domingo, 29 de novembro de 2020

COVID-19 e os Animais

 José Roberto Goldim

A questão das relações entre os animais e a pandemia da COVID-19 está presente desde o início da sua discussão. A relação do vírus SARS-CoV-2 com morcegos e pangolins foi muito discutida na perspectiva de serem os agentes naturais de transmissão. Os primeiros, talvez, como hospedeiros naturais deste vírus, e os segundos como via de transmissão alimentar para humanos. 

Ambos, morcegos e pangolins, sofreram um grande impacto em seus hábitos devido a interferência humana. A redução dos espaços naturais anteriormente existentes afeta a circulação e convivência de animais, seja como  indivíduos ou como espécies. A Saúde Planetária, já discutida em outro texto anterior, coloca estas questões ambientais no centro da discussão. A perspectiva antropocêntrica da saúde, que era predominante, passou a ter a visão biocêntrica, mais abrangente, como alternativa. 

O vison é um tipo de doninha, que tem uma pele muito apreciada e valiosa no mercado de luxo da moda. Cada casaco de pele, em média, utiliza a pele de 60 animais. No passado, em função de ações e denúncias de organizações de proteção aos animais, acabou criando um comportamento de redução de uso de casacos e outras peças de roupas com a utilização de peles de animais. Esta redução no uso de peles animais, especialmente de visons e filhotes de focas, foi resultado de inúmeras manifestações em desfiles de moda, cerimônias públicas e outras situações sociais foram realizadas. 

A revelação da situação vivida pelos pequenos animais na atual pandemia causou surpresa. A grande quantidade de animais criados em cativeiro e as decisões tomadas pelos diferentes países para tentar contornar a situação epdemiológica evidenciada.

Estes animais, que habitam ambientes aquáticos e tem hábitos solitários, quando criados em cativeiro, são alojados em gaiolas de metal localizados em grandes galpões. A restrição de espaço para os animais gera canibalismo e outras formas de agressão, agravada por uma baixa assistência veterinária, já documentada, aos mesmos.

Peter Singer, quando publicou o seu livro Animal Liberation, já havia denunciado que estas formas industriais de criação animal não atendem aos critérios mínimos de bem-estar  e que alteram hábitos de vida e comportamentos. 

Um artigo, a ser publicado na edição de fevereiro de 2021 da revista Emerging Infectious Disease, mas liberado para consulta digitalmente de forma precoce, documentou a possibilidade de transmissão do vírus SARS-CoV-2 entre humanos e visons. Foram identificadas mutações semelhantes às verificadas em trabalhadores das fazendas de criação destes animais. Já existem pelo menos três vacinas diferentes sendo desenvolvidas para uso especificamente em visons.

A população mundial estimada de visons é de cerca de 50 milhões. Esta produção  concentra-se especialmente na China, Dinamarca, Holanda e Polonia. A Dinamarca é a maioria produtora mundial de peles de vison, com cerca de 17 milhões de animais. O ministro da Agricultura ordenou, por razões sanitárias, a eliminação de 10 milhões de animais em mais de mil fazendas de criação. Cerca de 12 pessoas diagnosticadas de COVID-19 foram contaminadas com as variantes encontradas nos animais das fazendas de criação. Além da Dinamarca, as mesmas variantes encontradas nos visons foram detectadas em seis pessoas da Holanda, duas pessoas na África do Sul e também na Suíça, além pessoas isoladas nas Ilhas Faroe, Rússia e Estados Unidos. Ainda não há informações se estas variantes surgiram primeiro nos visons ou em humanos.

Anteriormente, o SARS-CoV-2 já havia sido detectado em animais de fazendas de criação de vison na Espanha, na Holanda e nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, em uma fazenda no estado de Utah, cerca de 10 mil animais morreram em um surto de COVID-19. Os Estados Unidos tem cerca de 245 fazendas de criação de visons em 22 diferentes estados. 

Pelo mesmo motivo da Dinamarca, a Espanha já havia eliminado cerca de 100 mil visons  e a Holanda algumas dezenas de milhares de animais criados em 68 fazendas. França também tomou uma medida semelhante, com a morte de mil animais. 

Outra questão que gera preocupação é a da contaminação de ambientes naturais. A cada ano, centenas de animais escapam das fazendas de criação e voltam aos ecossistemas. Nestes locais os animais, caso estejam contaminados, passam a transmitir este vírus a animais selvagens, antes não expostos ao vírus.  

Por outro lado, as formas de matar e sepultar os animais foram discutíveis. Inúmeros questionamentos foram feitos sobre as decisões de mandar matar, de como matar e de como eliminar as carcaças dos animais. Um Tribunal da Dinamarca questionou a validade da decisão tomada pelo Ministro da Agricultura daquele país, afirmando que ele não tinha base legal para ordenar este tipo de ação. Isto acarretou a substituição deste ministro. Outra questão importante foi a forma de depositar as carcaças dos animais mortos em covas coletivas e rasas, próximas a cursos d'água. A maior preocupação ambiental foi com a liberação de nitrogênio e fósforo com a decomposição das carcaças. As covas utilizadas para enterrar os animais foram muito rasas e os gases gerados pela decomposição, acabaram por expor novamente as carcaças dos animais mortos. Depois deste desfecho inusitado, está sendo avaliada a possibilidade de exumar e cremar os restos animais. Esta possibilidade também deverá ser avaliada em termos do impacto ambiental, especialmente em função do volume de restos animais a serem cremados.

Estas medidas para conter a expansão das infecções por coronavírus em visons são discutíveis na sua origem. A relação de causa e efeito das contaminações entre os humanos e os visons ainda não foi adequadamente explicada. De acordo com a tendência, é possível  dar outras interpretações ao fenômeno constatado. A forma de eliminação dos animais e de suas caraças demonstrou graves falhas em termos de manejo ecologicamente adequado

Grande parte deste problema se deve a perda da noção de complexidade e diversidade na abordagem questões ambientais. A criação intensiva de animais, fora de seus ambientes naturais, com alteração de hábitos e comportamentos, com descaso pelas condições mínimas de bem-estar, é um importante fator agravante. 

A situação dos visons deu visibilidade a um problema que aparentemente já havia tido uma solução adequada. A utilização de peles animais, criados especificamente para este fim, para a confecção de roupas não era mais um problema de grande visibilidade. O volume de fazendas de criação espalhadas pelo mundo e o número surpreendente de animais em condições não adequadas gera um novo questionamento sobre o papel de nós humanos perante os demais animais. 

A Bioética, nas propostas de Fritz Jahr e de Van Rensselaer Potter, tem esta preocupação ampla com a vida e o viver de todos os seres, sejam humanos, animais ou plantas. A proposta da Ética da Terra, de Aldo Leopold, ampliou a abrangência para todos os elementos da natureza. 

Muitas pessoas questionam se esta reflexão sobre aspectos éticos pode ser ampliada para além dos humanos. A base deste pensamento é que apenas os humanos podem ser detentores de direitos, que apenas os humanos tem intenção associada ao agir. Mas estas são apenas algumas  das possibilidades de abordagem. A questão da nossa relação com a natureza pode e deve ser reenquadrada. 

No início dos anos 2000, já havia o reconhecimento de que os animais devem ser merecedores de considerações éticas. Os animais podem não ter direitos, mas nós temos deveres para com eles. Nós humanos temos  deveres e responsabilidade para com toda a natureza. Da mesma forma, podem ser avaliadas as consequências das nossas ações envolvendo outras formas de vida e do ambiente. Existem inúmeras referenciais teóricos que permitem abordar as questões ambientais nas reflexões bioéticas.

O importante é manter uma abordagem complexa para a abordagem dos problemas bioéticos em todos os níveis, sejam eles individuais, coletivos ou globais.


Para saber mais

Goldim JR. COVID-19, Saúde Global e Saúde Planetária. Bioética Complexa (Blog). 11/05/2020

Hammer AS, Quaade ML, Rasmussen TB, Fonager J, Rasmussen M, Mundbjerg K, et al. SARS-CoV-2 Transmission between Mink ( Neovison vison ) and Humans, Denmark. Emerg Infect Dis [Internet]. 2021 Feb;27(2). Divulgado antecipadamente em 19/11/2020. 

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