Ética Médica, publicada em 2018, esta situação foi melhor esclarecida. O Art. 39 veda ao médico “Opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião solicitada pelo paciente ou por seu representante legal”.


A garantia do direito do paciente e de seus familiares em ter uma segunda opinião é clara, assim como o estabelecimento do dever dos profissionais em respeitar esta possibilidade, já existem e estão devidamente documentadas. A dificuldade é tornar estas possibilidades em ação, é permitir o efetivo exercício destes direitos. Não é uma situação que dependa da existência de um marco regulatório, mas sim de uma cultura institucional e social que inclua os pacientes como participantes ativos em todo o seu processo de cuidado. 


Desde a antiguidade, a relação de confiança entre o médico e o paciente é reconhecida como fundamental. Hipócrates já afirmava que o médico deve informar o paciente adequadamente sobre a sua condição de saúde e dos prognósticos. Ele afirmava que este processo é fundamental para gerar a confiança necessária à preservação da adequada relação médico-paciente.


Resumindo, a comunicação efetiva, o registro adequado da evolução do quadro de saúde, a escuta ativa e empática, além da consideração abrangente dos múltiplos aspectos de vida e viver de todos os envolvidos na relação, são as condições que permitem uma relação entre pessoas que possa gerar uma confiança que se preserva, mesmo em situações críticas. É garantir que a voz do paciente será ouvida.


Bibliografia


Mills M. Martha’s rule: a hospital escalation system to save patients’ lives. BMJ. 2023 Oct 9;(October):p2319. Disponível em: https://www.bmj.com/lookup/doi/10.1136/bmj.p2319


Curtis P, Wood C. Marthas’s Rule: a new policy to amplify patient voice and improve safety in hospitals. DEMOS [Internet]. 2023;(September). Disponível em: https://demos.co.uk/research/marthas-rule-a-new-policy-to-amplify-patient-voice-and-improve-safety-in-hospitals/


Bittencourt ALP, Quintana AM, Goldim JR, Wottrich LAF, Cherer E de Q. A voz do paciente: por que ele se sente coagido ? Psicol em Estud. 2013;18(1):93–101. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pe/a/wCm9rV8NMzyJcWj9MPqZpmQ/

domingo, 20 de agosto de 2023

As múltiplas perspectivas da Saúde

José Roberto Goldim

A Bioética, quando entendida em sua perspectiva complexa, permite reflexões sobre vários temas. A saúde é um destes temas preferenciais para a reflexão bioética.  A perspectiva complexa associada às ações na área da Saúde permite envolver um conjunto amplo de argumentos que servem para verificar a sua adequação. 

A saúde têm múltiplos significados de acordo com o entendimento, com o paradigma utilizado e da abrangência estabelecida para as suas ações. a ter uma abordagem baseada no paradigma das evidências epidemiológicas ou das evidências narrativas. Quanto a abrangência, podem ser identificadas a  saúde individual, a saúde pública, a saúde coletiva, a saúde única, a saúde global e a saúde planetária.

Os diferentes entendimentos da saúde

Desde a antiguidade, a saúde é entendida como ausência de doença. É uma perspectiva baseada no paciente individualmente, com ênfase nos aspectos biológicos visando enfrentar situações específicas identificadas pelo médico. O local de saúde passou a ser identificado como sendo o hospital. Os médicos, a partir da metade do século XIX, passaram a contar, de forma sistemática e profissional, com a colaboração das Enfermeiras na realização de suas atividades.

No início do século XX, a saúde também passou a ser entendida como sendo um direito humano coletivo. A Revolução Mexicana, de 1913, a Revolução Russa, de 1917, e a Constituição de Weimar da Alemanha, de 1919, consagraram este entendimento. Este direito coletivo garante o acesso aos cuidados de saúde para todos os cidadãos, sendo a que saúde se realiza no âmbito de toda a sociedade. O Art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, consagrou este entendimento ao propor que a "saúde é um direito de todos e um dever do Estado". A saúde passou a ser considerada como um critério de cidadania.

Com a criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, foi dado um outro entendimento do que é saúde. O modelo de abordagem biopsicossocial passou a ser incorporado e a saúde foi definida como o estado de pleno bem-estar físico, mental e social. Os aspectos biológicos foram acrescidos dos aspectos biográficos do individuo. Esta nova perspectiva também teve uma alteração de quem realiza saúde e onde que ela ocorre. Aos médicos e enfermeiros foram acrescidos todas as demais profissões da área da saúde. No Brasil, de acordo com a Resolução CNS 218/1997, são considerados profissionais de saúde:  Assistentes Sociais, Biólogos, Profissionais de Educação Física, Enfermeiros, Farmacêuticos, Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos, Médicos, Médicos Veterinários, Nutricionistas, Odontólogos, Psicólogos e Terapeutas Ocupacionais. A partir da Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978, o local onde a saúde ocorre passou a ser a rede de saúde, incluindo, além dos hospitais, os postos de diferentes níveis de complexidade. Novos profissionais e novos locais foram sendo incorporados às ações de saúde, entendida de forma mais abrangente.

Os paradigmas em saúde

Dois paradigmas são mais utilizados, o da Saúde baseada em Evidências Epidemiológicas e da Saúde baseada em Evidências Narrativas. Habitualmente, estes termos são utilizados de forma mais restrita, como Medicina baseada em Evidências e Medicina baseada em Narrativas. A opção de utilizar a expressão Saúde, ao invés de Medicina, tem como objetivo ampliar para além de um único enfoque profissional, envolvendo todos os demais participantes nas ações. 

Saúde baseada em Evidências Epidemiológicas é uma abordagem quantitativa que tende a ter  uma perspectiva de totalidade dos fenómenos estudados, ou seja, de buscar explicações que abarquem o conjunto de indivíduos, sem levar em conta as suas peculiaridades. Esta perspectiva baseada em evidências científicas, especialmente as epidemiológicas. 

Segundo Guyatt (1992), Saúde baseada em Evidências é uma abordagem que 

"retira a ênfase da intuição, da experiência clínica assistemática e de uma lógica patofisiológica como base suficiente para a tomada de decisões clínicas e enfatiza o exame das evidências da pesquisa clínica". 

Segundo este mesmo autor, esta abordagem exige novas habilidades dos profissionais e dos pacientes. Os profissionais têm que aprender a realizar buscas continuadas na literatura científica e a utilizar regras formais de avaliação destas evidências contidas nas produções científicas. 

HG Wells (1903), de forma antecipatória já havia dito que: 

"o pensamento estatístico será, um dia, tão necessário para a cidadania eficiente, quanto a habilidade de ler e escrever!"

A conjugação do pensamento estatístico com as buscas continuadas de dados publicados levou à possibilidade de estabelecer uma classificação das evidências de acordo com a confiança e validade associadas. A maneira mais comum de expressar esta classificação foi por meio da Pirâmide de Evidências Epidemiológicas. A opinião de especialistas é a evidência que tem a menor confiança e validade. No topo da pirâmide, ao contrário, estão  as revisões sistemáticas e os estudos de metanálise.

Esta é a mesma linha de pensamento da citação atribuída a W. Edwards Deming, porém não localizada em qualquer dos seus textos:

"sem dados, você é apenas uma pessoa com uma opinião". 

Porém, não basta ter apenas informações, se elas não estiverem associadas a uma perspectiva sobre o mundo, ou seja, a um paradigma. Matt Coyle (2021), fez um contraponto a proposta de Deming, ao afirmar que:

"sem uma opinião para guia-lo, você é apenas mais uma pessoa com dados".

A Saúde baseada em Evidências Narrativas valoriza o individual, a singularidade, as múltiplas possibilidades de entender uma mesma situação de acordo com o paciente ou situação envolvida. É a recuperação da possibilidade de contar a histórica individual de cada pessoa, de cada paciente.  É, de acordo com Goyal e colaboradores (2008), lembrar que os pacientes tem nome e endereço, ou seja, são pessoas únicas e localizadas. A proposta destes autores é de que os profissionais de saúde devem sair dos relatos impessoais dos pacientes. 

Infelizmente, o conceito de narrativa tem sido confundido com o de versão. Narrativa, segundo Alberti (2012) é:

"é o estabelecimento de uma organização temporal, através de que o diverso, irregular e acidental entram em uma ordem, que não é anterior ao ato do relato, mas coincidente com ele; que é pois constitutiva de seu objeto."

Versão, por outro lado, são os "diferentes modos de contar ou interpretar o mesmo ponto, fato, história etc.", segundo esta mesma autora. Ou seja, a narrativa organiza um relato, informações antes dispersas que passam a fazer sentido., enquanto que a versão pode ser fantasiosa e infundada.

Zaharias (2018) ao questionar o que é Medicina baseada em Narrativa responde que é uma habilidade de contar histórias. Contar histórias é reconhecer a singularidade de cada paciente, é estabelecer e aproximar as conexões entre o profissional e o próprio paciente, é, finalmente, reconhecer que podem existir diferentes perspectivas para entender a mesma situação. Fazer a narrativa é organizar estas informações de uma maneira que permita o seu melhor entendimento por parte de todos.

Isto já havia sido descrito por Hipócrates, no seu livro Prognóstico. Neste texto, a palavra prognóstico, não se refere apenas a predizer o futuro, mas sim dar esta continuidade de informações ao longo do tempo, é estabelecer uma trajetória, uma hipótese, um modelo explicativo para a situação que busca descrever. O texto de Hipócrates estabelece que:


"Parece-me que é excelente que o médico estabeleça hipóteses. Pois, se ele investiga e relata aos seus pacientes, o presente, o passado e o futuro, antes mesmo que ocorram, preenchendo as lacunas nos relatos dados pelos doentes, ele terá mais condições de compreender os casos. Desta forma, os pacientes se entregarão a ele, com confiança, para tratamento."  


Muitas vezes estes paradigmas epidemiológico e narrativo são entendidos como sendo antagônicos, quando, na realidade, são complementares. Subbiah (2023) reenquadrou a Pirâmide de Evidências na perspectiva de um Iceberg de Evidências. A antiga Pirâmide é apenas a parte visível desta gigantesca estrutura de conhecimentos. Na parte "submersa", que aprofunda estas questões, estão incluídas as novas contribuições geradas pela tecnologia da informação, como a internet das coisas e o aprendizado de máquinas, assim como o paradigma narrativo. Os dados da História Natural, incluindo aspectos ambientais e sociais, e da história pessoal passam  a ser parte de mesmo conjunto de informações. O Modelo da Inferência para a Melhor Explicação, proposto é uma possibilidade de integração entre diferentes paradigmas dedutivos e indutivos, que permite utilizar o que há de melhor em cada um destes modelos.


Esta é a grande contribuição da teoria da complexidade: permitir esta visão integrada de paradigmas antes isolados. Não é uma fusão, uma perda de fronteiras, nem mesmo uma apropriação: é a possibilidade de diálogo, de troca de saberes entre duas diferentes perspectivas - epidemiológica e narrativa - de descrever a mesma realidade.

A abrangência da saúde

Existem múltiplas abrangências para a saúde. Os enfoques podem variar do nível individual, de uma única pessoa, até a saúde planetária, quando as questões mais amplas são abarcadas.

A perspectiva da saúde ser entendida apenas como um enfrentamento às doenças, tinha uma  perspectiva individual e biológica, baseada na pessoa doente. Saúde era o contrário da doença. O foco desta abrangência era manter e salvar a vida desta pessoa. A inclusão do bem-estar na definição de saúde proposta na criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946, incluiu, além das questões biológicas, as relacionadas à saúde mental e social. Ou seja, as questões biográficas passaram a ser também consideradas. Cada ser humanos não era mais considerado apenas como um ser vivo, mas também como uma pessoa. A perspectiva da Saúde não era mais apenas preservar a vida, garantir a sobrevivência, mas também ter uma atenção ao viver, ao bem-viver, de dada um. Desta forma, os aspectos relacionais entre pessoas, antes vistos apenas na perspectiva de doenças infectocontagiosas, passaram a ter um novo olhar. 

A abrangência das questões envolvendo a saúde foi sendo progressivamente ampliada para abarcar as questões de Saúde Pública e de Saúde Coletiva. Esta mudança da perspectiva individual para coletiva surgiu no final do século 19 e no início do século 20. A Saúde Pública se utilizou  dos conhecimentos gerados pela Epidemiologia, para estabelecer políticas públicas de alocação de recursos na área da saúde. Por outro lado, com a evolução do pensamento dos Direitos Humanos, alguns Estados começaram a garantir o direito à saúde, entendido como um direito coletivo e não individual. Esta inclusão da saúde como um critério de cidadania, é que permitiu o surgimento da Saúde Coletiva. A saúde pública assumiu uma proposta mais quantitativa, enquanto que a saúde coletiva passou a abordar estas mesmas questões de uma forma mais qualitativa, mais crítica e articulada. 

No final do século 20 foram incorporadas as reflexões sobre as questões ambientais. Houve a proposta de que o ambiente saudável é um direito fundamental transpessoal, ou seja, que ultrapassa inclusive a perspectiva humana. Isto acarretou também uma nova ampliação do entendimento do que é saúde, com a introdução da saúde única, da saúde global e da saúde planetária.

Ampliando ainda mais esta visão, surgem a Saúde Global e a Saúde Planetária.  A saúde global abarcando, de forma mais abrangente, o conjunto de todos os elementos anteriormente citados. É a saúde não mais na perspectiva de um país ou região, mas do conjunto dinâmico das ações sanitárias em nível supranacional. É uma abrangência que leva em conta as biorregiões. A saúde global propõe uma perspectiva abrangente para as políticas públicas. Por sua vez, a saúde planetária vai ainda mais além. O seu objeto de preocupação é o planeta como um todo, é o entendimento sistêmico e integrado da Terra como Gaia. A saúde planetária passa a incluir na saúde, as questões climáticas, o uso de recursos naturais, as diferentes formas de produção e uso de energia, as alterações de paisagens e de ecossistemas, a mineração e a emissão de gases. Estas questões mais abrangentes, que antes não eram abordadas na perspectiva da área da saúde, passaram a assumir crescente importância devido às suas repercussões.

A perspectiva de Uma Só Saúde (One Health) surgiu de uma proposta de integração mais efetiva entre os aspectos de saúde envolvendo diferentes seres vivos, não só considerando os humanos. Nesta perspectiva a saúde humana e a saúde animal deveriam ter uma convergência e não uma atuação em paralelo. A Medicina Humana e a Medicina Veterinária devem ter uma maior proximidade, em termos de entendimento e de atuação. Inúmeras questões podem ser levantadas nesta nova visão. A pressão de sobrevivência das espécies animais selvagens que vivem em ecossistemas ameaçados ou em transformação, e que passam a ter maior interação com populações humanas é um destes temas. As diferentes formas de produção de animais para servirem de alimento é outro tema relevante. Da mesma forma, o aumento da quantidade e do tipo de interação  entre humanos e animais de estimação é outra questão importante desde o ponto de vista da saúde. Os animais de estimação passaram a fazer parte da vida diária e familiar, com maior interação e convívio, inclusive tendo estas relações reconhecidas como pertencentes a "famílias multiespécies". Os animais de estimação, assim como os animais de produção, começaram a receber medicamentos semelhantes aos utilizados por humanos, com repercussões ambientais e sanitárias importantes. A própria relação com microorganismos também mudou, ao invés de um enfrentamento, a nova perspectiva é de adaptação, de convivência segura e não de eliminação. A relação menos estudada, mas que é uma importante fronteira a ser ainda devidamente entendida, é da interação dos humanos com as plantas. As questões de saúde decorrentes do uso de alimentos vegetais, suas transformações e modos de produção, incluindo nutrição vegetal e controles de produção. Como fica evidente, a perspectiva da proposta de Uma Só Saúde exige uma perspectiva relacional e dinâmica de todos os fatores envolvidos, seja em âmbito individual, populacional, comunitário ou ambiental.

Em uma perspectiva linear de pensamento, cada um destes diferentes níveis de saúde - saúde individual, saúde pública, saúde coletiva,  saúde global, saúde planetária e uma só saúde - cada um seria apenas uma ultrapassagem da anterior. Porém, quando estas múltiplas perspectivas são abordadas de forma complexa,  elas não são excludentes, mas se complementam, permitindo uma visão abrangente do todo, sem perder a peculiaridade de cada uma das partes.  Todas as perspectivas são importantes de acordo com a sua adequação e relação às demais.  A abordagem complexa da Saúde permite uma visão integrada da unidade na multipliidade.

Bioética, Saúde e Complexidade

A Bioética e a Saúde, quando entendidas de forma complexa, expressam esta perspectiva integradora de competências científicas e humanísticas. A saúde deve ter este novo olhar integrado, que permita construir argumentos que possam servir para explicar melhor a atual situação que estamos enfrentando. Não é uma visão de escolha, de exclusão, mas sim de inclusão de múltiplas perspectivas de entendimento. A contribuição da Bioética é a de permitir uma reflexão sobre a adequação das ações envolvidas na área da saúde, em todos os seus múltiplos significados e usos.

Referências

Guyatt G. Evidence-Based Medicine. JAMA. 1992 Nov 4;268(17):2420. 

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Goyal RK, Charon R, Lekas H-M, Fullilove MT, Devlin MJ, Falzon L, et al. “A local habitation and a name”: how narrative evidence-based medicine transforms the translational research paradigm. J Eval Clin Pract. 2008 Oct;14(5):732–41. 


Alberti V. De “versão” a “narrativa” no Manual de história oral. História Oral. 2012;15(2).


Charon R, Montello M. Stories matter: the role of narrative in medical ethics. New York: Routledge; 2002.


Zaharias G. What is narrative-based medicine? Narrative-based medicine 1. Canadian Family Physician March 2018, 64 (3):176-180.


Hippocrates. Prognostic. Vol. II. Cambridge: Harvard, 1959:7.


Lutzenberger J. Gaia: o planeta vivo (por um caminho suave). Porto Alegre: L± 1990.