José Roberto Goldim
Márcia Santana Fernandes
Se o Prof. Ubaldo Kanflutz, reitor da Universidade de Ciências Fictícias da Sbórnia, tivesse feito esta publicação que vamos comentar, tudo estaria adequado, pois é uma apresentação teatral que tem personagens e entidades fictícias. Mas, quando isto ocorre com uma aparência de ciência verdadeira, a questão muda.
A revista científica International Journal of Surgery Case Reports tem um fator de impacto de 0,6. É um valor considerado como baixo na área da Cirurgia, mas que indica, ainda assim, que os artigos ali publicados são citados por outros autores. O CiteScore, que representa o número médio de citações de cada artigo publicado, é de 1,1. Esta revista é publicada por uma editora consagrada, tem um corpo editorial e todos os artigos são avaliados de forma independente por revisores.
Em agosto de 2024, a revista publicou uma Carta ao Editor com o título Practice of neurosurgery on Saturn. Apesar de estar publicada como uma correspondência, a publicação seguiu o roteiro de uma série de três relatos de casos cirúrgicos, inclusive com um Abstract que apresenta os elementos chave do material publicado, e seis descritores, ou Keywords. Os dois autores tem suas credenciais acadêmicas apresentadas ao final do texto, incluindo a suas respectivas contribuições para a elaboração do mesmo.
Nesta Carta/Artigo constam três relatos de pacientes fictícios atendidos em um país, igualmente fictício, denominado de Illusionland, localizado no planeta Saturno. Segundo o texto, Saturno seria habitado por 60 milhões de homo sapiens sapiens, que migraram da Terra fazem 30 anos.
Nestes três relatos cirúrgicos é descrito o uso de medicamentos reais, tais como pregabalina, gabapentina, amirtriptilina, clominpramina e carbamazepina, assim como de outro fictício: idinexazepam. Da mesma forma é citado um equipamento cirúrgico, denominado de zekaknife, que também é fictício. No artigo é dito que este insrtrumento é comparável a um equipamento real de radiocirurgia, que é a gamma knife.
Constam apenas duas referências bibliográficas na publicação. A primeira se refere ao juramento de Hipócrates, com uma citação incompleta e fora dos padrões estabelecidos pela própria revista. A outra citação é do conto Os Inimigos, de Anton Tchekhov.
Vale lembrar que esta publicação recebeu um identificador de DOI (https://doi.org/10.1016/j.ijscr.2024.110139) e já foi catalogada na base PUBMED, no formato de artigo, recebendo os indexadores do PMID (39153336) e PMCID (PMC11378218). No seu registro não consta qualquer indicativo de que é um texto ficcional ou de que os dados publicados não são verdadeiros.
Quando de sua publicação, vários pesquisadores divulgaram este artigo como uma curiosidade. O que nos preocupou, desde o início, foi o fato de não haver, ao longo de toda a publicação, ou na sua catalogação, menção ao fato de ser uma brincadeira.
Algum tempo após a publicação do artigo, o Editor da revista, R. David Rosin, publicou uma nota de esclarecimento a respeito desta publicação. Ele afirma que a revisão foi feita por ele mesmo e que a publicação foi feita com algumas revisões. Neste suposto esclarecimento, ele novamente não refere que o texto é de ficção. Ele ainda se coloca, como editor, a disposição para publicar outros textos semelhantes.
Logo após a publicação da nota de esclarecimento do editor a nossa preocupação se ampliou, em função do risco deste tipo de informação ficcional ser classificada como sendo real. Resolvemos encaminhar uma Carta ao Editor com algumas considerações que julgamos relevantes. A nossa carta foi publicada, igualmente com um erro de referência no encaminhamento para o texto da nota de esclarecimento do editor.
As nossas maiores preocupações, associadas ao texto publicado, foram as seguintes:
a) a publicação foi feita na seção de Cartas ao Editor, mas está formatada como um artigo. Nas normas de publicação da revista não há previsão de publicação de artigos como Carta ao Editor. Esta confusão ficou evidente quando da catalogação da publicação na base de dados da PUBMED. Não há menção na catalogação de que a publicação é uma Carta ao Editor. Inclusive o resumo, deste suposto artigo, foi incluído no seu registro;
b) o artigo foram incluídos seis descritores, ou palavras-chave, inclusive um para "aspectos éticos". Existe um termo padronizado que seria muito adequado a esta situação: "Obra de Ficção", ou "Fictional Work". A definição utilizada no vocabulário MeSH da base PUBMED define esta palavra-chave como: "Trabalhos sobre escrita criativa, não apresentados como baseados em fatos". A utilização deste descritor tornaria a publicação adequada;
c) no item Conformidade com padrões éticos, os autores declaram que o artigo apresenta resultados de uma pesquisa observacional que não exigiu aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa. O suposto artigo publica uma série de três casos cirúrgicos fictícios. Divulgar dados forjados em uma revista científica, sem qualquer menção a ser uma obra de ficção, caracteriza uma fraude científica;d) consta, neste mesmo item sobre questões éticas, que o Comitê de Ética em Pesquisa do Centre Clinical de Soyaux/França afirmou que não haveria necessidade de aprovação ética para este artigo, nem seria necessária a obtenção de consentimento informado. Este Comitê está vinculado a instituição hospitalar privada existente na cidade de Soyaux, onde um dos autores tem atuação profissional. Esta dispensa de avaliação ética e de obtenção de consentimento seria adequada a uma publicação ficcional. Porém, vale ressaltar, que esta caracterização não consta em qualquer parte da publicação;
e) os autores afirmam, nos aspectos éticos, que foram obtidos os consentimentos de todas as pessoas incluídas nestes estudo. Isto fica contraditório com a afirmação de que o Comitê de Ética em Pesquisa já havia dispensado a sua obtenção. Por ser uma obra de ficção, não foram incluídos pacientes reais, mas sim criados dados fictícios;
f) posteriormente, logo após o item dos aspectos éticos, os autores declaram que o artigo não contém estudos envolvendo seres humanos ou animais. Esta afirmativa reitera a confusão, pois se não foram incluídos seres humanos não deveriam ter sido obtidos os consentimentos. Seria melhor se os autores tivessem afirmado que esta publicação se refere a casos fictícios;
h) as referências bibliográficas, incluídas no artigo, não utilizam os padrões preconizados pelas normas da própria revista. A referência ao Juramento de Hipócrates é vaga e incompleta, não permitindo a sua adequada recuperação. A outra referência, relativa ao texto de Anton Tchekhov, está igualmente incompleta. O agravante é que esta referência contém um link associado, que direciona para uma indicação de outra publicação, diferente da citada no próprio texto dos autores. É preocupante que o Editor tenha declarado, na sua nota de esclarecimento, que ele próprio fez a revisão do material antes de ser publicado, inclusive tendo encaminhado sugestões.
O fato mais significativo associado a esta publicação é a omissão de que este texto é ficcional. Um leitor humano, minimamente esclarecido, entende que esta publicação se trata de uma obra de ficção científica, pois não existem seres humanos habitando o planeta Saturno e, muito menos, cirurgias sendo lá realizadas. No entanto, as bases de dados e os programas de inteligência artificial, não tem esta capacidade de discernir. Estas bases e plataformas assumem as informações que lhes são fornecidas ou os metadados captados pelos seus algoritmos de aprendizado de máquina. Na base do PUBMED esta publicação é considerada como válida, tanto que após o seu registro constam outras publicações similares, como quatro artigos de cirurgia e um de mecânica celeste envolvendo Saturno. Nas plataformas de inteligência artificial esta informação também poderá ser considerada como sendo válida, pois foi publicada em uma revista científica existente, vinculada a uma editora reconhecida e com avaliação por um corpo editorial. Ou seja, uma publicação com dados científicos validados. Esta é a sua maior inadequação: a publicação de dados fictícios sendo incorporada acriticamente às bases de conhecimentos tidos como cientificamente validados.
A Ciência se baseia em observações reais, em fatos e evidências, não em dados fictícios. Esta publicação torna difusa a fronteira entre ficção científica e ciência fictícia, pois publica dados fictícios em uma revista científica, sem qualquer menção a esta peculiaridade do artigo publicado.
Esta é uma forma de quebra de integridade científica, que envolve autores e editores: publicar dados fictícios em uma revista científica como sendo uma informação válida. Identificar este tipo de situação é uma questão fundamental da Ética na Ciência.
Mostofi K, Peyravi M. Practice of neurosurgery on Saturn. Int J Surg Case Rep. 2024;122(August):3–5.