segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Comitê de Bioética Clínica do HCPA: História, Atuação e Desafios

 José Roberto Goldim


O Comitê de Bioética Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) tem desempenhado um papel essencial na análise e orientação de questões éticas na prática clínica desde sua criação. Seu histórico remonta a 1993, quando foi estabelecido como um órgão consultivo e propositivo dentro da Diretoria Médica do hospital. Desde então, o comitê expandiu sua atuação e consolidou-se como referência na área. O próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) quando publicou a Recomendação CFM 08/2015 incentivando a participação dos médicos em Comitês de Bioética, em sua Exposição de Motivos, reconheceu o pioneirismo nacional do Comitê de Bioética do HCPA.

Histórico e Desenvolvimento

A trajetória da bioética clínica no HCPA envolve diversas iniciativas ao longo dos anos. Em 1993, foi criado o Programa de Atenção aos Problemas de Bioética, vinculado à Diretoria Médica do HCPA. Em 2015, este Programa passou a ter a denominação de Comitê de Bioética Clínica.  

As consultorias de Bioética Clínica são prestadas pelos consultores vinculados ao Núcleo de Bioética Clínica, igualmente vinculado à Diretoria Médica do HCPA. As consultorias vinculadas às demandas individuais de pacientes, ou de questões institucionais, tiveram início em 1994. Em 1997, foram iniciados os rounds semanais de Bioética Clínica na UTI Pediátrica, atividade que se mantém até os dias de hoje. 

Além disso, a partir de 1995, foram oferecidas seis diferentes disciplinas sobre temas de Bioética, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas da UFRGS. Assim como outras atividades de formação para profissionais de saúde, envolvendo temas como a comunicação em situações difíceis, Estas atividades têm contribuído para a disseminação de conhecimentos e boas práticas na área da Bioética Clínica.

A Atuação do Comitê de Bioética Clínica

O Comitê de Bioética Clínica realiza reuniões mensais desde 1993, somando até o momento 295 encontros. Sua composição é multiprofissional e interdisciplinar, contando com 29 membros de 12 diferentes profissões de diversas áreas de conhecimento, tais como Medicina, Psicologia, Direito, Serviço Social, Enfermagem e outras.

O Comitê de Bioética Clínica serve como uma instância de reflexão sobre a adequação bioética de práticas realizadas na instituição. As principais demandas do comitê envolvem temas como privacidade e confidencialidade; situações de violência envolvendo profissionais de saúde como vítimas; questões de início e final de vida; limites de atuação dos profissionais de saúde; atendimento a demandas específicas de grupos minoritários, entre outras 

Além das atividades internas, o Comitê tem auxiliado inúmeras instituições de saúde, incluindo hospitais universitários, hospitais públicos e privados, e unidades especializadas, a constituírem comitês de bioética. Até o presente momento, 12 instituições, de diferentes locais do Brasil, já foram atendidas em suas demandas.

A Atuação do Núcleo de Bioética Clínica

As consultorias de Bioética Clínica tem mantido uma demanda frequente. Desde 1994, foram atendidas e registradas 6.853 consultorias, sendo 454 apenas no ano de 2024. Os temas mais frequentes abordados nestas consultorias são demandas na área de conflitos, envolvendo as equipes assistenciais e os ocorridos entre familiares; a comunicação entre as pessoas envolvidas; os processos de tomada de decisão, incluindo o processo de consentimento e as diretivas antecipadas de vontade; e as questões sociais presentes nas situações. Os dados das consultorias estão disponíveis no Painel das Consultorias de Bioética Clínica do HCPA.

As atividades educacionais do Núcleo de Bioética Clínica incluem a realização semanal de um round de Bioética Clínica, com a participação regular dos consultores e dos residentes da Psiquiatria Forense. Nestas atividades também participam outros residentes que estão com estágios em Bioética. Com os residentes médicos é realizado um seminário semanal para discutir questões teóricas envolvidas no atendimento das consultorias. Os residentes multiprofissionais tem uma atividade mensal para discussão de temas de Bioética. De forma periódica, são oferecidos cursos de pequena duração para a comunidade de profissionais da instituição sobre temas específicos, como os que envolvem habilidades de comunicação.

Desafios e Perspectivas

Entre os desafios atuais, destaca-se a implantação do credenciamento de consultores em Bioética Clínica, previsto para o primeiro semestre de 2025. Está prevista a oferta de um novo Curso de Formação de Consultores, internos e externos à instituição, visando uma capacitação mais aprofundada para os profissionais que queiram realizar este tipo de atividade.

Outros pontos prioritários que merecem ser objeto de reflexão para aprimorar as atividades de Bioética Clínica, incluem:

  • o aperfeiçoamento da comunicação verbal e escrita, especialmente nos registros em prontuário dos pacientes;
  • o melhor entendimento dos processos de tomada de decisão em Bioética;
  • o desenvolvimento de habilidades para lidar com conflitos entre familiares e equipes de profissionais de saúde;
  • o entendimento da importância da diversidade de referenciais éticos a serem utilizados na elaboração das reflexões e pareceres, mantendo uma perspectiva de argumentação baseada na complexidade inerente às questões da área da saúde.

As atividades do Comitê de Bioética Clínica do HCPA têm contribuído para um cuidado mais humanizado e responsável, reconhecendo as inúmeras vulnerabilidades presentes em todas as situações que ocorrem na área da saúde.

domingo, 19 de janeiro de 2025

Ficção científica ou Ciência fictícia: o risco de uma brincadeira

José Roberto Goldim
Márcia Santana Fernandes

Se o Prof. Ubaldo Kanflutz, reitor da Universidade de Ciências Fictícias da Sbórnia, tivesse feito esta publicação que vamos comentar, tudo estaria adequado, pois é uma apresentação teatral que tem personagens e entidades fictícias. Mas, quando isto ocorre com uma aparência de ciência verdadeira, a questão muda.

A revista científica International Journal of Surgery Case Reports tem um fator de impacto de 0,6. É um valor considerado como baixo na área da Cirurgia, mas que indica, ainda assim, que os artigos ali publicados são citados por outros autores. O CiteScore, que representa o número médio de citações de cada artigo publicado,  é de 1,1. Esta revista é publicada por uma editora consagrada, tem um corpo editorial e todos os artigos são avaliados de forma independente por revisores. 

Em agosto de 2024, a revista publicou uma Carta ao Editor com o título Practice of neurosurgery on Saturn. Apesar de estar publicada como uma correspondência, a publicação seguiu o roteiro de uma série de três relatos de casos cirúrgicos, inclusive com um Abstract que apresenta os elementos chave do material publicado, e seis descritores, ou Keywords. Os dois autores tem suas credenciais acadêmicas apresentadas ao final do texto, incluindo a suas respectivas contribuições para a elaboração do mesmo.

Nesta Carta/Artigo constam três relatos de pacientes fictícios atendidos em um país, igualmente fictício, denominado de Illusionland, localizado no planeta Saturno. Segundo o texto, Saturno seria habitado por 60 milhões de homo sapiens sapiens, que migraram da Terra fazem 30 anos. 

Nestes três relatos cirúrgicos é descrito o uso de medicamentos reais, tais como pregabalina, gabapentina, amirtriptilina, clominpramina e carbamazepina, assim como de outro fictício: idinexazepam. Da mesma forma é citado um equipamento cirúrgico, denominado de zekaknife, que também é fictício. No artigo é dito que este insrtrumento é comparável a um equipamento real de radiocirurgia, que é a gamma knife.

Constam apenas duas referências bibliográficas na publicação. A primeira se refere ao juramento de Hipócrates, com uma citação incompleta e fora dos padrões estabelecidos pela própria revista. A outra citação é do conto Os Inimigos, de Anton Tchekhov. 

Vale lembrar que esta publicação recebeu um identificador de DOI (https://doi.org/10.1016/j.ijscr.2024.110139) e já  foi catalogada na base PUBMED, no formato de artigo, recebendo os indexadores do PMID (39153336) e PMCID (PMC11378218). No seu registro não consta qualquer indicativo de que é um texto ficcional ou de que os dados publicados não são verdadeiros.

Quando de sua publicação, vários pesquisadores divulgaram este artigo como uma curiosidade. O que nos preocupou, desde o início, foi o fato de não haver, ao longo de toda a publicação, ou na sua catalogação, menção ao fato de ser uma brincadeira.

Algum tempo após a publicação do artigo, o Editor da revista, R. David Rosin, publicou uma nota de esclarecimento a respeito desta publicação. Ele afirma que a revisão foi feita por ele mesmo e que a publicação foi feita com algumas revisões. Neste suposto esclarecimento, ele novamente não refere que o texto é de ficção. Ele ainda se coloca, como editor, a disposição para publicar outros textos semelhantes.

Logo após a publicação da nota de esclarecimento do editor a nossa preocupação se ampliou, em função do risco deste tipo de informação ficcional ser classificada como sendo real. Resolvemos encaminhar uma Carta ao Editor com algumas considerações que julgamos relevantes. A nossa carta foi publicada, igualmente com um erro de referência no encaminhamento para o texto da nota de esclarecimento do editor.

As nossas maiores preocupações, associadas ao texto publicado, foram as seguintes:

a) a publicação foi feita na seção de Cartas ao Editor, mas está formatada como um artigo.  Nas normas de publicação da revista não há previsão de publicação de artigos como Carta ao Editor. Esta confusão ficou evidente quando da catalogação da publicação na base de dados da PUBMED. Não há menção na catalogação de que a publicação é uma Carta ao Editor. Inclusive o resumo, deste suposto artigo, foi incluído no seu registro; 

b) o artigo foram incluídos seis descritores, ou palavras-chave, inclusive um para "aspectos éticos". Existe um termo padronizado que seria muito adequado a esta situação: "Obra de Ficção", ou "Fictional Work". A definição utilizada no vocabulário MeSH da base PUBMED define esta palavra-chave como: "Trabalhos sobre escrita criativa, não apresentados como baseados em fatos". A utilização deste descritor tornaria a publicação adequada;

c) no item Conformidade com padrões éticos, os autores declaram que o artigo apresenta resultados de uma pesquisa observacional que não exigiu aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa. O suposto artigo publica uma série de três casos cirúrgicos fictícios. Divulgar dados forjados  em uma revista científica, sem qualquer menção a ser uma obra de ficção, caracteriza uma fraude científica;

d) consta, neste mesmo item sobre questões éticas, que o Comitê de Ética em Pesquisa do Centre Clinical de Soyaux/França afirmou que não haveria necessidade de aprovação ética para este artigo, nem seria necessária a obtenção de consentimento informado. Este Comitê está vinculado a instituição hospitalar privada existente na cidade de Soyaux, onde um dos autores tem atuação profissional.  Esta dispensa de avaliação ética e de obtenção de consentimento seria adequada a uma publicação ficcional. Porém, vale ressaltar, que esta caracterização não consta em qualquer parte da publicação;

e) os autores afirmam, nos aspectos éticos, que foram obtidos os consentimentos de todas as pessoas incluídas nestes estudo. Isto fica contraditório com a afirmação de que o Comitê de Ética em Pesquisa já havia dispensado a sua obtenção. Por ser uma obra de ficção, não foram incluídos pacientes reais, mas sim criados dados fictícios;

f) posteriormente, logo após o item dos aspectos éticos, os autores declaram que o artigo não contém estudos envolvendo seres humanos ou animais. Esta afirmativa reitera a confusão, pois se não foram incluídos seres humanos não deveriam ter sido obtidos os consentimentos. Seria melhor se os autores tivessem afirmado que esta publicação se refere a casos fictícios;


g) um outro fator que pode gerar confusão e ambiguidade é a referência a medicamentos e equipamentos existentes e fictícios sem a devida diferenciação entre eles. Estas referências a produtos reais e fictícios, mescladas ou comparadas entre si, podem gerar uma credibilidade aos demais dados fictícios publicados;

h) as referências bibliográficas, incluídas no artigo, não utilizam os padrões preconizados pelas normas da própria revista.  A referência ao Juramento de Hipócrates é vaga e  incompleta, não permitindo a sua adequada recuperação. A outra referência, relativa ao texto de Anton Tchekhov,  está igualmente incompleta. O agravante é que esta referência contém um link associado, que direciona para uma indicação de outra publicação, diferente da citada no próprio texto dos autores. É preocupante que o Editor tenha declarado, na sua nota de esclarecimento, que ele próprio fez a revisão do material antes de ser publicado, inclusive tendo encaminhado sugestões.

O fato mais significativo associado a esta publicação é a omissão de que este texto é ficcional. Um leitor humano, minimamente esclarecido, entende que esta publicação se trata de uma obra de ficção científica, pois não existem seres humanos habitando o planeta Saturno e, muito menos, cirurgias sendo lá realizadas. No entanto, as bases de dados e os programas de inteligência artificial, não tem esta capacidade de discernir. Estas bases e plataformas assumem as informações que lhes são fornecidas ou os metadados captados pelos seus algoritmos de aprendizado de máquina. Na base do PUBMED esta publicação é considerada como válida, tanto que após o seu registro constam outras publicações similares, como quatro artigos de cirurgia e um de mecânica celeste envolvendo Saturno. Nas plataformas de inteligência artificial esta informação também poderá ser considerada como sendo válida, pois foi publicada em uma revista científica existente, vinculada a uma editora reconhecida e com avaliação por um corpo editorial. Ou seja, uma publicação com dados científicos validados. Esta é a sua maior inadequação: a publicação de dados fictícios sendo incorporada acriticamente às bases de conhecimentos tidos como cientificamente validados. 

A Ciência se baseia em observações reais, em fatos e evidências, não em dados fictícios.  Esta publicação torna difusa a fronteira entre ficção científica e ciência fictícia, pois publica dados fictícios em uma revista científica, sem qualquer menção a esta peculiaridade do artigo publicado.  

Esta é uma forma de quebra de integridade científica, que envolve autores e editores: publicar dados fictícios em uma revista científica como sendo uma informação válida. Identificar este tipo de situação é uma questão fundamental da Ética na Ciência. 


Referências 

Mostofi K, Peyravi M. Practice of neurosurgery on Saturn. Int J Surg Case Rep. 2024;122(August):3–5. 

Rosin RD. Regarding the letter to the editor: “Practice of neurosurgery on saturn.” Int J Surg Case Rep. 2024 Nov:110665. 

Goldim JR, Fernandes MS. Science fiction or fictitious science.  Int J Surg Case Rep. 2025 Jan:126:110757.


domingo, 5 de janeiro de 2025

Síndrome do Familiar Distante

 José Roberto Goldim


A relação médico-paciente, ou profissional de saúde-paciente, é habitualmente entendida na perspectiva de um relacionamento entre duas pessoas. Em algumas áreas, como Pediatria, Geriatria e Psiquiatria, a presença de outras pessoas, especialmente familiares, já era comum, devido a idade ou incapacidade do paciente em ter o entendimento necessário sobre o seu quadro de saúde ou de participar do processo de tomada de decisão. Contudo, mais recentemente, a presença dos familiares nas interações dos profissionais de saúde com os seus pacientes tem sido crescente. 

Este aumento no número de participantes nos processos de comunicação e decisão tem gerado grandes desafios às atividades dos profissionais de saúde. Da mesma forma, o crescente acesso destas pessoas ás fontes de informações, antes restritas apenas a determinados grupos, também tem gerado dificuldades, em função da falta de entendimento adequado sobre o seu significado e da qualidade das fontes utilizadas.

Estes desafios exigem dos profissionais uma crescente necessidade de atualização de formas de atualização de conhecimentos e de comunicação. É importante tornar acessível conteúdos que nem sempre são fáceis de entender sem uma série de outros conhecimentos prévios. Mas estas situações são manejáveis com cordialidade, preparação e comunicação adequadas.

É sempre importante relembrar algumas características das famílias que devem ser consideradas nestas interações, que foram propostas no texto do livro The patient in the family: an ethics of medicine and families. Um ponto fundamental é que os membros da família não são substituíveis por similaridade ou por pessoas mais qualificadas. Outro ponto é que estas pessoas estão vinculadas umas às outras, seja por vínculos naturalmente impostos, que podem ser positivos ou negativos. Isto pode ser devido aos motivos associados às relações, que sempre sempre contam muito. Por fim, é fundamental entender que as famílias são histórias em andamento.

Levar em conta todas estas características é muito importante ao lidar com processos de tomada de decisão envolvendo familiares. Nos prontuários e nas informações compartilhadas entre profissionais, a composição e outros aspectos relacionados às famílias são escassos e muitas vezes confusos.

As situações decorrentes de ter um familiar doente que necessita cuidado, atenção, acompanhamento e auxílio na tomada de decisões importantes exige empatia e compaixão. Empatia no sentido de buscar entender a situação na perspectiva do outro. Compaixão ao estabelecer a relação de ajuda com o outro que sofre.

Um outro fator que pode impactar neste processo de deliberação é a chegada de um familiar distante, que pode desde o ponto de vista geográfico e afetivo. Esta é uma situação que ocorre frequentemente. 

O paciente e os familiares, que já tinham contato com o médico assistente, ou outros membros das equipes assistenciais, já podem estar adequadamente esclarecidos. Os processos de tomada de decisão podem estar sendo encaminhadas de forma harmônica. Contudo, com a chegada de um "familiar distante" esta situação pode sofrer uma perturbação, algumas vezes de forma significativa. 

A chegada de um familiar distante pode retomar conflitos familiares, talvez, não adequadamente entendidos ou resolvidos; de falta de conhecimento da própria situação atual do paciente e da família; da falta de comunicação entre os membros da família; e de diferentes perspectivas nos sistemas de crenças e valores.

Muitos conflitos familiares não são discutidos pelas pessoas envolvidas, talvez querendo negar ou evitar desgastes e enfrentamentos. Nas situações de maior tensão, como as vivenciadas em um ambiente de saúde, estes conflitos podem emergir e podem deslocar o foco das discussões. Desentendimentos e mágoas antigas podem voltar e criar barreiras emocionais entre os membros do grupo familiar. 

É bastante frequente o paciente, ou outro familiar, confidenciar a um membro das equipes assistenciais envolvidas sobre este tipo de situação. Caso esta informação seja relevante para o entendimento e condução da situação atual, a mesma deve ser compartilhada no prontuário, com uma descrição isenta de julgamento moral. As informações compartilhadas devem ser descritas apenas em seus pontos considerados como relevantes. Os profissionais devem antecipar esta situação aos pacientes e familiares, ou seja, que as informações relevantes são compartilhadas entre os membros das equipes, mas que todos têm o dever de confidencialidade associado às mesmas.

A chegada de um "familiar distante" é um desafio em termos de atualizar informações sobre o paciente e o processo de tomada de decisão atualmente vigente. É fundamental, quando possível, consultar o paciente, ou caso tenha um representante formalmente indicado, sobre os limites de compartilhamento de informações. A privacidade pessoal deve ser sempre priorizada. Nestas interações, deve ser enfatizado dever de preservar estas informações a todos os envolvidos. Os limites da privacidade relacional também são importantes de serem delimitados. Este "familiar distante" pode chegar com a expectativa de um quadro de saúde que não mais existe. O paciente ou outros familiares podiam ter omitido informações com a finalidade de não preocupar quem estava distante, mas que agora é surpreendido com uma mudança importante entre o quadro esperado e o realmente existente. Esta  dissonância deve ser adequadamente esclarecida por meio de uma comunicação adequada. 

Outro importante fator é a falta de comunicação entre os próprios familiares. Não é incomum ter membros da família que não se comunicavam por um longo período de tempo. Pessoas que romperam relacionamentos familiares podem se deparar com uma situação de convivência forçada pela necessidade do quadro de saúde do paciente. A presença de diferentes níveis de conhecimento e compreensão é um fator dificultador na relação com os profissionais de saúde. Além de poder potencializar  conflitos entre os familiares. Os profissionais de saúde podem auxiliar na mediação ou no encaminhamento destas situações mantendo sempre a perspectiva do melhor interesse do paciente. 

Finalmente, um outro importante fator a ser considerado é o sistema de crenças e valores. Este sistema envolve não apenas valores objetivos, crenças estruturadas, mas também interesses e desejos. O importante é trazer a discussão sobre este tema na perspectiva do paciente. As famílias podem não ter mais um conjunto de crenças e valores comum entre seus membros. O próprio afastamento deste familiar pode ter sido causado por estes fatores, assim como também pode gerar mudanças de como encarar desafios de vida e viver. O importante não é discutir os sistemas de crenças e valores pessoais de cada um, mas buscar um exercício de entendimento empático na perspectiva do paciente. As famílias são histórias em andamento. 

A "Síndrome do Familiar Distante" é uma situação frequente e que deve ser enfrentada de forma adequada por todos os profissionais. Em muitas destas situações, assim como esta pessoa chegou de forma inesperada, também se vai abruptamente, após ter causado uma perturbação. É fundamental identificar quem representa os melhores interesses do paciente, que não este estiver impedido de tomar as suas próprias decisões.

Leitura recomendada

Nelson HL, Nelson JL. The patient in the family:  an ethics of medicine and families. New York: Routledge, 1995.







quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Redes Sociais e Bioética

José Roberto Goldim




Muitas vezes, quando se fala em Ética, as pessoas relacionam com impedimentos gerados por Códigos de Ética Profissional. A Ética propriamente dita é diferente. Segundo Joaquim Clotet, a Ética tem por objetivo facilitar a realização das pessoas. Este é o objetivo das reflexões éticas: aprimorar o viver das pessoas. 


Esta é a proposta da Bioética. Entender como fazer esta possibilidade de aprimorar o viver é fruto de uma reflexão compartilhada, complexa e interdisciplinar sobre a adequação de ações que realizamos. Fazer uma reflexão complexa é incluir as múltiplas perspectivas da realidade. Fazer uma reflexão compartilhada é dialogar, é compartilhar conhecimentos e argumentos. Fazer uma reflexão interdisciplinar é incluir as múltiplas perspectivas de visão de mundo e da realidade, geradas a partir de diferentes olhares, que possibilitam, por esta troca, a geração de novos conhecimentos, antes não existentes ou consolidados.


A reflexão sobre a adequação das nossas ações ultrapassa a simples perspectiva do bem e do mal, do correto e do incorreto. Ao verificar os fatos e circunstâncias envolvidos e permitir uma reflexão contextualizada, se vislumbra um conjunto de justificativas para realizar ou não esta determinada ação.


É nesta perspectiva que proponho fazer esta reflexão sobre o uso adequado das redes sociais. Elas estão na ordem do dia das discussões na nossa sociedade. É importante relembrar as discussões propostas por Habermas sobre o que é a Esfera Pública, como o espaço onde as pessoas podem se reunir e debater as suas ideias, é o espaço privilegiado de formação da chamada opinião pública.


No século XVIII, a Esfera Pública ocorria na nova imprensa artesanal. Era um novo espaço de compartilhamento de ideias e opiniões. Embora restrito, teve uma importância pela sua difusão continuada.


No século seguinte foi a vez da imprensa comercial, com os grande jornais. Estes periódicos tinham grande tiragem, com periodicidade regular e grande abrangência. As fronteiras da esfera pública foram sendo alargadas para além das comunidades locais.


O rádio e a televisão assumiram este papel no século XX, com uma difusão massiva de informações em tempo real, e não mais em edições periódicas. O radio e a televisão invadiam as casas e outros locais. Não havia a necessidade de ter um horário de disseminação das informações. A qualquer hora era possível estar atualizado e em qualquer lugar.


Finalmente, no século XXI este protagonismo passou para a internet. Nesta nova forma de compartilhar informações não há mais a necessidade da institucionalização, qualquer pessoa coloca as suas ideias e notícias para todos os demais. Não mais a mediação profissional e institucionalizada. Qualquer pessoa pode difundir suas ideias e opiniões. É interessante que, no início, a internet divulgava as notícias que eram oriundas das rádios, da televisão e dos jornais. Com o passar do tempo e a expansão do acesso às redes sociais, os meios tradicionais é que passaram a divulgar as informações compartilhadas nesta nova esfera pública. As informações da internet passaram a ser divulgadas nos demais meios. Os jornais, as rádios e as televisões começaram a migrar para este novo espaço.


Um dos maiores riscos na área da saúde, em relação aos espaços públicos, é o da quebra de confidencialidade. Na área da saúde, nas décadas de 1990 e 2000, um dos locais de maior fragilidade para a confidencialidade eram os elevadores dos hospitais. As quebras de confidencialidade ocorreriam entre 8,9% e 15,8% das viagens em elevadores, de acordo com o país onde esta situação foi avaliada.


Com a entrada das redes sociais, a partir da década de 2010, estas oportunidades de quebras de confidencialidade aumentaram. No Facebook, por exemplo, foi constatada uma ocorrência de 26,3%, no Instagram de 19,9% e no Tweeter de 32,1%. As redes sociais potencializam a divulgação de informações que anteriormente eram mantidas de forma confidenciais por profissionais de saúde e alunos em formação. Vale lembrar que além da divulgação direta, existe a possibilidade de propagação destas mesmas informações por outras pessoas, sem controle por parte de quem as postou.


Em uma revisão sistemática sobre Redes Sociais, cobrindo o período de 2006-2020, realizada em 12 bases de dados, avaliando 544 artigos, foi possível identificar três diferentes categorias e dez diferentes usos. As categorias foram Instituições de Saúde, Profissionais de Saúde e Público em Geral .


Nas instituições de saúde foram encontrados quatro diferentes usos: vigilância de informações; disseminação de informações de saúde e combate a desinformação; realização de intervenções em Saúde e geração de mobilização social.


Nos profissionais de saúde os usos mais relevantes foram: facilitar a pesquisa em saúde; facilitar a comunicação entre médicos e pacientes e destes com os serviços de saúde; e a possibilidade de desenvolvimento profissional.


Finalmente, no público em geral, os usos mais destacados foram: buscar e compartilhar informações relacionadas à saúde; compartilhar suporte social em comunidades online; e acompanhar e compartilhar atividades e estados de saúde. 


Nestes usos identificados, seja por profissionais ou por instituições, as redes sociais apresentam riscos, tais como: disseminar informações de baixa qualidade; possibilitar danos à imagem profissional; riscos de quebras de privacidade de pacientes, por meio de dados e imagens compartilhadas; exposição demasiada da vida privada do próprio profissional; violação da fronteira da relação profissional-paciente; além da divulgação de credenciamento e de área de atuação profissional, que não podem ser adequadamente comprovados


Por outro lado, as redes sociais também oferecem oportunidades, tais como: possibilitar contatos entre profissionais (networking); permitir acesso mais facilitado à educação profissional; promover as organizações junto a sociedade; permitir maior comunicação com pacientes; ter potencial de gerar educação de pacientes; promover e divulgar programas de saúde pública; poder gerar contribuições à pesquisa; e, até mesmo, contribuir para um melhor cuidado de pacientes.


As redes sociais são uma realidade que não pode ser ignorada pela área da saúde. O que deve ser feito é uma avaliação e compreensão das múltiplas utilizações possíveis. A partir destas constatações, é possível estabelecer algumas recomendações práticas para os profissionais e alunos da área da saúde a respeito do uso de redes sociais em termos de imagem e identidade profissional, da utilização profissional das redes sociais e da comunicação com os pacientes.


Em relação a imagem e identidade profissional, é fundamental:

  • realizar periodicamente auditorias para verificar a sua presença pessoal nas redes. Os resultados podem gerar importantes dados sobre o que está circulando de informações e imagens referentes a cada profissional ou aluno. Estas auditorias podem gerar a necessidade de estabelecer uma correção do rumo da divulgação desta imagem profissional.

  • maximizar as configurações de privacidade de seus programas e sites que são utilizados. Muitas vezes as configurações em uso estão aquém dos padrões de proteção para informações pessoais sensíveis, como às referentes à área da saúde.

  • utilizar uma “dupla cidadania” nas redes, ou seja, separar o perfil profissional do perfil pessoal. Esta separação evita a confusão de papéis nas relações sociais, especialmente quando envolvem pacientes. Ter este cuidado não evita o acesso as informações de caráter mais pessoal, mas minimiza a exposição em ambientes profissionais. A postagem de informações ou imagens que podem comprometer a imagem do profissional ou do aluno devem ser evitadas ou, se forem divulgadas, terem seu acesso mais restrito.


Ao utilizar as redes sociais de forma profissional:

  • considere que todas as suas postagens passam a ser públicas e permanentes. Ao realizar uma divulgação o autor perde o controle da sua disseminação. Mesmo que a postagem seja apagada ou deletada, não existe a garantia de que não tenha sido copiada ou divulgada por outras pessoas para seus círculos de contatos.

  • considere que o seu comportamento na rede deve ser o mesmo que aquele realizado de forma presencial no ambiente de trabalho. As mesmas regras de cordialidade e convivência devem ser observadas em ambos os ambientes. 

  • evite compartilhar vinhetas ou fotos de casos, mesmo que não identificados. Isto só pode ser realizado, ainda com muita cautela, com a autorização expressa e documentada das pessoas expostas. Dados de pacientes, mesmo não identificados podem permitir a sua identificação, ou pior, podendo ocorrer uma identificação cruzada. As fotos, ainda que com medidas de descaracterização das imagens, permitem manipulação e reidentificação. Na divulgação de resultados de exames ou de imagens, todo cuidado é pouco, pois muitas vezes constam dados de registros que podem reidentificar os pacientes que ficam pouco evidentes.


Na comunicação com pacientes:
  • utilize meios seguros de comunicação com os pacientes e familiares, caso contrário, obtenha consentimento por escrito. Caso esteja realizando uma vídeo-chamada com um paciente, pergunte se tem mais alguém presente no local onde ele está, pois o campo visual não permite verificar a presença de outras pessoas. Isto é muito importante para preservar a privacidade dos pacientes.
  • evite comunicação profissional direta sobre informações de pacientes atendidos com outras pessoas que não sejam os próprios pacientes ou familiares por eles designados. Não é incomum pessoas se apresentarem como intermediários de pacientes solicitando informações pessoais sensíveis, como dados de saúde. Nesta situações informe que apenas o paciente e pessoas por ele identificadas e autorizadas podem ter acesso a estas informações..
  • reconheça que os pacientes e seus familiares podem não ter os mesmos recursos de informática que os profissionais e alunos dispõem. Muitos pacientes podem não ter acesso a redes de boa velocidade ou aparelhos que possibilitem chamadas de vídeo. É importante questionar sobre estas questões de acesso a estes recursos.



É muito importante destacar o que Mostaghimi e Crotty propuseram em 2011:


Não estamos sugerindo que os médicos devam ser proibidos de utilizar as redes sociais.

Os médicos apenas necessitam ter prudência (razão prática) quanto ao conteúdo e o tom

daquilo que será postado online.


Referencias

Joaquim Clotet. Una Introducción al tema de la Ética. Psico 1986;12(1)84-92.


Goldim JR. Bioética: origens e complexidade. Revista HCPA 2006;26(2):83-92.


Habermas J. Mudança Estrutural na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2003.


Hasman A, Hansen NR, Lassen A, Rabøl R, Holm S. What do people talk about in Danish hospital elevators? Ugeskr Laeger. 1997;159(46):6819–2.


Ubel PA, Zell MM, Miller DJ, Fischer GS, Peters-Stefani D, Arnold RM. Elevator talk: observational study of inappropriate comments in a public space. Am J Med. 1995;99(2):190–4.


Langenfeld SJ, Cook G, Sudbeck C, Luers T, Schenarts PJ. An Assessment of Unprofessional Behavior Among Surgical Residents on Facebook: A Warning of the Dangers of Social Media. J Surg Educ; 2014;71(6):e28–32.


Moras iLS de, Dargél VA, Ribeiro JT, Fernandes MS, Goldim JR. A privacidade do paciente e o elemento responsabilidade na formação médica. Anais X Semana de Extensão, Pesquisa e Pósgraduação - SEPesq - UniRitter. Porto Alegre: UniRitter; 2014.


Ahmed W, Jagsi R, Gutheil TG, Katz MS. Public Disclosure on Social Media of Identifiable Patient Information by Health Professionals: Content Analysis of Twitter Data. J Med Internet Res. 2020 Sep 1;22(9):e19746.


Chen J, Wang Y. Social media use for health purposes: Systematic review. J Med Internet Res. 2021;23(5):1–16.


George DR, Rovniak LS, Kraschnewski JL. Dangers and opportunities for social media in medicine. Clin Obs Gynecol 2013;56(3):1–7.


Lee Ventola C. Social media and health care professionals: Benefits, risks, and best practices. P&T 2014;39(7):491–500.


Mostaghimi A, Crotty BH. Professionalism in the digital age. Ann Intern Med. 2011;154(8):560–2.


quarta-feira, 15 de maio de 2024

Catástrofe Ambientais, Saúde e Bioética

 José Roberto Goldim


Estamos vivenciando uma catástrofe ambiental sem precedentes. O termo mais adequado é catástrofe mesmo, pois estão falando muito em tragédia, desastre, guerra... Tragédia não é o mais adequado, pois é uma alusão a um estilo teatral que termina, por definição, em um acontecimento ruim, na maioria das vezes fatal. Desastre é habitualmente associado a um acidente,  a algum evento imprevisto, a algo que não esperávamos. Finalmente, utilizar a comparação com a guerra implica em combater um inimigo. O que estamos vivenciando não termina com um evento fatal, não foi um imprevisto, nem é um combate. É sim uma catástrofe, pois é um evento de grande destruição, que afeta muitas pessoas e que exige um enorme esforço de reconstrução. É uma calamidade.

Quando em 2009 vivemos a pandemia da gripe A (H1N1) tive a impressão de que era a maior emergência de saúde que eu viveria. Foi a primeira vez que tivemos que utilizar máscaras indiscriminadamente no atendimento a pacientes, mandamos os alunos para casa, tivemos o auxílio da Aeronáutica para as atividades de triagem realizadas na frente do hospital. Vivemos um período de clara exceção nas atividades da nossa instituição.

Veio 2020, com a possibilidade de um novo evento importante. Inicialmente, os relatos eram de um problema de saúde local, quase uma curiosidade, mas que se alastrou para todo o mundo de uma maneira sem precedentes na história contemporânea. A pandemia da COVID-19 foi um desafio gigantesco para toda a população mundial, especialmente no atendimento às demandas de saúde. Foi um período de superação para os governos e instituições, para o trabalho dos profissionais de saúde, para os cientistas, enfim para todas as áreas da sociedade, em nível mundial. Foi um longo e penoso período de superação, de inovação nos relacionamentos e de desafios para a sobrevivência e a convivência. Novamente, eu pensei que teria sido o meu maior desafio profissional e pessoal.

No final de 2023 tivemos dois eventos climáticos importantes no nosso estado, mas que não serviram para despertar a necessidade de estarmos em prontidão para o que viria. Porém, nos últimos dias de abril e nos primeiros de maio de 2024 veio um evento inesperado, mas previsível: a maior cheia da história do Rio Grande do Sul. Uma inundação dos rios em níveis alarmantes, com uma extensão territorial enorme e com um potencial muito grande de devastação. A catástrofe ambiental não foi uma surpresa. Sinais estavam indicando que poderia haver um evento semelhante ao que ocorreu. Faltou prudência e precaução, faltou planejar medidas de contingência que permitissem, no mínimo, mitigar os riscos e os danos. Mais uma vez, como sociedade, como governos, como instituições, subestimamos a Natureza. 

E não é por falta de reflexão sobre estas questões ambientais, é por falta de sensibilidade. Desde a década de 1970, o Rio Grande do Sul tem um importante debate ambiental. O legado de José Lutzenberger, da AGAPAN, e de tantas outras pessoas e entidades, fez com que muitas questões importantes fossem enfrentadas, balizando as suas ações na busca de manter a integridade ambiental possível em um cenário de utilização crescente e desordenada de recursos. Naquela época foram propostas discussões muito relevantes sobre as relações da Ecologia com a Sociedade.

A Bioética também ressaltou a importância da integração do ser humano com a Natureza. Na década de 1920, com o pensamento de Fritz Jahr e de  Albert Schweitzer, e na década de 1970, com as propostas de Van Rensselaer Potter, os animais, as plantas, o solo, as paisagens foram incluídos como parte importante da nossa reflexão bioética. A própria Conferência do Clima, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992, teve como base o Princípio da Precaução de Hans Jonas. Porém, as estratégias ambientais ficaram muito tímidas e subordinadas a outros interesses.

Não é apenas esperar o final terrível da tragédia, nem aceitar a aleatoriedade dos desastres, que se impõe por si própria, e muito menos assumir uma perspectiva de combater a Natureza, como se ela fosse um inimigo em uma guerra. As catástrofes nos lembram que a evolução ocorre, não pela sobrevivência dos mais fortes, pois não é uma luta, mas sim como um embate, que gera repercussões e que necessita resistência. São os mecanismos de adaptação, que permitem a sobrevivência e a manutenção da vida e do viver em condições adversas. 

Se adaptar é reconhecer as mudanças, é ver as alternativas que permitam o enfrentamento das novas realidades que a Natureza nos impõe. Se adaptar é se integrar a dinâmica que nos é imposta. Temos inúmeros exemplos de integração de fenômenos cíclicos de cheias que propiciaram sobrevivência e desenvolvimento de populações. Um exemplo histórico foram as cheias do rio Nilo. Este ciclo foi alterado, na década de 1970 com a construção da represa de Assuã, com repercussões locais e regionais importantes.

É fundamental que o plano de reconstrução, a ser estabelecido para a catástrofe do Rio Grande do Sul, inclua a todos, que permita uma ampla discussão de todas as consequências previsíveis, em diferentes níveis. A reconstrução é um desafio para toda a sociedade, onde os governos, em suas múltiplas instâncias, tem o papel de organizar as demandas e prover os recursos possíveis. A reconstrução não deve ser apenas orientada pela visão econômica, mas sim pelas múltiplas perspectivas envolvidas abordadas de uma forma integrada. É um exercício de construção de um conjunto de medidas interdisciplinares, que devem ter como foco comum os interesses comuns a todos, com a perspectiva de incluir demandas de setores específicos. Não é uma visão dicotômica entre o todo ou a parte, mas sim, o todo e a parte vistos de forma integrada. Não é a opção entre a "árvore" ou a "floresta", mas sim uma visão ecossistêmica que permita visualizar harmonicamente este conjunto de demandas que podem ser, aparentemente, conflitantes. O desafio ético é de verificar a adequação das propostas a serem implantadas. 

Vale lembrar a proposta feita por Lutzenberger, no seu livro "Gaia, o planeta vivo", publicado em 1990:

"Só uma visão sistêmica, unitária e sinfônica poderá nos aproximar de uma compreensão do que é nosso maravilhoso planeta vivo."

Lutzenberger J. Gaia, o planeta vivo. Porto Alegre: L&PM, 1990. 

Fernando Mainardi Fan (IPH/UFRGS - Palestrante),  José Roberto Goldim (HCPA - Coordenação)
Eventos extremos de cheia no Rio Grande do Sul: uma visão hidrológica.
Grand Round HCPA 15/05/2024 Vídeo 1:07

Site do IPH: https://www.ufrgs.br/iph/

Site da Bioética: https://www.ufrgs.br/bioetica/


sexta-feira, 26 de abril de 2024

Dez desafios da Inteligência Artificial

José Roberto Goldim

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Estes desafios foram propostos por diferentes pessoas com a finalidade de gerar uma reflexão sobre os diferentes aspectos envolvidos com a Inteligência Artificial.(IA). Estas reflexões visam gerar um debate que é necessário para o adequado entendimento das relações sociais neste novo cenário.


1. Como você avalia o movimento sobre os Neurodireitos, liderado pelos próprios neuro-cientistas que estão trabalhando para desenvolver o uso médico de IA ?


A expressão Neurodireitos é uma maneira de chamar a atenção para uma questão particular, quando na realidade estamos tendo um desafio que é de âmbito geral. Neurodireitos são uma nova denominação para a garantia dos direitos humanos, dos direitos da pessoa, dos direitos fundamentais, como queiram chamar. A garantia dos direitos humanos, abrange o todo de cada pessoa e não apenas uma de suas características. 


O direito à vida, o direito à liberdade, o direito à privacidade são exemplos de questões que emergiram no final do século XVIII e permanecem cada vez mais atuais nos dias de hoje.  Mais do que estabelecer uma nova denominação ou classificação, temos é que garantir as questões centrais que nos dão identidade ao longo do nosso viver.


2. O que pensar sobre a ameaça à democracia a que alude carta assinada por Elon Musk e  Yuval Harari?


A ameaça à democracia, que extrapola os termos da carta citada, é clara e real. A disseminação de informações em grande escala e em velocidade crescente gera esta saturação de informações. 


Quem tem melhor abordado esta questão é o Prof. Byung-Chul Han, catedrático de Ética da Universidade de Berlim. Ele criou o termo Infocracia para denominar este fenômeno. A seleção de informações gerada pelos algoritmos das redes sociais e dos sites de busca acaba por dar uma visão extremamente estreita da realidade. O contraditório fica quase que eliminado, existe apenas a reiteração do que se sabe e se pensa. É a eliminação do desafio, do desconforto, mas apenas a mesma matriz de conhecimentos que se repete monotonamente, reiterando posições já assumidas anteriormente. A discussão fica substituída pela simples repetição de ideias e noções. A ausência de discussão gera a perda de reflexão.


3. Como podemos compreender o mau uso da IA, expressa na maldade a que estamos imersas pela Internet? 


O mau está sempre presente. Não é a internet que criou a maldade, ela deu uma dimensão de divulgação e de acesso nunca antes vista. Este mesmo fenômeno ocorreu quando as bibliotecas foram criadas, quando o livro impresso foi disponibilizado, quando o rádio, o cinema e a televisão se difundiram. São novos meios de expressar, de comunicar. Os meios de comunicação em massa, surgidos nos anos 1960, fizeram com que esta reflexão assumisse uma amplitude global. Mais do que estabelecer medidas de controle e contenção, o importante é desenvolver um pensamento crítico capaz de discernir e lidar com estas situações: é educar. Infelizmente, este não tem sido o caminho. A simples repressão gera mais problemas do que solução a este fenômeno.


4. E a Saúde Mental, estará sendo afetada pelo excesso de uso indiscriminado das mídias e IA pelo sujeito comum?


Sem dúvida nenhuma, a saúde mental das pessoas está sendo afetada por esta avalanche acrítica de informações. Os programas de jornalismo mudaram o seu foco informativo para ser um conjunto de comentários sobre um mesmo monótono tema de impacto. Passado o impacto, um novo tema é abordado e assim sucessivamente. A história não é mais contada, é apenas comentada em um breve período de tempo. Um tema fica sendo exposto, em média, por um período de até duas semanas. O foco não é mais informar, mas sim gerar novos impactos. Esta sucessão de impactos é que tem gerado uma certa apatia, uma perda da solidariedade, da perspectiva empática e compassiva com o outro. Tudo é espetáculo, os outros são substituídos constantemente. Assim, as relações se tornam apenas ligações, sem comprometimento associado.


5. Que tipo de legislação regulamenta o uso da IA? Quem fiscaliza?


O uso de Inteligência Artificial tem gerado uma necessidade de um novo marco regulatório que permita de alguma forma estabelecer parâmetros de adequação a estas atividades. O Brasil vem discutindo um projeto de lei neste sentido, a Europa está elaborando um regulamento para estabelecer um uso minimamente adequado à Inteligência Artificial. As leis atuais já permitem resolver muitas destas questões, mas novos temas se apresentam, como por exemplo, a questão da responsabilidade sobre as ações geradas pelos algoritmos. Quem é o responsável? É o desenvolvedor, é quem vende, é quem utiliza? Esta questão pode ser exemplificada por uma situação já existente: o uso de algoritmos para a direção de automóveis. Se ocorrer um acidente causado por um destes sistemas de navegação, quem será o responsável? Alguns sistemas são divulgados como não permitindo que as pessoas externas sejam atingidas. São sistemas que impedem os atropelamentos de pessoas e animais. Outros sistemas protegem os passageiros do próprio veículo. Em uma situação de risco o algoritmo irá proteger as pessoas externas e o outro as internas. O primeiro seria um algoritmo altruísta e o segundo egoísta. É fácil imaginar os desdobramentos de um acidente onde ocorreram danos pessoais: de quem será a culpa? A escolha por um desses algoritmos, na hora da compra, implica em uma responsabilidade para o motorista?


6. Impacto nas crianças


Inúmeros estudos têm demonstrado os impactos nas crianças com a utilização de equipamentos com o uso de imagens e sons. Os estudos realizados na década de 1960, por Edward Palmer sobre a atenção de crianças ao assistirem televisão, mudaram a própria produção destes programas para crianças. Eles mediam a atenção das crianças e provocavam elementos de distração. As sequências de maior atenção eram editadas e divulgadas. Isto fez com que o programa Vila Sésamo tivesse um impacto enorme na produção de programas infantis. Esta mesma técnica é hoje utilizada para manter a atenção em jogos, programas e telas de redes sociais. Existem setores que avaliam continuamente a atenção dos usuários e os elementos distratores presentes.


7. A IA é uma ameaça à criatividade, ao sonhar?


Como qualquer atividade humana, o uso das novas ferramentas de Inteligência Artificial podem ser consideradas como uma ameaça ou como um desafio. A questão é identificar a intenção associada, os interesses envolvidos e a finalidade à qual estão sendo desenvolvidas estas novas ferramentas. Se utilizadas de forma acrítica, podem ser uma ameaça, mas também podem ser um enorme incentivo à criatividade. 


8. Qual o lugar da inteligência emocional? Existe inteligência não artificial?


Esta questão é central: por que chamar de inteligência artificial? Esta expressão foi cunhada para substituir a palavra “cibernética” em uma atividade realizada no MIT, na década de  1960. A inteligência artificial nada mais é do que uma automatização dos processos de tomada de decisão. Cada vez mais a fronteira entre o natural e o artificial fica difícil de ser estabelecida. Isto já havia sido proposto por Jacques Monod, em 1970, em seu livro O Acaso e a Necessidade.


A incorporação de modelos de linguagem natural fez com que a interface fosse alterada. Do uso de um teclado, que é um meio muito precário de interação, surge a possibilidade de utilizar a voz. A comunicação fica mais fluida e facilitada. O uso do teclado dá a dimensão de uma interação com uma máquina, mas a voz parece estreitar esta ligação.  


Os algoritmos podem ser programados e treinados para “expressarem” emoções, mas que nada mais são do que conjuntos de processos previamente programados para reagir desta maneira. As pessoas podem se sentir confusas perante uma manifestação de uma máquina com uma característica emocional presente. 


O uso da palavra artificial gerou esta expectativa de um distanciamento ou de uma nova aproximação. Uma excelente provocação foi feita por Philip Dick, quando deu a uma novela o seguinte título:  “Os andróides sonham com ovelhas elétricas?” Foi esta novela que foi utilizada para elaborar o roteiro para o filme Blade Runner, de Ridley Scott. Esta oposição, entre o natural e o artificial, é sempre desafiadora e nem sempre tão simples de identificar.


9. O uso da IA poderia beneficiar a relação médico-paciente? De que forma?


A inteligência artificial pode beneficiar a relação médico-paciente ao gerar melhores informações, melhores meios diagnósticos, novos métodos de interação. O risco é a despersonalização, é a padronização, é a perda da singularidade. O problema não é a inteligência artificial em si, mas sim o uso que se faz destas novas ferramentas. O uso das ferramentas de IA devem ser auxiliares, devem melhorar a relação médico-paciente e não substituí-la. O profissional não deve se sentir ameaçado, mas sim incentivado a ser que esclarece, que explica aquilo que outras ferramentas apresentam apenas como dados. Gerar informações e sabedoria é o papel de todos os profissionais e a expectativa dos pacientes.


10. Como impacta a subjetivação e como fica o espelhamento do qual necessitamos para nos tornar alguém único e diferenciado do Outro?


Este é um ponto central e pouco abordado na questão da IA. Não é a introdução de ferramentas de IA que geram problemas, mas sim a falta de discussão da Alteridade, da relação efetiva com o outro. Isto sim é que pode gerar inúmeros problemas, que podem ser agravados com o uso de meios tecnológicos que podem distanciar ainda mais as pessoas. 


Entender que o outro é uma pessoa diferente de mim, com características próprias e singularidades. Esta interação efetiva gera corresponsabilidade, que a necessidade de cuidar do outro, que implica em cuidar de si mesmo, independe do uso de uma ferramenta, mas depende de um entendimento do que é viver, do que é se relacionar. Este é desafio proposto a todos nós. Muitas vezes desviamos o foco para outras questões, mas na essência é isto: reconhecer a si próprio e reconhecer o outro. 


Nota

Estes desafios e as notas associadas foram discutidos no evento promovido pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) em 17/08/2023.