segunda-feira, 11 de maio de 2020

COVID-19, Saúde Global e Saúde Planetária

José  Roberto Goldim



A situação vivida pela Pandemia da COVID-19 permite múltiplas discussões de acordo com o nível de complexidade envolvido: Saúde Individual, Saúde Comunitária; Saúde Pública; Saúde Global e Saúde Planetária.  





Nas discussões sobre o impacto da COVID-19, as questões que envolvem pessoas, comunidades e populações têm sido bastante discutidas. Porém, a  Saúde Global e a Saúde Planetária têm sido mantidas à margem.. 

A Saúde Global não se limita às fronteiras nacionais, busca integrar diferentes áreas de saber relacionadas à saúde e combina o enfoque preventivo da saúde pública, no sentido de abranger populações, com a perspectiva de cuidado individual de pacientes.  Ela foi definida como um campo multi e interdisciplinar cujo foco é melhorar e buscar a equidade em saúde para todas as pessoas. É uma proposta de uma perspectiva "guarda-chuva" para os temas da saúde humana. A Saúde Global é uma perspectiva antropocêntrica, ou seja, é uma proposta especiesista para as questões de saúde, pois aborda este tema apenas na perspectiva humana. O limite de ação da Saúde Global é a Antroposfera. Já existem inúmeras revistas científicas dedicadas exclusivamente às questões de Saúde Global, que já existe como palavra-chave na base PUBMED, desde 2015. A palavra-chave Saúde Global substituiu a anteriormente utilizada: Saúde Mundial.


A Saúde Planetária, por outro lado,  foi definida como sendo a saúde da civilização humana e dos sistemas naturais dos quais depende. Esta definição foi proposta, igualmente no ano de 2015, pela Rockfeller Foundation-Lancet Comission on planetary health.Saúde Planetária tem uma perspectiva biocêntrica, ou seja, amplia a fronteira e alarga a perspectiva de características e elementos envolvidos. É uma proposta que tem a abrangência da Biosfera como u todo. A Saúde Planetária introduz a noção da interdependência humano-ambiental na perspectiva das questões de saúde. Em abril de 2017, foi lançada uma revista específica para este tema: Lancet Planetary Health. Ela se soma às já existentes Lancet Public Health e Lancet Global Health. Outras revistas científicas abriram seções específicas para este tema

Saúde Global
Algumas da políticas utilizadas no enfrentamento da COVID-19 tentaram ter a perspectiva da Saúde Global, mas muitas foram impedidas pelas fronteiras, legislações nacionais e falta de uma perspectiva efetivamente abrangente, em nível transnacional. Na pressão de uma situação de enorme incerteza e pressão social, muitas nações optaram por respostas antigas para problemas novos, ou seja, voltaram a pensar apenas no território dentro de suas fronteiras, como se isto fosse capaz de impedir a propagação do vírus.

Faltaram propostas de Saúde Global efetivas, ou seja, que fossem tomadas em conjunto, por grupos coesos de várias nações. Mesmo a Europa viu ressurgir fronteiras nacionais, antes tidas apenas como uma questão meramente geográfica. Faltou uma política transnacional de alocação de recursos escassos, como respiradores e equipamentos de proteção individual (EPIs), testes diagnósticos. Isto ocorreu em todos os níveis, desde uma simples pessoa até goversno nacionais. A população foi aos supermercados estocar álcool e outros produtos, tidos como estratégicos. Por outro lado, os governos municipais, estaduais e nacionais foram igualmente às compras de forma desarticulada, contribuindo para o esgotamento dos estoques. Muitas vezes, grupos mais necessitados ficaram sem acesso aos produtos, que outros apenas compraram para estocar. Poucas manifestações de efetiva solidariedade foram postas em prática. Ocorreram quebras de contratos de compras já acordadas em função de propostas economicamente mais agressivas e individualistas por parte de compradores e mais lucrativas para os fornecedores. Inclusive ocorreram propostas de investir no desenvolvimento de produtos estratégicos, como vacinas, desde que o produto ficasse disponível apenas para uma população específica de outro país. Várias vacinas, ainda fases iniciais de desenvolvimento, já tem contratos de compra-e-venda fechados com países, de forma a garantir privilégios de acesso. Infelizmente, houve todo um discurso de solidariedade, mas uma prática claramente egoísta.

Saúde Planetária
A proposta da Saúde Planetária têm a possibilidade de auxiliar na identificação das causas da atual pandemia e com isso auxiliar no encaminhamento de alternativas que possam minorar, no futuro, novas situações como esta que estamos todos vivendo.

O Relatório da Comissão de Saúde Planetária da Fundação Rockfeller em conjunto com a Revista Lancet, afirmou que os sistemas naturais da Terra representam uma ameaça crescente à saúde humana. A perspectiva de que os recursos naturais são inesgotáveis e de que estão aí para serem usados e abusados pela espécie humana é que tem gerado este desequilíbrio que agora assusta a todos. 

A partir de Charles Darwin, no final dos anos 1800, a perspectiva de que a espécie humana teve um criação especial e diferente dos demais seres vivos, foi possível entender a interrelação e a interdependência existente na natureza. Na perspectiva ambiental, esta situação de devastação causada pelo uso abusivo de recursos naturais foi denunciada por vários autores, como John Muir, ao criar os parques nacionais dos Estados Unidos, em 1890; Rachel Carlson, ao publicar o seu livro Primavera Silenciosa, em 1963; Aurélio Peccei, ao criar o Clube de Roma, em 1968 ; Arne Naess ao criar o conceito de Ecologia Profunda, em 1973 e José Lutzenberger, ao propor o Manifesto Ecológico Brasileiro, em 1980.

A Bioética também tem feito esta reflexão ao longo da sua história. Desde a sua proposta inicial com Fritz Jahr, em 1926, a Bioética ampliava a reflexão bioética para além dos humanos, ao incluir os animais e as plantas como objeto de consideração. Um pouco antes, em 1923, Albert Schweitzer, ao propor que a reverência à vida é uma ética universal, refletia sobre a necessidade de ter uma visão de solidariedade para todos os níveis de vida. Com Aldo Leopold, na sua Ética da terra, a ampliação atingiu a todos os recursos naturais. Quando Van Rensselaer Potter propôs a sua perspectiva do que seria Bioética, a sua reflexão abarcava a todos os elementos da natureza. 

A proposta de discutir a questão da saúde em uma perspectiva planetária se insere nesta linha de pensamento. O Relatório da Comissão de Saúde Planetária afirmou que "ao explorar de maneira insustentável os recursos da natureza, a civilização humana floresceu, mas agora corre o risco de efeitos substanciais à saúde decorrentes da degradação dos sistemas de suporte de vida da natureza no futuro".

É inquestionável que ocorreram significativos avanços em termos de saúde individual, coletiva, pública e global nestes últimos anos. A expectativa de vida aumentou, inúmeras situações de risco foram minoradas, novas terapêuticas permitiram o tratamento de antigas e novas doenças. Contudo, as mudanças ambientais também têm reflexos na saúde. As mudanças climáticas, a acidificação dos oceanos, a devastação das florestas e a perda de biodiversidade, por exemplo, têm gerado novos e preocupantes problemas à saúde humana.

Um exemplo disto, são as epidemias que têm ocorrido nestas últimas décadas. Muitas delas podem ser associadas à redução das florestas, que acarreta uma ampliação das interações entre diferentes espécies, antes isoladas. Este aumento de interações rompe com o equilíbrio existente entre seres vivos que convivem, agora em uma mesmo espaço restrito . Esta nova situação gera a possibilidade de que haja transmissão de novos vírus e outros parasitas entre diferentes espécies, inclusive a humana. Este é um dos cenários de ação e reflexão da Saúde Planetária.

Com a pandemia da COVID-19, mais do que nunca, a humanidade está se deparando com a situação universal de vulnerabilidade. Todos passaram a ser vulneráveis! Todos necessitam de proteção adicional. Não há possibilidade de fugir para um lugar seguro.  É esta situação, associada à incerteza, que tem gerado a ansiedade vivida pelas pessoas.

Paradoxalmente, as condições ambientais melhoraram na vigência da pandemia com a redução das atividades econômicas e da própria utilização de automóveis e aviões.  

Ecologia Profunda, de Arne Naess, já propunha que toda a natureza tem valor intrínseco, que existe uma igualdade entre as diferentes espécies, que devemos ter uma perspectiva ampliada para além de fronteiras nacionais e, principalmente, alterar a perspectiva de domínio da natureza para uma convivência harmoniosa.  A Saúde Planetária propõe que a Justiça, entendida como não discriminação, seja a base de uma nova proposta de convivência entre todos os elementos presentes na Biosfera, inclusive os humanos. 

A definição dada pela Profa. Eve-Marie Engel, de que a "Bioética é uma reflexão ética sobre os seres vivos, incluído o ser humano, tais como esses seres vivos se apresentam nas relações cotidianas do mundo vivido e nos contextos teóricos bem como práticos da ciência e da pesquisa", se enquadra bem nesta proposta de abordagem planetária.
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Nesta mesma perspectiva que Richard Horton, que é editor da revista LANCET, se pronunciou em um editorial, citando David Hume, de que, 

"sem Justiça a sociedade se dissolve, perde a solidariedade, que é substituída pela solidão". 

É sempre bom lembrar a proposta feita por Lutzemberger, em 1986:

"Só uma visão sistêmica, unitária e sinfônica poderá nos aproximar de uma compreensão do que é nosso maravilhoso planeta vivo".



Para ler mais

Whitmee S, Haines A, Beyrer C, Boltz F, Capon AG, De Souza Dias BF, et al. Safeguarding human health in the Anthropocene epoch: Report of the Rockefeller Foundation-Lancet Commission on planetary health. Lancet [Internet]. 2015;386(10007):1973–2028.

WONCA. Declaration Calling for Family Doctors of the World To Act on Planetary Health Declaration Calling for Family Doctors of the World [Internet]. Bangkok: WONCA; 2019.  

Horton R. Planetary health—worth everything. Lancet [Internet]. 2018 Jun;391(10137):2307. 



Engel EM. O desafio das biotécnicas para a ética e a Antropologia. Veritas 2004;50(2):221.


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